🦋 Capítulo 5.3

Assim que coloquei os olhos naquele rapaz de aura verde-água, eu tive absoluta certeza de que ele não era um ser humano comum, tampouco um híbrido; havia uma magia intensa circulando ao redor dele, tal qual eu vira nos vampiros e nos lobisomens que eu conhecera ainda menina, o que só podia significar que ele também era uma criatura sobrenatural. No caso daquele moço, porém, era um tipo de poder diferente de tudo o que eu já tinha visto até então, que nada se assemelhava à magia de sangue dos morcegos ou à magia animal dos lobos.

Apesar da empolgação por finalmente encontrar uma criatura mágica desconhecida em um daqueles inúmeros bailes, eu também não podia esconder minha decepção: não me restavam dúvidas de que ele definitivamente não era o meu pai. Desde que eu começara a entender melhor minhas habilidades como híbrida, eu tinha aprendido a reconhecer algumas características que eram compartilhadas por pessoas de uma mesma família, quase como se fosse um tipo de impressão digital energética, que ficava gravada na aura de cada indivíduo. Foi exatamente assim que eu notei que não havia nada naquele moço que o conectasse ao sangue que eu trazia em minhas veias, tornando impossível, dessa forma, que fôssemos parentes em algum grau.

Mesmo assim, eu não poderia ignorar a estranha coincidência dele aparecer justamente no dia de São João; por isso, decidi me aproximar disfarçadamente, como quem não quer nada, e tentar conseguir alguma informação. Talvez ele pudesse conhecer meu verdadeiro pai ou, quem sabe, me dar uma nova pista. Não custava nada arriscar.

Lembrei-me da conversa com minha mãe, mais de dez anos atrás, quando eu ainda era uma criança, e fui até a barraca de quentão, voltando de lá com dois copos nas mãos. Aproximei-me dele, decidida, e fiz a minha jogada.

— Aceita uma bebida? — ofereci, tentando disfarçar meu nervosismo.

Ele apenas me encarou em silêncio, por alguns segundos, antes de me responder, com um sorriso.

— Claro, por que não?

Entreguei o copo a ele e me sentei ao seu lado, enquanto ele provava o quentão.

— Nunca te vi por aqui — arrisquei. — E olha que eu vou em praticamente todos os bailes da região...

— É a minha primeira vez por esses lados — ele admitiu. — Estou apenas de passagem.

— E como você se chama? — perguntei, curiosa.

— Meu nome é Ruan — revelou ele. — E o seu?

— Teresa. Prazer em te conhecer, Ruan!

— Igualmente — ele respondeu, com um sorriso de canto de boca, antes de voltar a beber o quentão.

Depois daquela breve apresentação, um silêncio mortal se instalou entre nós e eu simplesmente não fazia ideia de como levar a conversa adiante. Até que me lembrei da minha mãe, mais uma vez, e decidi tentar outra estratégia.

— Quer dançar comigo, Ruan? — perguntei, procurando demonstrar confiança.

— Pode ser — ele respondeu, sem pensar muito, ficando de pé e me pegando pela mão. Logo nos aproximamos do tablado, sobre o qual um trio de músicos tocava canções de forró bem conhecidas. Na frente do pequeno palco, em clima alegre, alguns casais dançavam, abraçados.

Ruan me conduziu em silêncio e com maestria, mas parecia distante enquanto dançávamos, desviando o olhar do meu e não dizendo uma única palavra sequer. Continuamos daquele jeito, calados, até que, no final da terceira música, ele finalmente se dirigiu a mim.

— Não é melhor ser honesta comigo e me dizer logo de uma vez o que você quer de mim? — ele me perguntou, sem rodeios.

— Como assim? — repliquei, me fazendo de desentendida.

— Eu posso até ter cara de ingênuo, mas eu sei muito bem que mulheres bonitas não saem por aí pagando bebidas para caras desconhecidos e chamando eles pra dançar por mera hospitalidade — ele apontou. — Com certeza você quer alguma coisa de mim. Então, podemos pular a enrolação e ir direto ao assunto.

— Me desculpa, Ruan, você tá certo — admiti, envergonhada. — Eu consigo ver a cor da sua aura. Sei que você tem magia aí dentro de si. Por isso decidi me aproximar. Pra pedir sua ajuda.

Ruan me encarou novamente, dessa vez com um ar mais preocupado.

— Você tá bem? Tá correndo algum perigo?

— Não se preocupe, eu não tô correndo perigo! — me apressei em responder. — Mas não posso dizer que tô bem, isso seria uma mentira... Você aceita conversar comigo? Só quero que você ouça a minha história e me dê a sua opinião. Prometo que não te incomodarei mais depois disso.

Ele me mediu da cabeça aos pés outra vez, refletindo em silêncio, até finalmente responder.

— Hummmm, tudo bem então. Mas eu aceito outro copo daquela bebida, se não for muito incômodo.

— Nem um pouco, espera aqui, eu já volto! — respondi, animada, correndo rumo à barraca de quentão.

Pelo jeito, finalmente as coisas estavam começando a dar certo para mim.


***


Após sentarmos um pouco mais afastados do barulho da festa, contei a Ruan toda a minha história, procurando não esquecer nenhum detalhe que talvez pudesse ser útil para ajudar a identificar meu pai. O garoto apenas me ouviu calado, compenetrado, sem me interromper. Foi apenas quando eu terminei que ele finalmente se pronunciou.

— Ele parece ser um de nós, definitivamente.

— E quem são "vocês", exatamente? — perguntei, torcendo para que ele não me achasse muito invasiva.

— Pessoas das águas — ele respondeu, enigmático, sem dar mais detalhes. — Moramos numa dimensão paralela, mas, às vezes, visitamos esse mundo, apesar de isso não ser muito comum.

— Será que meu pai ainda tá vivo? — indaguei. — Será que há alguma maneira de eu me encontrar com ele?

— Não sei — ele admitiu— Nós não somos autorizados a vir para o lado de cá, então o seu pai, seja lá quem ele for, certamente deve ter mantido essas fugas dele em segredo. Então não dá pra eu simplesmente chegar em casa e sair perguntando qual dos meus conterrâneos anda dando umas escapadinhas pra festejar e fazer filhos nesta dimensão... Ninguém ia confessar uma coisa dessas, entende?

— Sim, eu entendo... — confirmei. — Mas se vocês não podem vir pra cá, o que você tá fazendo aqui então?

Ruan coçou a cabeça, como se estivesse avaliando se podia confiar em mim ou não, até finalmente me fazer uma proposta, que me pegou de surpresa.

— Você aceita fazer um acordo comigo? — disparou ele. — Se você me ajudar, eu te levo para o meu mundo. Daí você pode usar suas habilidades lá, pra tentar identificar seu pai entre os homens do meu povo.

— Mas isso é mesmo possível? — perguntei, abismada. — Eles vão me deixar entrar??

— Se você estiver comigo, não será um problema. Eu acho...

— Me desculpa, mas você não tá me passando muita segurança — admiti, com sinceridade. — E como eu vou fazer pra voltar, depois disso?

— Humanos comuns têm um prazo de validade no meu mundo — Ruan explicou. — Depois de um certo tempo, minha dimensão expele vocês automaticamente, de volta pra cá. É quase como se ela estivesse sempre fazendo uma limpeza e jogando o lixo pra fora.

— Obrigada pelo elogio — comentei, ligeiramente ofendida. — E o que você vai querer em troca de me levar até lá?

— Me faça companhia nesta noite — ele pediu, encabulado. — Essa é a última vez que eu vou poder vir até este mundo durante um bom tempo. Quero aproveitar bastante e guardar boas memórias...

— Bem, isso vai ser mais fácil do que eu imaginava — provoquei. — Tinha medo do que você ia me pedir. Já estava me preparando pra ouvir alguma proposta indecente...

— Sério? Então, quem sabe, eu faça mesmo uma proposta dessas até o final da noite... — Ruan revidou, sem perder tempo, me fazendo enrubescer.

— Vamos logo, não temos tempo pra perder com conversa fiada — mudei de assunto, envergonhada, puxando-o pela mão. — Nós temos uma festa pra aproveitar.


***


As horas seguintes foram todas gastas com a tarefa de fazer com que Ruan tivesse o melhor São João de sua vida. Fizemos tudo o que tínhamos direito: comemos as comidas da época, dançamos quadrilha, estouramos bombinhas, brincamos no jogo de pescaria e de tiro ao alvo. Quando eu já estava exausta, Ruan apareceu com duas maçãs do amor, que ele havia conseguido sabe-se lá como.

— Pra você — ele informou, me estendendo um dos doces.

Apenas agradeci e dei uma mordida na maçã, sentindo o olhar do misterioso garoto colado sobre mim.

— É uma cor muito bonita — ele disse, enfim.

— Cor? Cor de quê? — perguntei, confusa. — Da maçã?

— Não. A sua — ele respondeu. — Eu também consigo ver as cores das pessoas, do mesmo jeito que você.

— E você gosta do que vê? — perguntei, deixando o pudor de lado e me aproximando ainda mais dele.

— Bastante — ele respondeu, com um olhar ansioso.

— Então vamos garantir que você aproveite bem sua última noite e tenha uma memória bastante vívida, pra guardar de lembrança — declarei, segurando-o delicadamente por detrás da cabeça e me aproximando, até que nossos lábios se tocassem, com o açúcar da maçã do amor os deixando um pouco mais pegajosos e doces do que o normal.

Ruan apenas correspondeu à minha investida e a revidou com igual empolgação. Logo ele me envolveu em seus braços e continuou avançando, até tornar as nossas carícias um pouco ousadas demais para serem feitas frente aos olhos das pessoas presentes na festa.

— Acho que essa é a hora que você me convida pra ir pra sua casa — eu sugeri, ofegante.

— É pra já — ele respondeu, contente.


***


Depois de me conduzir pelo rio à bordo de uma canoa, Ruan nos fez passar por baixo de uma queda d'água e eu imediatamente reconheci o lugar mencionado por minha mãe; ela também passara por ali, o que significava que eu estava no local certo e havia uma chance real de eu finalmente me encontrar com o meu verdadeiro pai.

Do lado de lá, havia um pequeno vilarejo, não muito diferente do distrito onde eu morava. A diferença maior estava nos habitantes, porém, todos com auras mágicas imponentes e chamativas. Ruan foi me conduzindo pelas vielas, na esperança de que eu conseguisse reconhecer algum traço familiar nos homens com quem cruzávamos, mas, apesar de darmos voltas e mais voltas pelo local, eu não enxerguei nada que me fizesse acreditar que meu pai estava diante de mim.

Eu não sabia dizer se os moradores daquele lugar conseguiam perceber que eu era uma humana híbrida, mas, se percebiam, não demonstravam de maneira alguma. Alguns deles até mesmo acenavam para Ruan e continuavam em seus caminhos, como se minha presença ali não fosse nada de anormal. Aquilo me ajudou a me manter calma, já que eu temia não ser assim tão bem recebida, mas aquela tranquilidade não demorou muito a acabar, quando um dos moradores parou para falar com Ruan.

— Que bom que você voltou, meu príncipe! — o homem disse, ofegante. — Sua família achou que vossa alteza tinha fugido! Eles já iam iniciar uma busca!

— Diga aos meus pais que estou de volta, mas estou ocupado recebendo uma amiga — Ruan respondeu, sem se abalar, apontando para mim. — Assim que ela for embora, eu me apresentarei ao palácio, para cumprir meus deveres.

— Como vossa alteza quiser. Com licença — disse o homem, afastando-se em seguida.

— Acho que você deve ter um monte de perguntas, não é mesmo? — Ruan quis saber, se dirigindo a mim, tão logo voltamos a ficar sozinhos.

— Não tenha dúvidas disso! — respondi, espantada. — Príncipe?? Você?? Como assim???

— Acho melhor a gente conversar sobre isso num lugar mais reservado.

Dizendo aquilo, Ruan me conduziu até uma pequena gruta escondida, que abrigava uma espécie de quarto improvisado, com tapetes e almofadas.

— Esse é o meu esconderijo — ele revelou. — Venho aqui quando quero ficar sozinho.

Eu apenas assenti e permaneci em silêncio, deixando que ele falasse.

— O que você ouviu lá fora é verdade. Eu sou mesmo o príncipe desta dimensão, único herdeiro e futuro rei. Isso já seria motivo suficiente para que todos fossem super protetores comigo, mas não é só isso. Existe uma profecia muito antiga em nosso povo, que prevê a chegada de uma praga apocalíptica oriunda do mundo dos humanos comuns — ele continuou. — Alguma coisa relacionada a magias antigas e forças cósmicas... Eu sinceramente não entendo muito da lógica do mundo de vocês, mas parece ser algo tão grave que pode até mesmo afetar a nós, aqui, nesta dimensão.

Aquelas informações me deixaram alarmada. Eu só queria encontrar meu pai, não fazia a mínima ideia de que ia acabar tropeçando numa profecia de fim do mundo no meio do caminho.

— E vocês sabem quando isso vai acontecer? — indaguei, apreensiva.

— Não exatamente — ele admitiu. — O tempo corre de maneira diferente aqui e no seu mundo. Nossos estudiosos tentaram calcular e não conseguiram chegar a uma data exata, mas eles acreditam que essa tragédia está próxima. Por isso meus pais, os reis daqui, decidiram selar a conexão entre nossas dimensões — Ruan revelou, em tom triste. — Se não existir mais uma ponte, nós não correremos riscos. Estaremos seguros aqui, isolados.

— Foi por isso que você disse que essa era a sua última chance de aproveitar o meu mundo... Porque muito em breve você não conseguirá mais ir até o lado de lá...

— Isso mesmo — ele confirmou.

— Então isso quer dizer que eu também não terei outras chances de encontrar meu pai... — concluí, com os olhos marejados.

— Teresa, me desculpa por falar isso tão abertamente, mas meu reino não é muito maior do que o que você viu hoje... — Ruan mencionou. — Não há muitos outros lugares onde seu pai possa ter se escondido... Eu temo que, se você não o localizou entre os nossos moradores, isso signifique que ele provavelmente já tenha partido desta existência...

Tomada pela tristeza, apenas me agarrei a Ruan e caí no choro.

— Eu sinto muito — ele tentou me consolar, preocupado. — Eu queria poder fazer alguma coisa por você e por sua família... Mas não dá pra trazer vocês pra morarem aqui, como eu já te expliquei, e...

— Não se preocupa, Ruan — eu o interrompi, secando minhas lágrimas. — Você já me deu mais respostas do que eu jamais sonhei conseguir encontrar. E eu sou muito grata a você por isso. Eu tenho apenas um último pedido a te fazer antes de eu ir embora, no entanto.

— O que seria? — ele quis saber, curioso. — Prometo que farei o possível...

— Eu quero que você faça comigo o mesmo que eu fiz com você — expliquei. — Que você aproveite minhas últimas horas aqui pra me mostrar mais do seu povo e do seu mundo. Pra eu poder ao menos ter a chance de conhecer e experimentar um pouco mais do lugar de onde meu pai veio.

— Bem, isso eu consigo fazer — Ruan respondeu, com um sorriso. — Vou me esforçar pra fazer desse o melhor dia da sua vida! Pode contar comigo!


***


Ruan não exagerou em sua promessa e se empenhou nas horas seguintes para que eu pudesse experimentar tudo de melhor que aquela dimensão misteriosa podia oferecer. Comidas, bebidas, jogos, passeios, não houve um minuto sequer em que eu não tivesse algo interessante para me ocupar. E cada atividade era intercalada com uma sessão de beijos e carícias, é claro, o que tornava tudo ainda melhor; Ruan era lindo, gentil e cuidadoso, o que mais eu poderia pedir?

O fim do dia chegou, porém, e fomos acabar na caverna, mais uma vez, exaustos.

— Acho que não tenho energia pra mais nada — comentei, satisfeita.

— Espero que tenha se divertido — disse ele. — Você já vai dormir?

— Não sei — respondi. — Por que?

— Se for dormir, é melhor a gente se despedir antes. Seu tempo aqui tá quase acabando — ele explicou. — Quando você acordar, já vai estar de volta ao seu mundo, e a gente não vai conseguir mais se ver.

— Hummm... — comentei, pensativa. — Já que é assim, acho que deveríamos ter uma despedida à altura de tudo o que fizemos nessas últimas horas...

— Você tem alguma ideia? — ele sorriu, malicioso, parecendo entender aonde eu queria chegar.

— Não sei... — respondi, me fazendo de desentendida. — O que você acha disso? — perguntei, soltando as alças do meu vestido e fazendo ele cair de uma vez aos meus pés.

Ruan apenas arregalou os olhos ao ver meu corpo seminu e abriu um sorriso enorme.

— Acho que será uma despedida mais do que apropriada — declarou ele, por fim, tirando a camiseta e vindo se deitar sobre mim.


***


Acordei com pássaros cantando e o som de água corrente. Abri os olhos e percebi que estava ao lado do riacho, perto de onde eu morava. Tentei me lembrar do que havia acontecido na noite anterior, mas minha cabeça estava toda embaralhada. Apenas recordava de Ruan, na festa de São João, a maçã do amor, o beijo e... O resto era um grande borrão.

Eu sabia que havia chegado muito perto de descobrir alguma pista sobre meu pai, mas, apesar de não ter dado em nada, não conseguia me sentir triste. Era como se houvesse uma motivação nova dentro de mim, uma energia diferente, que me dava a certeza de que tudo ia terminar bem.

Foi apenas nove meses depois, porém, que eu fui de fato entender que energia era aquela, quando enfim segurei Lara, a minha primeira filhinha, em meus braços.

E, naquele momento, apesar de todos os pesares, eu sorri, porque eu tive a certeza de que, para sempre, eu teria um pedacinho do verde-água de Ruan junto comigo.


FIM


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Notas do autor:

1. Criei esse conto com a intenção de preencher melhor algumas das lacunas sobre o episódio do aparecimento dos dois vampiros em Esmeraldina, posteriormente caçados por Navalha e Benjamin, tal qual apresentado no conto "Dia dos Namorados". E, caso ainda tenha ficado alguma dúvida, a filha de Teresa com Ruan, Lara, é a mesma criança que anos depois foi sequestrada por Roberto para alimentar a Flor Cadáver. Tenham isso em mente. 

2. Imagino que muitas questões devem ter surgido sobre a espécie de Ruan, o tipo de magia que ele possui, como ele pode ser príncipe de um reino tão pequeno, que profecia é essa que os pais dele tanto temem, etc. Essas e outras respostas chegarão mais adiante, no volume III do Clube da Lua. 

Espero que tenham gostado! Votem e comentem, por favor! Obrigado! ❤

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