XVII - Talvez eu não deseje ser protegida
Os homens de Henrique chegaram pela tarde ao esconderijo do bando, localizado na clareira de uma floresta próxima à cidade. A casa, há muito abandonada e dita como assombrada pelos moradores das redondezas, era perfeita para que não fossem incomodados em momentos de crise como aquele.
O chefe saiu do quarto de Lena, trancou a porta e foi ao encontro deles, mas de preocupou ao perceber que alguns estavam feridos e que, nem todos os que saíram, haviam voltado.
— É muito bom vê-los aqui. — Ele começou, puxando a cadeira para que um homem com a perna ferida se assentasse.
— Infelizmente não fomos todos agraciados com a possibilidade de retornar, chefe.
— Onde está o Carlos?
— Ele salvou a esposa do prefeito. — O homem de confiança de Henrique se aproximou — Mas foi atingido ao sair do túnel.
— Malditos infelizes. — Ele amaldiçoou os homens de Rogério — Diga à família dele que continuarei enviando os pagamentos a eles, com um bônus. Não o trará de volta, mas eles poderão viver seu luto sem preocupações com o alimento do dia seguinte.
— Eu direi a eles.
— E o que mais vocês sabem?
— Você resgatou a esposa do delegado? Não se sabe nada a respeito dela na cidade.
— Ela está a salvo em um dos quartos.
— Sendo assim, creio que esse assunto deva ser tratado em seu escritório, para evitar que ela escute algo.
Henrique sentiu seu coração congelar ao perceber do que se tratava a conversa.
— É... É claro. Vamos ao meu escritório.
Os dois homens caminharam em direção à sala e se trancaram nela.
— Caberá a você decidir o que fazer com as informações que eu lhe darei agora. — O homem falou, entregando um como com uísque para Henrique.
— Está me assustando, Xavier.
— Sinto em lhe informar que o falecimento do prefeito foi confirmado.
— Maldito Rogério. — Henrique socou a mesa, desconcertado.
— Além dele, alguns outros empregados também não sobreviveram. Mas a informação mais curiosa que eu recebi, diz respeito ao seu rival.
— O delegado desconfia de algo?
— Ele entrou na casa em meio ao ataque e, segundo dizem os populares, foi atingido e está em estado gravíssimo. Precisou, inclusive, ser transportado às pressas para a capital do estado e não se sabe se sobreviveu ao caminho.
— Isso é excelente.
— Como é?
— Não torço para que ele tenha morrido, mas não se tem notícias a seu respeito, então posso usar isso a meu favor. O que estão dizendo sobre a Lena?
— Como esperado, acreditam que ela tem culpa, juntamente com você. Os boatos que circulam são que, ou ela foi sua cúmplice e os dois fugiram juntos, ou ela virou fumaça em meio às explosões.
— Sendo assim, precisaremos fingir que ela está morta antes que o marido volte, se é que voltará. E para ela, diremos que ele morreu, na tentativa desesperada de salvá-la dos escombros.
— Você não acha esse plano perigoso?
— Não poderemos voltar para essa cidade, isso é um fato, mas a Lena jamais iria sem dar satisfações para o esposo. Ela não pode mais se aproximar daquela família, o sogro já lhe fez muito mal e eu não permitirei que o faça novamente, mesmo que, para isso, eu precise fazê-la sofrer.
— Eu farei o que você me pedir.
— Quando será o sepultamento do Rodrigo?
— Escutei que seria amanhã, ao fim da tarde.
— Eu a levarei até o irmão. Milena não teve a oportunidade de se despedir da mãe e da irmã, mas ao menos desejo que ela possa fazer pelo irmão.
— Seu cavalo estará pronto e organizarei a escolta que precisar.
— Não será necessário, desejo chamar o mínimo de atenção possível.
— Como quiser. Com licença, caso precise de mim, estarei ajudando os feridos.
O homem saiu. Henrique permaneceu por alguns segundos apoiado sobre a mesa, mas logo respirou fundo e se ergueu. Não conseguira salvar a vida de seu melhor amigo, de quem tanto tinha se afastado nos últimos anos — não somente de forma física, mas também em ideais —, mas estava tranquilo em saber que, ao menos, tivera a chance de salvar dois dos maiores amores daquele homem bom, ainda que isso tivesse custado a vida de um de seus melhores homens.
Agora ele tinha duas grandes tarefas. A primeira e mais difícil, era de contar à mulher que amava, que ela estava completamente sozinha no mundo — ainda que isso não fosse uma completa verdade —, mas depois ele deveria se preparar para executar o plano que planejara por anos: se aliara a políticos da pior espécie para conhecer seus lados mais sombrios e, quando chegasse a hora, justificar sua fama de justiceiro ao matar todos, como mereciam.
Lena não deveria saber dessa sua face maligna. A mulher que ele conhecera jamais o perdoaria por desejar tirar a vida de tantas pessoas, ainda que merecessem o pior. Mas de algo ela deveria saber, e era chegada a hora de contar a sua amada sobre a morte de Rodrigo.
...
O clima no grande hospital da capital era tenso. Por mais ensanguentado e rasgado que estivesse, o homem em estado gravíssimo sobre a mesa de cirurgia tinha grandes chances de ser filho do político mais temido e poderoso do país, e falhar não era uma opção.
Ao ser informada pela delegacia sobre o estado do desconhecido que supostamente era Pedro, Virginia correu para o hospital, sem sequer se lembrar de avisar ao antigo patrão sobre a situação delicada. E Rogério não gostou nem um pouco do descuido da mulher, ao entrar na sala de espera e se deparar com ela, assentada em uma cadeira afastada.
— Que demônios você está fazendo aqui?
— Um dos policiais que acompanhou o Pedro até aqui me avisou. Peço perdão por não ter comunicado ao senhor o que aconteceu, fiquei transtornada e corri para cá.
— Você não é ninguém para acompanhar meu filho nesse momento. Onde está a maldita esposa dele?
— Não se sabe ao certo. Os sobreviventes afirmam tê-la visto antes do ataque começar, mas ninguém teve notícias desde então.
— Tomara que aquela inútil esteja apodrecendo sob a terra.
— Que coisa horrível de se dizer.
— Não se faça de inocente, ambos sabemos que você só está aqui porque tem interesses em meu filho. O que deseja? Que ele adote seu bastardo para que vocês herdem minha fortuna e poder?
— Em primeiro lugar, meu carinho por seu filho é sincero. Em segundo lugar, respeite meu filho, ele não tem culpa de seus preconceitos e já está muito triste com o que aconteceu com os padrinhos.
— Eu não estou desrespeitando seu filho, pelo contrário. Meu poder é muito grandioso para se perder sem herdeiros.
— O que está insinuando?
— Que meu filho passou anos sendo fiel àquela infértil maldita e se esqueceu de dar um sucessor para meu sobrenome. Já você, tem um filho homem, de pai desconhecido.
— O senhor me respeite.
— Calada, eu estou pensando. O que eu lhe proponho é que acompanhe meu filho nesse momento difícil e, caso ele sobreviva, faça o possível para conquistá-lo e fazê-lo assumir seu bastardo.
— O que pretende com tudo isso?
— São tempos difíceis e minha dinastia se faz mais necessária que nunca. Eu preciso que você me garanta que André concordará em ser meu sucessor e eu lhe garantirei prosperidade em minha família.
— É uma proposta tentadora, não pelo dinheiro ou pelo poder, porque isso não me importa, mas por seu filho.
— Não me importam suas razões, apenas preciso que alguém devolva o juízo ao meu filho e prosperidade à minha família.
— E o que o senhor pretende fazer caso eu não aceite?
— Encontrar alguém que aceite, é claro. Apenas não se esqueça que eu não proponho nada a ninguém pela segunda vez.
— Isso é uma ameaça?
— Mas é claro que não. Porém repito que são tempos difíceis.
— Está bem, eu aceito sua proposta, mas repito que o faço pelo carinho mútuo entre meu filho e seu filho, e pelo grande amor que sinto por Pedro.
— Seja bem vinda à família.
— Ainda não. Eu aceitarei fazer parte, porém não será nada fácil fazê-lo se afastar da esposa.
— Aquela maldita delinquente jamais voltará para minha família e posso lhe assegurar isso. Se a morte não fez o favor de levá-la, o que eu duvido muito, passará o resto de sua miserável vida em uma cela pequena e escura, por traição.
— O senhor acredita mesmo que ela teve alguma culpa no que aconteceu?
— Ela tem culpa desde que se envolveu com aquele outro delinquente. Agora as máscaras de ambos cairão e eles não serão mais um problema para nós, isso eu lhe asseguro.
...
Milena e Henrique continuavam parados, frente-a-frente, como tinham feito pela última hora. Calados. Nenhum dos dois tinha coragem de pronunciar sequer uma palavra.
Ela estava aflita. O irmão lhe confiara a segurança da esposa, mas Lena sequer sabia onde Lilian estava. Sequer sabia se Rodrigo conseguira sair vivo daquele inferno — e era bom que não soubesse a verdade por hora.
Henrique, por sua vez, se culpava por não prever que Rogério adiantaria o horário previsto para o ataque, com a intenção de impedir que o justiceiro fizesse algo para diminuir o estrago. Perdera o amigo e precisaria encontrar forças nas profundezas de seu coração machucado para contar a verdade.
— Já basta. — Lena interrompeu o silêncio — Eu preciso saber como meu irmão, minha cunhada e sobrinha estão e, principalmente, preciso saber que demônios você e seus homens estavam fazendo lá.
— Eu não sei como sua família está. — Ele mentiu impulsivamente.
— Mas sabe a resposta de meu segundo questionamento.
— Eu preciso que você esteja calma para lhe responder esse questionamento.
— Não existe forma de eu me acalmar, quando minha família inteira estava dentro daquele fogo cruzado.
— Meus homens já estão averiguando, não se preocupe com isso.
— Quem me garante que seus homens não são os responsáveis por aquela barbárie? Afinal, nós dois sabemos o que os homens de seu pai fizeram anos atrás.
— Eu não devo ser responsabilizado pelos erros de meu pai. Ele errou em seu casamento, mas o fez pensando no melhor para todos.
— Matar minha irmã era o melhor para todos?
— Não, mas algumas pessoas dentro daquela festa deveriam ser mortas, e essa atitude talvez tivesse impedido a carnificina que voltou a acontecer essa manhã.
— Está justificando as atitudes de seu pai?
— Não. Estou dizendo que Rogério Montenegro foi o mandante do ataque de hoje e que a morte dele, 16 anos atrás, teria impedido que sua família fosse atacada hoje. Teria impedido que seu irmão fosse morto essa manhã. — Henrique cuspiu a verdade. Não adiantava mais fingir, mentir ou adiar, pois estava seguro de não teria mais notícias sobre Lilian ao menos até o fim da noite.
— Você acabou de dizer que não sabia o que tinha acontecido com minha família. — Ela estava em choque.
— Eu menti. Não queria contar dessa maneira para você, mas acabei fazendo o que não desejava.
— E quando pretendia me contar?
— Quando fosse o momento certo.
— E QUANDO SERIA O MOMENTO CERTO? — Lena se exaltou — Quando ele já estivesse enterrado? Eu preciso vê-lo, eu preciso abraçar meu irmão mais uma vez.
— Você não pode abraçar seu irmão.
— Está duvidando de minha capacidade de fugir daqui, mesmo sob chuva de balas de seus capangas?
— É claro que não, mas jamais deixariam você se aproximar do corpo. Lena, me escute por favor, eu estou sendo tratado como o principal suspeito desse ataque e o seu sumiço significa culpa ou morte.
— Eu não estou morta, tampouco sou culpada.
— Eles não sabem disso e nem se importarão em investigar antes de culpá-la.
— Pedro é o delegado e jamais acreditaria em minha culpa.
— Primeiramente o Pedro sequer poderia conduzir esse caso. Em segundo lugar, a urgência por encontrar um culpado está fortemente ligada a ele.
— O que quer dizer?
— Eu preciso que você esteja tranquila agora.
— O que aconteceu com meu marido?
— Não sabemos.
— COMO ASSIM NÃO SABEM? Meu marido não estava lá quando tudo aconteceu.
— Ao que parece ele entendeu a mensagem enviada pelo pai, mas não chegou a tempo de salvá-la e foi atingido pelas explosões.
— Isso só pode ser mentira. — Ela estava desconsertada e mal conseguia se manter de pé — Isso é uma mentira sua para me manter aqui, não é mesmo?
— Eu juro a você que essa é a mais pura verdade. — Ele a apoiou e a levou até a cama para que assentasse — Assim como também é verdade que ele foi levado às pressas para uma cidade maior e ninguém tem notícias desde então. Mas prometo a você que enviarei homens para investigarem e, caso você deseje, irei pessoalmente até lá.
— Jamais. Sabemos muito bem que você o mataria se tivesse a oportunidade.
— Eu não serei hipócrita de dizer que não gostaria de eliminar um rival, porém não é momento para esse tipo de comentário.
— VOCÊ É DETESTÁVEL. — Lena se descontrolou completamente e partiu para cima de Henrique, depositando nele diversos socos que o homem sequer defendeu — Entenda de uma maldita vez que meu nome é Milena Montenegro e que Pedro é, além de meu marido, o ÚNICO amor da minha vida.
— Não me importo com suas palavras, apenas com sua segurança, e continuarei fazendo de tudo para protegê-la mesmo com seus insultos e reclamações.
— Você se transformou em meu pai.
— Não ofenda de tal maneira alguém que te ama tanto quanto eu.
— Você não me ama, apenas deseja me ter somente para si.
— É claro que eu prefiro tê-la somente para mim ao invés de morta ou trancafiada pelo resto da vida.
— Como tem tanta certeza de que esse será meu destino?
— Eu já lhe disse que pediram minha cabeça como prêmio. Se descobrirem que saímos de lá juntos, nos ligarão e você arcará com as consequências injustamente. Me perdoe, eu sou o culpado por todos os seus problemas e juro que não me orgulho disso. Mas, exatamente por isso, tenho o dever de protegê-la.
— Eu já estou cansada de ser tratada por todos ao meu redor como uma garotinha indefesa e incapaz de tomar as próprias decisões.
— Eu sei que você é capaz de tomar suas próprias decisões, mas não estou seguro de que, nesse momento, seriam as mais acertadas.
— E você não é ninguém para decidir isso.
— Eu sou alguém que deseja protegê-la.
— Talvez eu não deseje ser protegida.
Ela empurrou Henrique e, em um piscar de olhos, o desarmou.
— Como você fez isso?
— Eu repito que não desejo ser protegida. — Ela respirava ofegante enquanto apontava a arma para o ex-namorado.
— Já sabemos que você tem uma péssima desenvoltura com armas, então por favor, solte isso pelo bem de todos.
— Eu não me lembro de ser tão ruim assim com armas. — Ela sorriu com ar de deboche — Inclusive acredito que você ainda tenha uma recordação da última vez que tentou me obrigar a fazer algo que eu não desejava e eu lhe apontei uma arma.
— A bala ficou alojada e ainda dói no inverno.
— Está vendo? Eu sei me defender.
— Se você atirar em mim, meus homens entrarão aqui e acertarão um tiro em sua cabeça antes que eu possa dizer que não.
— Que pouco controle tem sobre seus homens.
— Eles são leais a mim e prezam pela minha segurança acima até de minhas próprias vontades.
— E por isso deseja fazer o mesmo comigo?
— Com o tempo, percebi que essa forma exagerada de proteção era a melhor para mim.
— Mas ao contrário de você, eu não sou uma criminosa.
Ele sorriu torto e pulou em direção de Lena, que sequer teve tempo de esboçar uma reação antes de ser jogada contra a parede e sentir as mãos presas pelas de Henrique acima de sua cabeça.
— Como pode perceber, você precisa de minha proteção. — Eles estavam tão próximos, que o ar quente que saía das palavras de Henrique se misturou com a respiração ofegante de Milena.
— Não pode me prender por toda a vida.
Ao dizer essas palavras, Lena fechou os olhos e apertou o gatilho da arma.
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