O COICE DE MULA

"Todo desiquilíbrio psicológico é a perda de contato com a alma. "
Luiz Gasparetto

          O sono foi reparador. Rafael acordou bem-disposto, mas ainda sonolento. Na televisão do quarto está aparecendo a palavra "mute". O programa policial que ele assiste todos os dias, ainda não começou, com isso, Rafael coloca suas mãos atrás da cabeça, prendendo-a junto com o travesseiro. E fica olhando para o teto, pensando como escreverá suas cartas.

          O âncora do telejornal, um homem aparentando sessenta e cinco anos, cabelos brancos e usando um terno cinza com camisa branca, começa falando sobre o assassinato de uma freira, morta queimada dentro de pneus e com um tiro no meio da testa.

"É muito medonho, sem escrúpulos o que aconteceu com a Freira Maria Fernanda Soares e Souza. A moça fazia um trabalho comunitário com crianças de rua, e nas horas vagas era enfermeira do Hospital Correia Picanço, cuidado de pacientes com AIDS. A mãe da moça, ao saber da notícia, desmaiou. A Jovem senhora, chamada Laura Lucena Soares e Souza passa bem, mas não sabe o porquê de terem feito uma atrocidade dessa com sua filha..."

         Rafael sente sua visão falhar. Ele pisca diversas vezes. A televisão aumenta e diminui, como se um zoom tivesse ajustando sua visão, e sua cabeça expandisse e retraísse como um "boom".

— Como assim? O nome da mulher está diferente? Como poderia ter me enganado? — Dando um pulo da cama, Rafael levanta-se e corre tropeçante até onde encontra-se o dossiê. Olhando a foto do arquivo com a que aparece na tela do programa, não há como duvidar que são as mesmas pessoas. Vacilante pega as quatro cartas. Pensa no nome do dossiê, faz a oração para Caronte. Embaralha. Culpada.

— Não pode ser. O que estar errado?

         Oração. Cartas embaralhadas. Culpada.

— Porra! Pensa Rafael. Ela é o alvo.

         Oração. Embaralha. Culpada.

          É quando seu coração gela. O suor frio, que a muitos anos não sente, lhe desce pela espinha. Seu coração acelera.

— Meu Deus... não pode ser! — Rafael, pega papel e caneta escreve numa folha virgem:

"Maria Fernanda Soares e Souza"

           Depois de escrever o nome da moça, pega as quatro cartas, faz sua oração para Caronte, embaralha... inocente.

— Por favor meu Deus, não faça isso comigo... uma inocente não.

          Ele fecha os olhos. Faz a oração. Embaralha. INOCENTE.

— Trocaram os nomes! Não errei! Quem pediu a morte da garota, sabia desse detalhe. Glauco sabia desse detalhe. — Seu coração parece querer sair de dentro do peito. — A freira era inocente! O que ela fez para pedirem a morte dela?

         Rafael, começa a pesquisar os dois nomes. A mulher do primeiro nome, Luciana Aroucha Vilela de fato era culpada por tudo aquilo, mas a Freira Maria Fernanda, não. O assassino deixa o ombro cair para frente, inconformado por ter tirado a vida de uma pessoa inocente.

— Como isso passou pelo Júlio?

         O telefone toca.

— Alô.

— Eu estou vendo o noticiário. Parabéns! Você é infalível.

— Glauco, seu filho da puta! A freira era inocente. Que palhaçada do caralho foi essa? Eu disse que não matava inocentes.

— Para ser sincero, não recordo desse detalhe. Deixa vê... rebobinando a fita, não! Com certeza não. O que me lembro é de você ter jogado a sorte dela nas suas cartas, e deu culpada. A propósito o dinheiro já foi transferido.

— Eu não quero seu dinheiro. Eu não mato inocentes. E quero que saiba de uma coisa, antes de morrer vou foder sua alma. Ainda hoje a polícia terá todo meu depoimento. — A voz de Rafael era sincera, cheia de raiva, mas calma.

— Juliano Américo de Barros.

— Quem é esse cara? Foi alguém que matei? Era seu amante?

— Meu caro Rafael... vejo que ainda não entendeu nada do que está acontecendo... e isso só faz aumentar meu prazer.

— Que porra você está falando?

— Foi difícil de te achar. Mas, eu sabia que foi um trabalho de profissional. — Enquanto Glauco Azevedo está falando, Rafael escreve no papel "Juliano Américo de Barros", faz a oração para Corante e tira a sorte... As de Paus. — A cena do crime estava limpa, ordenada e intacta. Você ainda não se tocou, não é?

— Era seu filho. O filho da puta mereceu morrer. Mesmo sendo seu filho, com certeza mereceu.

— Olha aí... se lembrou dele.

— Não tenho a menor recordação dele, só sei que, se matei era um lixo.

— Ele poderia ser qualquer coisa, a pior pessoa, mas era meu filho e pai de outros três.

— Glauco, a sua sorte foi lançada aqui... e você é culpado. Mas, não irei te matar, seu nome vai constar no meu depoimento à polícia... antes de morrer, faço você pagar por isso.

          Rafael, não entende o porquê da gargalhada saborosa que acaba de escutar. Glauco, ri e chora ao mesmo tempo. Então ele diz:

— Rafael, alguma vez você jogou seu nome na sorte? — Silencio de ambos os lados — Eu estou pouco me lixando para a polícia. E você sempre se lembrará do dia de hoje... um filho pelo outro. — Glauco deflagrou assim o tiro a queima roupa, e desligou. Rafael, passa aqueles ínfimos segundos que é uma eternidade, sentindo o coice na cara. A porrada sem dor e piedade na sua alma.

"... um filho pelo outro. "

         Seu entendimento descortina-se igual uma janela que se abre para o sol.

— Não...não e não. — Ele vomita, sangue vivo. Puro.

"Não subestime as famílias. "

         As palavras sozinhas, podem não fazer sentido algum... 

"Eu sou um grande fã do seu trabalho"

"Eu até entendo que queira passar seus últimos dias de vida, com sua família..."

"Sr. Rafael, o senhor nunca quis construir uma família? "

         ..., mas, quando perfiladas...

"Não! Esse tem a bagatela de um milhão de reais. "

"Você merece. "

         ... fazem todo o sentido.

"Você nunca teve dúvidas? Se iria matar ou não? "

"Você nunca se arrependeu? Digo, as pessoas que você matou... tinham famílias. "

"Fantástico. ".

"Eu quero o corpo queimado. "

          O coice de mula. Ele sente a dor de um coice de mula, dado em seu corpo. Uma porrada certeira e sem defesa. Rafael cai abraçando seu peito.

         Ainda na negação, busca no seu computador a resposta que mostrará a verdade.  Mas, a verdade... é que tudo é verdade.

"Por que meu pai, por quê?"

         Era isso que sua filha gritava enquanto morria. Ela não estava direcionando a pergunta para Deus, mas para seu pai. Rafael prostrado no chão, grita.

         Foi a mesma frase dita por sua mãe em sonho, jogada na sua cara, e ele não percebeu.

         O olhar da sua filha, dizendo "Sou eu, sua filha! Não me mate! " Bate-lhe na cara. 

         A lembrança do afago que ela procurou na mão dele, quando limpou as lágrimas dela com seu lenço... esmurra-o no estômago da alma.

— Ela sabia quem eu era... ela sabia. Eu neguei à minha filha até as duas moedas para Caronte... meu Deus, meu Deus.

        O açoite continua batendo forte em sua alma, a cada vez que a pergunta de sua filha aparece em sua mente:

"Por que meu pai, por quê?"

— Eu não sabia... eu nunca soube de sua existência.

"Por que meu pai, por quê?"

— Eles me deram o nome errado.

"Por que meu pai, por quê?"

— Eu caí numa armadilha, minha filha. 

"Por que meu pai, por quê?"

— Por que eu sou monstro. Eu mato por prazer e sem compaixão.

"Por que meu pai, por quê?"

— Me perdoe filha... por ter te matado.

         Rafael, agora sabe que tem dores maiores do que a dor do câncer em seus pulmões.
        
         A dor que não mata somente o corpo, mas a alma. Aquela dor que não cessa, e que torna o mais orgulhoso dos homens num trapo de imundícia.

         Ele pega o lenço que tem as lágrimas da sua filha, cobre o próprio rosto, chora e grita.

         Os pulmões saltam com dores, mas ele não liga para isso. Ele quer gritar, gritar e gritar, como sua filha gritou, gritou e gritou. E o faz.

        O pedaço de carne combalido, soluça ajoelhado no chão. Rafael se rastejando pega a foto de sua filha e chora compulsivamente sobre ela, e o grito que agora sai é:

— Perdão minha filha! Perdão por ter te matado! MEU DEUS, QUE DOR! — Glauco, mostrou da forma mais cruel possível, qual era a sensação de perder um filho.

         Alisando a foto de Maria Fernanda, começa a tossir violentamente, levando espasmo por todo seu corpo, Rafael debate-se no chão amassando o lenço que está preso dentro de sua mão direita. A sua alma, acaba de morrer.

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