Capítulo 25

Nosso quarto não é necessariamente luxuoso, apenas adequado para bailarinos pobres como Jordana e eu. Acredito que o de Angel e Alice não seja melhor - fico imaginando como deve ser duas pessoas adeptas do sarcasmo e do humor ácido dormirem no mesmo quarto -, e nem o da Letícia, que está dormindo num quarto só dela.

O que importa é que tem camas confortáveis, e além disso, é infinitamente melhor do que dormir em colchonetes numa sala de aula de uma escola pública, cheia de bailarinos.

Estou há quase vinte minutos conversando com minha mãe. Ontem à tarde, quando liguei assim que entramos no quarto, foi tão engraçado. Ela quis saber de tudo, se minha viagem foi boa, se senti medo.

Peço notícias do meu pai e também do Cadu, e ouvir que meu irmão anda bastante quieto deposita uma semente de desconfiança na minha cabeça.

- Ele deve estar cansado, só isso - dou de ombros, andando pelo quarto só de calcinha e camiseta enquanto seguro o telefone diante de mim.

- Tomara que seja isso mesmo, filha - mamãe suspira ao falar.

- Pelo que ele me conta, às vezes fica até tarde no supermercado, e no começo é assim. Afinal, a gente não pode esquecer que ele ficava o dia inteiro sem fazer nada.

Minha mãe dá a impressão de se tranquilizar. Quando voltarmos para o Brasil, pretendo conversar com Cadu, perguntar se realmente está tudo bem com ele. Ele não consegue esconder nada de mim.

- Tchau, mãe. Te amo - travo o celular.

Meus olhos se desviam para a moça ruiva que está em espacate no chão, com o queixo colado ao pé, demonstrando sua flexibilidade.

- Daqui a pouco vamos passear pela cidade - ela avisa.

Mordo o lábio inferior, deliberando.

- Não temos que ir logo ao teatro? - sei que Letícia não gosta que percamos tempo.

- Dá tempo de fazer muita coisa. O Parque del Conocimiento não fica longe daqui.

- Você consegue tudo o que quer, né, Jô?

Não trouxe muita coisa na minha pequena mala de mão, a não ser collants para as aulas. Depois de tomar banho, visto uma calça jeans e uma camiseta azul, completando meu visual com uma rasteirinha.

Jordana, pra variar, está usando um vestido comportado, com caimento até os joelhos, e um par de tênis. Ao contrário dela, que está usando o cabelo solto, faço no meu um coque frouxo.

Nos encontramos com a Alice e o Angel no hall de recepção. É impressionante como a bailarina de cabeça pelada gosta de se destacar, pois está toda de preto e com munhequeiras. Já o Angel, parece que sairá a procura de um namorado: camisa social preta, de manga comprida e gel no cabelo.

- Vocês estão estilosos - Jordana diz o que eu pretendia, mas com outras palavras.

- Amiga, aqui é Posadas. A cidade mais eclética e elegante do nordeste da Argentina - Angel retruca com um arzinho esnobe.

- Pronta pra conhecer o melhor da cidade, criança? - Alice se dirige a mim.

Para ser sincera, me incomoda um pouco ser chamada de criança. Não sou criança. Tenho dezesseis anos, sou só três anos mais jovem que eles. Mas quanto mais ressentidos ficamos com um apelido, mais ele cola.

- É claro que ela está, não vê a carinha de entusiasmo dela? - Angel está sendo Angel.

As três horas de sono foram suficientes para retirar meu cansaço, embora meu corpo quisesse ficar estatelado na cama por mais um pouco de tempo. Mas não quero parecer uma velha sem disposição.

Bailarinos quase não têm tempo de desfrutar das opções de lazer e entretenimento que as cidades nas quais se apresentam oferecem. Na maioria das vezes, temos que chegar já se aquecendo, porque há um cronograma a ser cumprido. Aulas, coaching de variação, marcação de palco e a tão esperada apresentação. Passear é para os simples mortais.

Mas neste final de manhã estou disposta a ser uma pessoa comum.

- Só não quero me atrasar para a aula - ponho as mãos nos bolsos da calça.

Nós quatro saímos juntos, e a primeira coisa que fazemos é tirar uma selfie diante do hotel. Angel é fissurado por fotos e gosta de se fazer notar. Ele olha para todos os homens ao alcance de sua visão, sempre murmurando um elogio ou se abanando, o que me faz rir.

Logo, o carro de aplicativo solicitado por Alice chega e nos leva para um ponto da enorme Avenida Costanera, que margeia um rio enorme. Me lembro de tê-lo visto pela janela do avião, mas olhado de perto é ainda mais lindo.

- Caramba! - estou admirada. - Que rio é esse?

- É o Rio Paraná - Jordana tira uma foto com seu iPhone. - Ele separa a Argentina e o Paraguai.

- E esta ponte assustadora é a Puente San Roque González de Santa Cruz. Aquela cidade lá à frente - Angel aponta com o indicador - é Encarnación.

- É bem alta - observo com um mistura de fascínio e medo.

- Que nada. Em dias bem quentes dá pra dar um mergulho.

Olho com perplexidade para Alice, me questionando como pode existir alguém com um humor tão sombrio.

- Duvido que você tenha coragem - Angel lança um desafio.

A garota de cabeça lisa dá de ombros.

- Só não pulo porque não trouxe fio dental.

Seguindo pela linda Avenida Costanera, observo um pier que se dobra em L. É o Mirante Muelle. Seguindo o instinto de todo turista curioso, nós avançamos pela estrutura e meus olhos irradiam emoção com a vista que o mirante me proporciona. Posso ver não só a ponte da qual acabamos de nos distanciar, mas também vislumbres da cidade paraguaia além dela.

Se fosse para eu descrever todos os pontos turísticos que visitamos, eu demandaria tempo para escrever muitas linhas num diário de viagem. Registrar em fotos e selfies é muito mais cômodo. Gosto de ler. O mesmo não posso dizer da arte da escrita.

Claro que no nosso passeio não podia faltar uma parada numa cafeteria, e eu provei o alfajor de dulce de leche mais delicioso em toda a minha vida.

Pelo menos desta vez eu gostaria que o relógio parasse e pudéssemos caminhar mais um pouco. Ainda bem que ainda dá pra curtir o agito da cidade depois da primeira noite de apresentações (quem sabe ir para um bar), e além disso, temos mais uma manhã.

O celular de Jordana toca assim que saímos da cafeteria. É Letícia.

- Venham o quanto antes para o Parque del Conocimiento. As aulas começarão daqui a pouco.

...

Quando chegamos perto da nossa professora o suficiente para ver seu semblante sério, penso que vou tomar uma admoestação.

- Onde vocês estavam?

- Ah, Letícia, relaxa. Só levamos a bebê pra conhecer um pouco da cidade - Alice passa rebolando por ela, jogando os braços para o alto e requebrando os pulsos.

- Posadas, Posadas, como me extraña de usted, ciudad de mujeres guapas - a bailarina careca se distancia de nós cantarolando.

Jordana, Angel e eu trocamos olhares cheios de significado. Mal consigo disfarçar o riso.

- Para o bem dela, espero que esteja indo para o vestiário - Letícia murmura entredentes enquanto massageia as têmporas.

- Você tem o cronograma da primeira tarde de competições? - a fisionomia de Jordana readquire a habitual seriedade.

Só então reparo em duas folhas de papel nas mãos da professora. Ela nos entrega uma.

- Às nove horas, aula com a professora Agostina Villalba. Às dez e meia, coaching de variação, começando com a categoria Júnior e em seguida a Sênior. Meio-dia, primeira parte da marcação de palco e depois almoço. Quando voltarmos, retomamos as marcações de palco, e finalmente, as apresentações.

A ansiedade me manda sinais assim que ouço a palavra apresentações. Não estou aqui só pra me apresentar, mas pra mostrar meu talento, e quem sabe, ser destaque.

Peço a Jordana a folha que Letícia lhe deu e leio em voz baixa os nomes dos bailarinos. Uma das bailarinas cotadas a vencer é a paraguaia Dulce María Cáceres. Ela será uma das primeiras a entrar no palco, logo depois da apresentação especial da Dolores Carrascosa. Pra ser sincera, nem me lembrava que a mãe da Antonella sempre se apresenta em Posadas.

Outra bailarina bem cotada é a argentina Juliana Placente, uma garota que dança muito e que eu sei que será ovacionada na hora em que seu nome for anunciado.

Seja contra argentinas, chilenas, paraguaias ou peruanas, sei que o nível de excelência das bailarinas será altíssimo.

- Todos de escolas muito boas - concluo assim que leio todos os nomes.

- Ei, ei, nada de se intimidar - Letícia abre um sorriso ao segurar meus ombros e me balançar. - Se você está aqui, é porque pode fazer magia.

- Não tô intimidada. Na verdade, é isso mesmo que eu quero: competir com bailarinas de alto nível.

Jordana me puxa de lado para si, troca um olhar comigo.

- É isso que todo bailarino devia dizer.

- Mas sempre mantendo os pés no chão - Letícia levanta o indicador, num gesto que pede prudência. - O tanto de bailarino que dá no show nos ensaios, iludindo a ele e aos professores, e na hora do vamos ver no palco treme na base.

- Eu não vou tremer. Não tenho medo de palco.

Letícia conhece muito bem meu potencial, sabe que não estou sendo presunçosa. Por esse motivo, não dá continuidade ao assunto, se limitando a um movimento de aprovação com a cabeça.

- Vão se trocar - ela bate palmas com energia, Jordana e eu saímos saltitando de sua presença.

- Você se parece muito com a Duda - a ruiva fala em tom confidencial, tirando a saia e os tênis, ficando só de calcinha e sutiã. Outras moças estão fazendo o mesmo, sequer olhando para nós duas.

Estou tirando a calça jeans e a camiseta.

Não respondo e começo a vestir meu collant de manga comprida. Não vou usar meia calça, apenas o maiô de dança e as sapatilhas.

- A Duda chamava pra si toda a responsabilidade de representar bem nosso estúdio. Tinha uma força emocional que fazia a gente se sentir pequena, ofuscada, mas com vontade de aprender com ela - a ruiva veste por cima do collant violeta a meia calça cor de rosa, se abaixa para calçar as sapatilhas. Seus olhos se fixam nos meus no momento em que me agacho para amarrar as fitas de cetim das sapatilhas nos meus tornozelos nus.

- Não sabe o quanto me sinto feliz em ser comparada com ela - sorrio, me levantando. Estou sendo sincera. Eu sempre fui sincera quando eu disse em todos esses anos que queria ser como a Duda.

Ela acaricia meu rosto com o dorso de seu indicador.

- Se eu não te ver antes de você se apresentar, saiba que onde eu estiver, vou estar orando e torcendo por você.

Meu coração se aquece com essa declaração de apoio e amizade. Me sentindo acolhida, dou um abraço na ruiva.

- Não vou orar, mas vou torcer muito por você - me entrego à emoção.

...

- Buenos días! - Agostina Villalba surge.

A ex-bailarina uruguaia faz na barra uma breve demonstração do primeiro exercício. Juliana Placente está bem próxima a ela e marca com as mãos os passos.

Jordana e Alice estão longe de mim, lá atrás. Ao meu lado, uma bailarina de pele bronzeada e olhos miúdos, que sou capaz de jurar que é paraguaia ou peruana. Como não entendo espanhol, tenho que prestar atenção aos movimentos de pernas da mestra de dança e aos nomes em francês dos passos.

- Plié, Relevé, Passé. Up! Pirouette - o giro que ela executa na barra é preciso.

A música começa a ser tocada, transportando a todos nós para o mundo fascinante e cheio de beleza da dança. O balé é o nosso oxigênio, o sentido da nossa existência, e não importa que sejamos de países diferentes, a linguagem do corpo é universal. A dança nos une.

Pensar que daqui a pouco estaremos encarando o palco como o desafio das nossas vidas, como nossa única oportunidade de criar um laço com o público é como um combustível extra, um incentivo a mais para buscar o salto perfeito, o melhor pas de valse.

Tem que ser perfeito. Tem que sair como eu quero.

Juliana tem cara de quem se impõe num palco só com o olhar, tão segura é na execução de suas pirouettes no centro. O eixo de seu corpo esguio, de proporções perfeitas, é sempre estável, o que deixa bem claro que ela é uma bailarina aplicada e que aprendeu muito bem em sua escola.

Nos exercícios de diagonal, faço par com uma bailarina de traços indígenas que usa collant regata azul água. Estou ligeiramente à frente dela, mantendo uma distância segura, e só consigo enxergar um borrão de seus movimentos enquanto avançamos. Sinto um puxão na panturrilha direita ao ficar na ponta do pé para girar renversé, mas consigo me manter em equilíbrio até chegar à extremidade do palco. Fazemos a pose final e corremos saltitando e sorrindo em direção ao outro lado do fundo.

Observo da bancada acima do palco as pessoas postadas nas grades. Estão atentas, nos filmando e fotografando. Espero estar causando a elas uma boa impressão, porque estou dando tudo de mim.

Minha parceira e eu fazemos a pose inicial e começamos a executar os mesmos passos. Também sinto a panturrilha esquerda. Como da outra vez, não deixo meu rosto demonstrar que estou sentindo dor e continuo sorrindo.

Como sempre ocorre depois de uma aula com um professor de renome, tiramos uma foto de recordação com a professora, e cada um sai por uma direção.

- O que achou da aula? - Jordana põe a mão em meu ombro enquanto descemos a escada do palco e caminhamos para as fileiras de cadeiras.

- Legal - sou econômica na resposta. Apoio a mão numa das cadeiras, faço movimentos circulares com os pés.

Jordana estreita os olhos.

- Está sentindo dor na panturrilha?

Faço um sinal afirmativo.

- Nas duas.

A ruiva morde o lábio inferior.

- Isso pode ser um problema.

O semblante compenetrado da minha amiga denota preocupação, o que não creio que seja o caso. Já fiz aulas sentindo dores mais agudas, posso aguentar.

- Não conta pra Letícia, está bem? - olho-a bem dentro dos olhos.

- A Letícia tem muitas coisas com que se preocupar, é claro que eu não vou dizer nada.

- Conto com você.

Ao dizer isso, momento o outro pé.

- Eu tenho spray antiinflamatório na mochila - o oferecimento da minha amiga é mais que bem vindo.

Balanço a cabeça em afirmação.

- Já volto.

Assim que Jordana se distancia de mim, inclino o tronco para massagear minhas panturrilhas, e não sei por que, mas parece que há caroços nelas.

De repente ouço barulhos de passos se aproximando de mim, e mesmo antes de levantar o corpo sei que são sapatilhas de ponta tocando o chão.

Olho instintivamente para Juliana. Seu rosto branco, com algumas sardas pontilhando o nariz, formam um lindo conjunto com os olhos verdes claros, parecidos com azul. Ela transmite confiança em sua postura graciosa.

- Hola. Eres brasileña, no? Como té llamas?

Mesmo não falando espanhol, consigo entender que ela está perguntando meu nome.

- Sofia - hesito antes de responder.

- Soy Juliana - ela se adianta pra me cumprimentar com um beijo no rosto.

- Ah! Un gusto conocerla.

A ruiva argentina delineia um sorriso gentil, achando graça na minha pronúncia imperfeita. Retribuo, um tanto encabulada.

Na minha cabeça perpassam várias perguntas: essa garota é arrogante como o senso comum dos brasileiros descreve os argentinos? Ela é legal mesmo como seu sorriso faz supôr ou só está sendo gentil agora, pra logo depois me provocar?

O sorriso dela aos poucos se desfaz, mas a expressão de gentileza fica. Ela deve ter percebido que não sou fluente em seu idioma, por isso compreende que é impossível nosso diálogo continuar.

- Hasta - a garota de cabelo louro-escuro começa a se distanciar, acenando com os dedos.

Murmuro um tchau.

Jordana emparelha ao meu lado com um frasco metálico nas mãos.

- Aqui, passe bastante nas panturrilhas - ela orienta.

Sinalizo em afirmação, agradecendo. De longe vejo os trabalhadores responsáveis pela iluminação e pelo som voltando ao palco para os últimos ajustes. Eles murmuram termos técnicos em espanhol, e fico me sentindo um corpo estranho por não compreender uma língua que eu devia dominar.

A primeira lição que aprendo é que, se eu quiser ter uma carreira artística internacional, tenho que estudar outras línguas. Não quero ter para sempre a sensação de insegurança todas as vezes que um estrangeiro puxar assunto comigo.

...

A coreografia que estou ensaiando se chama Primavera dos Sentidos. Me foi dada por Javier Canegusco logo que o vídeo da minha apresentação foi um dos escolhidos, e ensaiei muito nos dias que precederam a competição.

É um balé contemporâneo cheio de virtuosismo e energia, do começo ao fim, mas intercalando momentos de expressividade artística, com movimentos mais marcados. Eu encarno uma jovem que se sente oprimida e tem dentro de si o desejo de lutar para quebrar suas amarras, mas não consegue se expressar por palavras.

Letícia disse que esse balé combina comigo e com ninguém mais. Aliás, Canegusco não cria nada aleatório para os bailarinos com quem trabalha. Sempre lhes abre portas para que a criatividade e o potencial deles criem algo mágico.

Assisto sentada aos ensaios dos demais participantes ao mesmo tempo em que me conecto às energias emanadas pelo palco.

Faltam quase quatro horas para o começo das apresentações. É tão pouco tempo. Ao mesmo tempo, parece uma eternidade.

Relembro todos os degraus que subi pra chegar até aqui, as tantas vezes que ouvi a palavra não, as tantas portas que se fecharam pra mim e os dias em que voltei pra casa chateada, achando que nunca chegaria a lugar algum.

Quando levanto os olhos e vejo os lustres importados, os camarotes iluminados e importantes profissionais da arte me observando enquanto ensaio agora minha variação clássica, percebo que não é um sonho, mas algo real, tangível.

Eu tenho uma grande responsabilidade aqui e sei que será bastante difícil, mas eu vou dar o melhor de mim. É a chance da minha vida, e quando essa noite terminar, quero ligar para meus pais e contar que eu me comportei como uma vencedora.

3k de palavras









Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top