XIX - Somos como Romeu e Julieta, mas condenados a matar para amar
Já era fim de tarde quando os últimos moradores deixaram o cemitério. Apesar de ansiosos, Lena e Henrique permaneceram assentados sobre os galhos de um grande carvalho, observando de muito longe a movimentação. Eles diriam a qualquer um que lhes perguntasse, que não se moveram para garantir que mais ninguém se aproximasse do túmulo, mas não seria verdade: o temor em se aproximar era porque não queriam ver com os próprios olhos o amigo e irmão sem vida e debaixo da terra.
Depois de longos minutos de inatividade, Lena quebrou o silêncio, com o tom de voz mais frio que conseguiu pronunciar:
— Vamos terminar logo com isso.
— Está bem, acredito que todos já se despediram.
— Nem todos.
— Eu sei, ainda falta que nós dois nos despidamos do Rodrigo.
— Não estou falando de nós, estou falando da Lilian.
— Alguns dos meus homens se infiltraram no enterro e irão me atualizar logo que retornemos ao esconderijo. Agora se apresse, mas com cuidado, não quero que fique escuro o suficiente para que precisemos de lamparinas.
Ele ajudou para que ela descesse da árvore e os dois caminharam até o cemitério, onde pularam o muro e se dirigiram, diretamente, ao túmulo da família de Lena.
— Você permite que eu tenha alguns instantes de privacidade com meu irmão? — Lena, já ajoelhada em frente à lápide, pediu a Henrique — Prometo não demorar.
— Demore o tempo que quiser. — Ele se afastou e começou a vigiar o perímetro.
— Meu irmão... — Ela logo começou a chorar — Eu jamais imaginei que voltaria a vê-lo depois que perdemos a Raquel mas, nesse pouco tempo em que estive novamente ao seu lado, me senti como se jamais tivesse saído. Nós sempre nos completamos e pensamos parecido, e eu levei comigo Deus ensinamentos por todos esses anos. É difícil pensar que estamos nos separando novamente sem um adeus, mas é ainda mais difícil não ter a esperança de ouvir sua risada. Minha maior dor é saber que não tivemos tempo. Você me levou até o Henrique, e eu estou segura de que, naquele dia, assinei minha sentença. Mas ele também é o responsável de que eu esteja viva. — Ela sorriu — E eu sequer sei se estar viva é uma benção ou um castigo. Talvez eu mereça esse castigo. Talvez eu mereça terminar a vida ao lado da única pessoa pela qual já tive a coragem de lutar. Eu deveria ter lutado mais por você e pela Raquel e jamais me perdoarei por isso. — Lena tirou o cordão de castelo do pescoço e o escondeu em uma greta despercebida no túmulo — Eu já não tenho alma, estou seca e morta por dentro e, por isso, deixo aqui esse colar, como símbolo do que eu já fui, para que a minha alma descanse ao lado de vocês. Eu agora sou apenas um corpo atormentado, que vaga por esse mundo com o único objetivo de garantir que mais nenhum inocente morra por minha culpa. Essa é a promessa que eu lhe faço, meu irmão: eu dedicarei a minha vida a garantir que sua morte não seja em vão e que nunca outra vida inocente seja perdida em meu nome.
Ela secou as lágrimas, se levantou e caminhou até Henrique, que compreendeu o gesto e caminhou em direção ao túmulo.
— Meu amigo, eu gostaria tanto que o ódio entre nossas famílias não destruísse a amizade tão bonita que tivemos na infância. Eu não tenho muito a lhe dizer, apenas pedir perdão por ter escolhido a vida da Lena ao invés da sua. Eu pensei muito no que fazer, mas lhe conheço muito bem e sei que jamais me perdoaria se eu não a salvasse. Creio que, mesmo com o passar dos anos e nossas mudanças, continuamos tendo algo em comum: o amor incondicional pela Lena. Prometo protegê-la com minha própria vida a partir de hoje e prometo que essa maldita busca pelo poder, que um dia tirou de nós tudo o que mais amávamos, terá um fim. Hei de castigar, um a um, cada um dos responsáveis pela nossa desgraça, eu prometo a você.
— Quem são vocês, e o que fazem aqui?
O homem, antes envolvido na discussão com Vicente, se aproximou rapidamente e não permitiu que Henrique percebesse sua chegada. Muito menos foi possível que ele alertasse Lena para que não mostrasse o rosto ao homem.
— Corra! — Henrique gritou para Lena, que correu em direção ao muro, para saltar por ele.
— Eu sabia que o rosto da morte não morreria tão facilmente, e sabia que você tinha alguma relação com isso, Henrique Monteiro.
— O que o levou a voltar ao cemitério? Com certeza não foi o carinho que sentia pelo Rodrigo.
— Realmente não foi. Fico muito triste pela família, mas a morte dele me foi muito mais útil do que a vida.
— Você é desprezível.
— E você, um assassino.
— Todos somos, a diferença é que você não é homem o bastante para sujar as mãos de sangue.
— E o que pretende fazer? Atirar em mim, para que eu não conte a todos que o rosto da morte ainda vive?
— O que me impede de fazer isso?
— O barulho que sua arma faria.
— Eu não preciso atirar em você para manter nosso segredo em segurança.
— Nada do que fizesse ficaria impune. Admita que perdeu. Sua mentira foi descoberta por um dos homens mais importantes do país e isso é tudo.
— Tem razão, você é um homem muito importante... — Henrique colocou a mão no bolso e tirou dele uma seringa — E será o exemplo perfeito do que eu hei de fazer pelos próximos anos. — Sem aviso, ele ficou a seringa no pescoço do homem, que prontamente começou a se contorcer e cair no chão — Nos vemos no inferno.
Henrique correu rapidamente e saltou o muro no tempo perfeito para que não fosse visto pela mulher do homem que, ao vê-lo caído e quase sem vida, se ajoelhou sobre ele.
— Ro... rosto... — Ele falava com muitíssima dificuldade — da m... morte. — Foi o último que disse antes de desmaiar para sempre.
...
— Não pare de correr, temos que chegar logo à parte densa da floresta. — Henrique puxava Lena em total desespero.
— Você pode me explicar o que fez com aquele homem?
— Não há tempo.
— Você o matou. — Ela parou, repentinamente.
— Vão nos procurar, por favor, vamos.
— Eu não vou a lugar nenhum até me confirmar.
— Aquele maldito merecia, ele passou o tempo inteiro caçoando da morte de seu irmão.
— Você acha mesmo que o Rodrigo aprovaria tamanha selvageria?
— Selvageria é o que ele e os amigos promovem. Eles são os culpados por tudo isso.
— Matá-lo não lhe faz diferente.
— Por Deus Lena, se apresse e depois discutiremos a moral das minhas atitudes.
— Eu não vou a lugar nenhum com um assassino.
— Ele iria denunciá-la.
— Eu sou inocente, não há o que temer.
— Ninguém jamais acreditaria.
— Não me importa! Eu estou farta de você! Toda a maldição da minha vida está ligada a você, todo o meu sofrimento tem o seu toque.
— Já conversamos sobre a morte dos seus irmãos. Eu só quero te proteger por favor acredite em mim.
— Eu não posso estar ao seu lado. Isso nunca vai funcionar, porque a nossa história está manchada de sangue de inocentes.
— Eu não vou lhe abandonar.
— Primeiro precisará me encontrar.
— O que...
Antes que Henrique terminasse de falar, viu Lena desaparecer em meio às árvores e à iluminação precária daquele início de noite.
Ela correu com sua vida. Não queria se condenar ou condenar Henrique a viver aquela vida proibida. Lena não pensava somente nos irmãos ou nas vítimas dos massacres, mas também no filho que Henrique jamais imaginou ter gerado.
...
A dor que Pedro sentia era quase insuportável, e esse era o indicativo perfeito de que algo muito ruim acontecera. Não se lembrava de nada, apenas do barulho ensurdecedor das explosões, quando se meteu em meio à guerra para salvar a esposa.
— O que está acontecendo? — Ele perguntou, ainda sem conseguir abrir os olhos.
— Acalme-se senhor. — A enfermeira pediu.
— Eu preciso ver minha esposa, por favor, traga a minha esposa até mim.
— Sim senhor, eu trarei. Só peço que fique tranquilo, seu estado ainda é grave.
— Eu prometo me acalmar, apenas traga a minha esposa até aqui.
A enfermeira saiu e retornou alguns minutos depois, e Pedro sentiu alívio ao ver a segunda silhueta entrar pela porta do quarto. Mas algo estava errado e, conforme a loira se aproximava, ele pôde perceber o que era.
— Olá Pedro, estou feliz de que esteja bem.
A voz que ecoou em seus ouvidos não era a que desejava. Não foi o timbre de Lena que ele ouviu, mas sim o de Virgínia.
...
Quase não havia mais luz natural, mas Lena insistia em correr o mais rápido possível por entre as árvores. Sequer podia pensar no que faria quando ficasse sozinha e no completo escuro.
Sorte a dela não gastar seus pensamentos, afinal, alguns minutos depois de perder Henrique de vista, foi surpreendida por um peso sobre seu corpo, que a jogou como uma pedra no chão e travou seus braços na altura da cabeça.
— Não se atreva a fugir novamente, ou eu prometo que não serei carinhoso. — Feliz ou infelizmente, era Henrique.
— Como me alcançou?
— Você buscou a clareira pelo caminho mais difícil. Eu apenas segui pelo fácil.
— Me deixe em paz!
— Eu não vou deixá-la! Eu sei que já aconteceram muitas coisas ruins enquanto estivemos juntos, mas estou seguro de que poderemos fazer boas coisas também.
— Não podemos.
— Que seja, o cavalo está logo ali na frente — Ele apontou para o cavalo, no final da clareira — Eu vou levá-la ao esconderijo, queira você ou não.
— Não pode obrigar que eu suba nesse maldito cavalo.
— Sim, eu posso.
Ele a puxou até o cavalo e, mesmo com muita resistência, conseguiu pegar um pano e amarrar as duas mãos de Lena em um nó, transpassadas pelos equipamentos de montaria. Logo em seguida, ele a vendou.
— O que pensa que está fazendo? — Bradou Lena.
— Você está presa ao cavalo. Agora sua única opção é acompanhá-lo caminhando.
— Caso não tenha percebido, você tampou minha visão.
— Eu sei disso e você também sabia que não pode ver o caminho.
— Como pretende que eu caminhe junto ao cavalo se não vejo a estrada?
— Esse problema não é meu, foi você quem decidiu me desafiar.
— Eu não lhe desafiei, até porque você não tem nenhuma autoridade sobre mim.
— Como queira. — Ele montou no cavalo e o animal começou a se movimentar, arrastando Lena.
— Eu não posso acreditar que esteja falando sério. — Ela resmungou, enquanto tentava acompanhar o animal.
— Eu jamais mentiria. Entretanto, você pode subir no cavalo e ele lhe levará até o esconderijo.
— Está bem, eu desisto. Mas não pense que pretendo ceder aos seus caprichos por muito tempo.
— Conversaremos sobre isso no esconderijo.
Ele ajudou Lena a subir no cavalo e seguiu o caminho até o esconderijo.
...
— O que está fazendo aqui? — Pedro se alterou ao ver Virgínia — Onde está a Milena?
— Por favor não fique alterado, não é bom para você.
— Não me importa! Onde está a minha esposa?
— Não sabemos.
— O que quer dizer?
— Os socorristas ainda não a encontraram.
— AINDA NÃO A ENCONTRARAM? — Ele se desesperou.
— Por favor acalme-se, ou precisarão lhe dar um remédio forte para dormir.
— Não há maneira de me acalmar, a não ser que você me explique exatamente o que está acontecendo.
— Eu lhe explicarei, mas preciso que pare de gritar.
— Está certo, já me acalmei, agora diga o que aconteceu.
— Houve um atentado à casa da família da Milena, com um número muito grande de mortos mas, até o momento, nenhum dos corpos encontrados pertenciam a ela.
— Isso significa que ela está viva?
— Eles não podem nos dar certeza de nada até encontrarem um corpo ou a Milena.
— E por que não a teriam encontrado?
— Creio que seja melhor não falarmos sobre isso nesse momento, você deveria descansar.
— Eu não posso descansar sem saber se minha esposa está em segurança ou não.
— Por que se preocupa tanto com ela? Acaso não percebe qual motivo a Milena teria para estar desaparecida?
— Não percebo. Você poderia me explicar sua teoria?
— Não é uma teoria, é o boato que circula por toda a cidade, de que esse atentado, assim como o que aconteceu em seu casamento, teve participação do Henrique Monteiro.
— E onde entraria a Milena nessa história?
— O boato é que ele organizou tudo isso para voltar a ficar com a mulher que amava. Ou seja, a Milena também é culpada na carnificina que aconteceu no dia do aniversário dela.
— Isso é ridículo, a Milena jamais faria isso comigo, apesar de nossos problemas conjugais.
— Tem relação com o André?
— Obviamente sim, ela não aceitou muito bem a traição.
— Você não precisa se martirizar por aquela noite, como se tivesse traído sua esposa.
— Eu a traí.
— Você sequer a escolheu como esposa e ela se casou com você estando apaixonada por outro homem.
— Eu não quero falar sobre esse assunto. — Ele sentiu a dor no rosto retornar, ainda mais insuportável que antes — Ai.
— O que foi?
— Estou com uma dor insuportável por baixo das ataduras. O que aconteceu?
— Creio que você deva descansar e depois conversaremos sobre tudo.
— O que aconteceu com o meu rosto? Por que sinto tanta dor?
— Eu preciso que você não se altere.
— Já basta de tentar impedir que eu me altere em situações que eu devo me alterar. Que demônios aconteceu com o meu rosto?
— Parte da explosão infelizmente atingiu o seu rosto e eu, honestamente, não sei dizer quão deformado ele ficou.
— Não pode ser. — A voz era a única forma de expressão de Pedro, já que o rosto estava inteiro envolto em faixas.
— Não se preocupe com isso. — Virgínia se aproximou e segurou a mão do amado — Não importa o que aconteça, eu estarei aqui para ajudá-lo a superar isso, caso a Milena não retorne.
— Ela irá retornar. — ele puxou a mão — Por favor, avise aos meus colegas da delegacia que eu estou bem e que, assim que me liberarem do hospital, estarei lá, aguardando por notícias de minha esposa.
— Como queira, senhor. — Virgínia respondeu, seca, e saiu do quarto.
...
— Abra os olhos com cuidado, não quero que a luz os machuque. — Henrique falou, enquanto tirava o pano dos olhos de Lena, já no quarto onde ela estava abrigada — Eu peço mil desculpas pelo modo como estou agindo, mas acredite que é para o seu bem.
Ela aguardou, calmamente, que as mãos fossem desamarradas e, sem dizer uma só palavra, golpeou o nariz de Henrique, que imediatamente sangrou.
— Nunca mais — Ela levantou a cabeça do homem pelo queixo, furiosa, até conseguir olhá-lo nos olhos — escute bem, nunca mais em sua vida, volte a me tratar como uma das prostitutas baratas que frequentam esse lugar!
— Eu jamais a tratei como uma prostituta. E ainda assim, eu sempre tratei muito bem todas as garotas que vieram aqui, pois é um trabalho como qualquer outro.
— Estamos de acordo que é um trabalho, mas você terá que concordar comigo que elas recebem dinheiro para aceitarem o que você desejar fazer com elas.
— Sempre com muito respeito.
— Então temos um problema, porque você não me paga sequer um centavo e não respeita minha opinião e meus desejos em nenhum momento. — Ele curvou a cabeça para cima, tentando diminuir o sangramento, mas Lena novamente o puxou pelo queixo — Eu não sou sua propriedade, não sou sua serva e não permito que você me amarre como um animal e me traga à força para um lugar que eu sequer sei onde é.
— É parte de sua segurança não saber a localização desse lugar, já falamos sobre isso.
— Que segurança? De quem me protege?
— Dos que desejam lhe fazer mal.
— Você está me mantendo sequestrada nesse lugar que eu sequer conheço. Eu não me sinto segura aqui. Pelo contrário, estou assustada.
— Eu juro que jamais desejei assustá-la. Mas eu já perdi você uma vez por não conseguir livrá-la das mãos do maldito Rogério e dos negócios que ele fazia com o seu pai, mas isso não voltará a se repetir.
— Você já parou para pensar que talvez, e somente talvez, eu não deseje estar escondida e afastada do Rogério?
— Ele tentou matá-la.
— Não. Ele matou meu irmão porque atrapalhou seus planos. Se eu representasse algum risco aos planos dele, já teria sido morta muitos anos atrás, quando não consegui dar um herdeiro a ele.
— Você e o Pedro tentaram dar herdeiros a ele, ou foi um ato de rebeldia?
— Eu não posso gerar filhos.
Henrique se assistiu por alguns segundos e, logo em seguida, gargalhou.
— Me perdoe pela risada, mas é involuntário rir do castigo que ele recebeu. O maldito fez questão de escolher a mãe do herdeiro e, no fim, não recebeu nenhum herdeiro.
— Como pode ser tão desrespeitoso comigo? Eu não sou uma maldita máquina que, simplesmente, não funcionou.
— Não foi isso que eu quis dizer.
— Eu desejei dar um filho ao Pedro, mas não porque o pai ou ele desejavam, mas porque eu queria ser mãe e não pude.
— Eu lhe peço mil desculpas, não sabia de sua história.
— E quer saber? Acho que é hora de contar tudo o que aconteceu a você, até porque imagino que a pergunta que fez, antes de seu comentário de péssimo gosto, teve uma intenção.
— E qual intenção imagina que eu tive?
— Eu conheço a lenda do Rosto da Morte.
— Sabemos que ela não passa de uma lenda urbana.
— Não em sua totalidade.
— Mas é claro que não, porque você realmente se apaixonou pelo herdeiro da família rival, tal qual Julieta por Romeu.
— Romeu e Julieta lutaram e morreram por seu amor, mas nós fomos pobres covardes e permitimos que outros morressem em nome de nossa maldita luta vazia.
— Lutamos pelo nosso amor.
— E de que adiantou? Eu terminei casada e minha irmã, morta.
— Mas agora estamos juntos.
— E agora é o meu irmão que está morto. Não percebe? Somos como Romeu e Julieta, mas condenados a matar para amar. Eu não desejo isso. Eu não desejo um amor que machuca aqueles que eu amo.
— Já não restou ninguém que nós amamos nesse mundo.
— Para mim ainda resta um.
— Não mais. — Ele assentou na cama, puxou Lena para que fizesse o mesmo e, olhando dentro dos olhos de sua amada, revelou a terrível verdade que descobrira — Seu marido não resistiu ao atentado.
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