6. A vez em que um jovem órfão foi convidado para uma missão secreta

Os compromissos do dia seguinte começaram bem cedo. Roman entrou no quarto pontualmente, às sete, abriu as cortinas e deixou a roupa que eu deveria vestir ao lado da cama, saindo logo em seguida. Eu já estava acostumado com aquela rotina e sabia bem o que tinha que fazer, então só caminhei rumo ao banheiro e me enfiei debaixo do chuveiro, sem pensar muito. Apesar de quase não sentir mais dores, eu ainda estava bastante sujo de sangue — proveniente de mim e dos três irmãos vampiros —, então aquela ducha veio em boa hora.

Quando saí do banho, Roman havia retornado e estava terminando de colocar a mesa do café; entre os alimentos, estava o bolo de brigadeiro que ele havia me prometido no dia anterior, antes de toda a confusão com Alphaeos acontecer. Ao me ver, o vampiro mais novo apenas me deu um bom dia rápido e um sorriso tímido. Após ajeitar tudo, ele vestiu seu próprio paletó, colocou chapéu e óculos escuros, para se proteger do sol da manhã, e se dirigiu rumo à porta do quarto.

— Estaremos te esperando na garagem. Venha encontrar com a gente depois que terminar de comer e de se trocar — instruiu ele.

Fiz como solicitado e, algum tempo depois, já estava dentro do carro blindado que costumávamos usar, na companhia dos três irmãos, me movendo por ruas e avenidas que eu não sabia o nome.

— Vamos repassar a agenda do dia, Davi — pediu Vlad, concentrado na tela de seu smartphone. — Seu primeiro compromisso é a inauguração das novas instalações da fábrica de malhas. O governador estará lá e a imprensa também, então se prepare para dizer algumas palavras, coisa rápida. Depois disso, almoçamos com um grupo de investidores chineses e, na parte da tarde, teremos reunião do conselho de acionistas. Não haverá nenhuma votação hoje, mas acredito que ainda assim seja recomendável você acompanhar de perto tudo o que aquelas raposas andam fazendo, antes que elas aprontem alguma.

— Certo, sem problemas — concordei, sem grande empolgação.

— Você tem alguma dúvida? Precisa repassar sua fala? — Vlad insistiu, ao me perceber distante.

— Não, não, não se preocupe com isso — eu o tranquilizei. — Mas já que você tocou no assunto, eu tenho uma outra pergunta, pra falar a verdade... Sobre o que vocês me disseram ontem...

Eugene freou bruscamente o carro tão logo eu falei aquilo, nos fazendo voar e quase bater a cabeça no teto, não fosse pelos cintos de segurança. Olhei para o retrovisor, sem entender o que se passava, e encontrei o olhar preocupado do vampiro mais velho, fixo em mim, como se me implorasse para ficar calado. Só então eu entendi que aquele não era o momento nem o local apropriado para discutir seja lá o que fosse que eles tinham a conversar comigo.

— O que aconteceu aí, tá tudo bem? Câmbio! — uma voz distorcida pôde ser ouvida pelo rádio, no painel do carro. Eugene apertou um botão e logo respondeu.

— Está tudo certo. Um animal atravessou na frente do carro e eu precisei frear. Câmbio!

— Entendido. Câmbio, desligo.

Por instantes, eu me esquecera de que estava sendo vigiado em quase todos os momentos do meu dia, mas aquela breve situação no veículo fora suficiente para me deixar alerta em relação àquilo mais uma vez.


***


A inauguração da fábrica aconteceu sem grandes problemas e logo estávamos na cobertura de um hotel cinco estrelas, que havia sido reservada para o meu almoço com os investidores chineses. Sentei-me em uma das pontas da mesa imponente, que já estava posta com um verdadeiro banquete, e aguardei. Logo os três irmãos vampiros apareceram e, para a minha surpresa, trancaram a porta do aposento depois de entrarem. Em seguida, vieram até onde eu estava e também ocuparam lugares à mesa, algo que não era nada usual em eventos como aquele.

— Tá tudo certo, pessoal? — perguntei, estranhando o comportamento deles. — Os nossos convidados se atrasaram?

— Eles não vêm mais — Vlad informou, despreocupado. — Mandaram um e-mail ontem dizendo que precisariam cancelar o encontro porque um deles ficou doente após desembarcar no Brasil. Acho que o jet lag e o clima diferente foram demais para ele. 

— E o que a gente tá fazendo aqui então? — eu quis saber, curioso e também um pouco preocupado.

— Estamos em território neutro, longe dos demais vampiros, sem ninguém nos vigiando ou nos ouvindo. Achei que poderíamos aproveitar esse momento oportuno para termos uma conversa em particular, então não cancelei a nossa reserva aqui no hotel.

— Isso não vai te causar problemas? — questionei, temeroso. Depois do que acontecera comigo no dia anterior, eu tinha motivos mais do que suficientes para me precaver e evitar ser alvo da ira de Alphaeos outra vez.

— Eu remarquei o encontro para amanhã, em forma de vídeo chamada, e apaguei os e-mails que troquei com os chineses — Vlad explicou. — Vamos fazer de conta que a conversa da vídeo chamada de amanhã aconteceu hoje, durante esse almoço. Fique tranquilo, eu cuidarei de todos os detalhes, como sempre.

— Bem, se você tá tão seguro assim... — respondi, ainda um pouco receoso.

— Pode confiar no Vlad, ele é o melhor nesse tipo de coisa — garantiu Roman, com um sorriso orgulhoso. O elogio pegou o irmão do meio de surpresa e Vlad soltou um risinho encabulado, enquanto coçava a cabeça, sem jeito. Pelo visto, até mesmo vampiros podiam enrubescer.

— Certo, e por que vocês fizeram tudo isso? O que precisam conversar comigo? — finalmente perguntei.

— Desde que a gente te conheceu, nós tivemos uma boa impressão a seu respeito, Davi — Eugene explicou. — A sua dedicação e carinho com o nosso príncipe, a gentileza e bons modos que você sempre teve ao se dirigir a nós ou aos outros vampiros servos, mesmo quando estava cansado ou quando a gente te forçava a fazer coisas trabalhosas, pra promover a empresa. Nós nunca tivemos dúvidas de que você tinha um bom coração.

— Obrigado, eu acho? — agradeci, sendo agora a minha vez de ficar encabulado. No fundo, porém, eu sabia que não tinha feito nada de mais ou que fosse digno de tantos elogios.

— No entanto, o mero fato de você ser um garoto gentil e bondoso não era suficiente — continuou Eugene, sério. — Nós precisávamos ter certeza de que podíamos contar com você. Precisávamos saber se você era mesmo confiável.

— Bem, não desejo nada de ruim a vocês e ao Leo, se é isso que querem saber — informei, intrigado com o rumo que aquela conversa estava tomando.

— Nós tivemos certeza disso depois que presenciamos tudo o que você passou para defender o Roman — Vlad comentou. — Nós nunca nos esqueceremos disso, Davi. Você foi leal a nós, e lealdade é algo que os vampiros valorizam muito.

Eu bem sabia daquilo; Leocaster em pessoa me dissera algo semelhante na vez em que conversamos a sós no camarote do Lacrimosa.

— Tá tudo bem, gente, não se preocupem com isso, já passou — me apressei em dizer, tentando minimizar a situação envolvendo Roman e Alphaeos. A verdade, no entanto, é que ainda demoraria um bom tempo para eu superar o trauma daquela agressão, mas não tinha porque fazê-los se sentirem culpados por aquilo, quando não havia nada que eles pudessem ter feito para impedir. Aquela era uma dor com a qual eu teria que lidar sozinho, em outro momento.

— Bem, a gente te trouxe até aqui porque tem algo que gostaríamos de te pedir — Vlad continuou, notavelmente ansioso. — Nós precisamos da sua ajuda, Davi.

— Aconteceu alguma coisa com vocês?

— Com a gente não... — revelou Roman, entristecido. — Mas com a nossa criadora sim. Nossa mãe vampira. É ela que está em apuros.

— Eu ainda não entendi o que eu posso fazer — admiti, confuso. — Quem é ela?

— Vocês já se conheceram, em Esmeraldina — mencionou Eugene. — Ela se chama Tatianna, era a responsável direta pela segurança do príncipe Leocaster naquela missão.

Ok, aquilo me pegou de surpresa. A última coisa que eu imaginaria, após conhecer Tatianna, era que ela pudesse ter "afilhados" ou ser uma figura materna para quem quer que fosse. Porém, apesar da minha surpresa, eu não me esquecera de que ela tinha lutado ao nosso lado e nos ajudado a derrotar o Devorador de Sonhos. Aquela vampira corajosa também era uma amiga e uma aliada do Clube da Lua.

— Onde a Tati está agora? — perguntei. — A última vez que eu a vi foi quando fomos atacados pelo Navalha... Os lobos da Caçada Voraz prenderam ela...

— Ela ainda está com aqueles bastardos... — informou Eugene, com os dentes cerrados e uma expressão raivosa.

— Eu imaginei que os vampiros já tivessem feito alguma coisa a respeito disso... — mencionei, surpreso. — Ninguém tentou resgatá-la ainda?

— Nós levamos o assunto até o nosso Rei e ele disse que ainda não era a hora certa — Vlad respondeu, entristecido. — Que os vampiros não poderiam mobilizar uma quantidade considerável de recursos para resgatar uma única guerreira. Ele falou que iríamos atrás dela apenas quando tomássemos a cidade de Esmeraldina das garras daqueles lobos...

— Mas isso ainda pode demorar muito!!! — comentei, indignado. — Babylon me disse que só vai marchar até lá depois que o Leo se recuperar e estiver fora de perigo!

— Exatamente — Eugene concordou. — Por isso precisamos da sua ajuda. Acredite, nós relutamos muito em te envolver nisso tudo, mas, com o príncipe Leocaster fora de ação, ficamos desesperados e não tivemos mais a quem recorrer... Nós entendemos que o Rei precisa pensar no conflito como um todo, mas nós também não podemos ignorar o fato de que a nossa criadora está lá, sozinha com aqueles lobos, por todo esse tempo! Quem pode imaginar as barbaridades que eles devem estar fazendo com ela?

Um pensamento sombrio cruzou a minha mente quando Eugene mencionou possíveis torturas. Imediatamente me lembrei de como eu me sentira na noite anterior, nas mãos de Alphaeos, e temi pelo bem-estar de Tatianna.

— Eu não quero ser pessimista ou deixar vocês chateados, mas eu preciso perguntar uma coisa... — mencionei, com cuidado. — Como vocês têm tanta certeza de que ela ainda está viva? Eu quero dizer... Aqueles lobos odeiam morcegos com todas as forças, né? Não existe a chance de eles talvez já terem...

— Ela tem mais valor viva do que morta — Vlad me interrompeu, confiante. — Pode ser usada como moeda de troca. Se eles tivessem a intenção de matá-la, teriam feito isso imediatamente, quando ela estava vulnerável, da mesma forma que fizeram com o príncipe Leocaster. Eles não prenderiam uma vampira de elite como a Tatianna à toa.

— E tem mais uma coisa — Roman completou. — A gente consegue sentir a presença dela. Os vampiros mantêm uma certa conexão com aqueles que os transformam. Nós saberíamos se ela tivesse deixado esse mundo. Ela ainda está viva, com certeza, e precisa da nossa ajuda.

— Certo, eu acredito em vocês e acho admirável a atitude de querer salvar a Tati — reforcei. — Mas vocês acham mesmo que vieram pedir ajuda pra pessoa certa? Eu tô sendo feito de refém pelo rei de vocês e nem sequer posso usar meus poderes, não consigo imaginar o que eu poderia fazer pra resgatar uma vampira aprisionada pela Caçada Voraz...

— Nós temos um plano — informou Eugene, com segurança.

— Bem, sou todo ouvidos então — respondi, curioso.

— Nós rastreamos a movimentação dos lobos depois da batalha contra Bakunawa — Vlad explicou. — Uma parte considerável deles ficou na fazenda do seu namorado, em Esmeraldina, mas a maioria dos guerreiros retornou para um dos quartéis generais da Caçada Voraz. A última vez que Tatianna foi vista foi enquanto era carregada para um dos caminhões desse comboio de lobos. Acreditamos que ela tenha sido transportada até essa base deles.

— E onde isso fica? — perguntei, receoso.

— No coração da Floresta Amazônica — revelou Eugene, calmamente.

— E como vocês pretendem chegar até lá?? — perguntei, abismado com a tranquilidade dos vampiros diante de mim.

— Nosso rei nunca nos deixaria ir caso pedíssemos permissão abertamente. Mas, daqui alguns dias, haverá a inauguração de um novo polo industrial naquela região, que será integrado à Zona Franca de Manaus. A empresa da sua família terá algumas instalações por lá. E você recebeu um convite para a cerimônia de entrega das obras. Se você aceitasse comparecer, nós teríamos a desculpa perfeita para ir até aquele lugar, como seus acompanhantes — revelou Vlad.

Agora eu finalmente entendia qual seria a minha participação no tal plano.

— Babylon nunca vai deixar — apontei, pessimista. — Ele não vai arriscar me mandar para o outro lado do país. Ele precisa do meu sangue aqui, em segurança, pra salvar o Leo...

— Na prática, seria uma viagem rápida, nós iríamos com nossos jatos particulares — explicou Eugene. — Sairíamos pela manhã e participaríamos da inauguração no final da tarde. À noite, você ficaria no hotel, protegido pelos outros vampiros, enquanto a gente sairia para resgatar a Tatianna. Se tudo der certo, na manhã seguinte estaremos todos voando de volta pra cá.

— É um plano arriscado — eu fui sincero. — Mas se vocês acham que pode dar certo, eu ajudo. Se o Ian estivesse aprisionado, eu também faria o possível e o impossível pra tentar resgatar ele, então eu consigo imaginar o quão desesperados vocês estão. O que eu preciso fazer?

— O senhor Alphaeos supervisiona e autoriza previamente todos os eventos que você participa. Eu e você precisamos convencê-lo de que a sua presença nessa inauguração é fundamental e que você voltará em segurança — informou Vlad.

— Certo, darei o meu melhor — afirmei. — Mas o Alphaeos e os outros não vão suspeitar quando perceberem que estamos indo pra um local tão próximo de uma base da Caçada Voraz?

— Eles não sabem que nós investigamos o paradeiro de Tatianna e descobrimos que ela está lá, fizemos tudo isso escondidos. Então, tenho esperanças de que o evento seja o suficiente para justificar nossa ida, e que pensem que se trata mesmo de uma mera coincidência — respondeu Vlad. — Essa inauguração é, de fato, um acontecimento muito importante, e os investimentos que a sua empresa está fazendo por lá não são pequenos. Existem boatos de que até mesmo a presidenta do país estará presente. Estranho seria se você não fosse.

— Tudo bem, entendi. Parece que o destino nos deu uma forcinha então, oferecendo uma ocasião perfeita — comentei, sorrindo.

— Por isso não podemos deixar essa oportunidade passar — afirmou Eugene, decidido. — Pode ser que nunca mais tenhamos outra chance como essa.

— Hora de colocar o plano em ação então! — comentei, estranhamente empolgado. — Mas, já que estamos aqui, será que eu posso aproveitar essa comida toda antes da gente ir embora? Tô morrendo de fome...

Os três irmãos caíram na gargalhada e Roman aproveitou aquela pausa nos assuntos sérios para se aproximar de mim.

— Obrigado, mais uma vez, por tudo o que você tem feito pela gente — ele agradeceu, em voz baixa, tentando disfarçar sua timidez. — Nós seremos eternamente gratos e saberemos recompensar sua lealdade, não duvide disso. 

— Não se preocupe, amigos são pra isso, lembra? — brinquei, fazendo menção às palavras que havíamos dito no dia anterior.

Como resposta, Roman apenas me abraçou apertado, me pegando de surpresa, e aquele foi um lembrete mais do que suficiente dos motivos pelos quais eu continuava a lutar, apesar de tudo. Por mais que parecesse o contrário, eu definitivamente não estava sozinho. 


*******************

Viagem à vista! Quem quer conhecer a Floresta Amazônica? 🙋‍♂️

E o que acharam do plano dos irmãos ucranianos para resgatar Tatianna? Será que vai dar certo? 💀

Saberemos o desenrolar dessa missão e muito mais nos capítulos da semana que vem!

Muito obrigado pela leitura! Deixe seu votinho e comentários, por favor, e até a próxima! 💖🥰😍

Próximo capítulo: A vez em que um jovem órfão se envolveu com a política


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