4. A vez em que um jovem órfão encontrou uma fiel escudeira

[Aviso de gatilho: este capítulo contém cenas que retratam situações de bullying em ambiente escolar. Se esse é um assunto delicado para você, prossiga com precaução]. 


O beijo foi breve, mas suficiente para eu sentir passando pelo meu corpo a mesma corrente elétrica que experimentei quando conheci Ian, no ginásio da escola, e nossas mãos se tocaram pela primeira vez. Quando soltei seu rosto e nossos lábios se separaram, ele me olhava com uma cara de espanto, que eu não sabia se era por conta do choque causado por nosso toque ou pelo beijo em si.

— Eu preciso ir... — gaguejou ele, finalmente. — Depois a gente se fala... — completou, antes de se virar e caminhar rumo à varanda, visivelmente confuso.

Naquele momento, pensei ter visto uma movimentação em um dos arbustos próximos a onde estávamos, mas o barulho parou logo em seguida. Presumi que fosse o vento e acabei não dando muita importância. Após Ian sumir de vista, não voltei para a varanda, ainda com a adrenalina pulsando nas veias depois do que eu tinha feito. Ao invés disso, subi para o meu quarto pela porta dos fundos e mandei uma mensagem para Bárbara, avisando-a que já estava indo dormir. Deitei-me na minha cama e fiquei repassando todos os acontecimentos da noite na minha cabeça, mas sem conseguir chegar a uma conclusão sobre a reação de Ian após eu o beijá-lo.

"Droga, estraguei tudo!", era só o que eu pensava, tomado pelo pessimismo.

De onde eu tirei aquela ideia maluca? Por que eu tinha que ser tão afobado? Ele estava interessado, não estava? Veio até mim assim que chegou, me abraçou, me tirou da festa... E que papo foi aquele sobre o meu cheiro? Não é possível que ele não estivesse me dando mole... Ou será que esse é o comportamento padrão dos jovens do interior e ele estava apenas sendo exageradamente simpático? 

Isso sem falar em outro detalhe que também não saía da minha cabeça: de onde estava vindo toda aquela eletricidade sempre que nos tocávamos? Agora eu iria dar choque em todos os garotos interessantes que se aproximassem e encostassem em mim? "Inferno!", resmunguei, derrotado, enfiando minha cara no travesseiro. Fiquei me revirando na cama até finalmente pegar no sono, não sem antes reparar no som de uivos distantes, assim como na noite anterior.


***


Na manhã seguinte, tomei café e o tédio finalmente deu as caras. Não havia nada para fazer na pousada, minha tia tinha saído e o turno de Bárbara ainda não havia começado. Fiquei no meu quarto tentando matar o tempo entre o computador e a TV, sem muito sucesso. Deixei meu lado stalker tomar conta e procurei o perfil de Ian nas redes sociais. Depois de alguns minutos de busca colocando o nome da cidade e o do colégio, até obtive sucesso, mas ambos os perfis do Facebook e do Instagram eram privados, então não tinha quase nada para ver além da foto do perfil. E não, não tive coragem de enviar uma solicitação de amizade, se você estiver se perguntando.

Finalmente deu 17 horas e fui encontrar Bárbara na recepção, para continuar meu treinamento. Ela quis saber todos os detalhes da noite anterior, o que prontamente atendi, mas sem mencionar a parte do beijo. Não é que eu não confiasse na minha mais nova amiga, apenas estava meio envergonhado por ter roubado um beijo de alguém que eu tinha acabado de conhecer e principalmente da reação que eu causara com tal atitude. Bárbara ficou comigo na recepção mais uma vez e meu turno acabou rapidamente, como no dia anterior. No entanto, ela não ficaria para a música ao vivo naquela noite, porque já tinha outro compromisso. Também não a veria no dia seguinte, domingo, pois era a sua folga.

— Tudo bem, até segunda então — me despedi, um pouco desapontado por precisar ficar sozinho outra vez.

— Certo, boa sorte na escola, depois quero saber de tudo — respondeu ela, me abraçando e saindo em seguida.

Ian não havia dado certeza de que apareceria na pousada naquela noite e, depois do beijo roubado, talvez nem tivesse motivos para fazer aquilo. Mas, como a esperança é a última que morre (e também porque eu já estava ficando entediado de novo), resolvi tomar um bom banho, trocar de roupa e arriscar minha sorte na varanda da pousada pela segunda noite seguida.

Quando cheguei, a música já estava a todo o vapor e o local estava até mais cheio do que na noite anterior, com alguns jovens dançando empolgadamente no meio do salão. Fui até o bar pegar uma coca com limão e me dirigi ao mesmo ponto em que havia ficado com Bárbara, que, por acaso, estava vazio. No caminho até lá, passei pelo grupo de jovens dançando e identifiquei, no meio deles, Poliana, vestida com roupas bastante provocativas, com os cabelos ruivos soltos e uma maquiagem marcante. Após nossos olhares se cruzarem, ela deu um sorriso que eu não consegui decifrar e piscou para mim, fazendo um arrepio subir pela minha espinha.

"Cruzes", pensei comigo. "Melhor ficar longe dessa garota".

Após me sentar, não tirava os olhos de todos que chegavam, esperançoso, mas não houve nem sinal de Ian ou de qualquer um dos amigos que estavam com ele na noite anterior. A meia-noite estava se aproximando e o lugar já começava a esvaziar. Eu já tinha perdido as esperanças e estava distraído, checando minhas redes sociais no telefone, quando vi Roberto, o recepcionista da noite, se aproximando de mim. Ele era um dos responsáveis pelo bar e trazia outro copo de coca com limão na mão.

— É pra você — informou ele, me entregando a bebida.

— Ah, valeu Roberto, já estava mesmo ficando com sede — agradeci.

— Na verdade, foi aquele rapaz que tá lá no bar que pediu que eu te entregasse — explicou meu colega de trabalho.

Quando olhei para o bar, vi, diante do balcão, tomando uma bebida, um garoto alto, de cabelos bastante pretos e desalinhados, que tinha passado totalmente despercebido por mim até então. Ele notou meu olhar e sorriu, levantando seu copo em minha direção, como se estivesse fazendo um brinde. Eu sorri de volta, sem graça, e repeti o mesmo gesto com meu copo, sem fazer ideia do que ele pretendia com aquilo.

Reparei que havia algo escrito à caneta no guardanapo que envolvia meu copo e, assim que o desdobrei sobre o meu colo, encontrei apenas uma pequena mensagem rabiscada à caneta: "Olá! 😊". Quando olhei novamente na direção ao bar, percebi que o garoto misterioso havia desaparecido. Levantei-me e fui até a frente da pousada, por onde os últimos clientes estavam saindo, mas nem sinal dele. Simplesmente parecia ter evaporado.

Depois daquele estranho episódio, cheguei à conclusão de que nada mais aconteceria na minha noite; por isso, decidi enfim voltar ao meu quarto, desapontado por não ter visto Ian e trazendo comigo o guardanapo daquele estranho rapaz. No dia seguinte, domingo, o tédio tomou conta outra vez, mas aproveitei para terminar de arrumar minhas coisas no sótão e preparar os materiais e uniforme para as aulas, que começariam já na próxima manhã. Escola, aí vamos nós.


***


Acordei com o barulho do despertador e imediatamente me lembrei do quanto odiava acordar cedo. No entanto, apesar de preferir continuar dormindo, me forcei a levantar e me preparar para ir à aula. Vesti o uniforme sem graça, coloquei meus livros e cadernos na mochila e saí em direção ao famoso Colégio Alvorada, logo depois de tomar café da manhã. Mal imaginava a surpresa que me aguardava ali.

Assim que passei pelos portões da escola, percebi olhares estranhos e alguns risinhos vindos dos outros alunos, que aparentemente eram direcionados a mim. Meus instintos já começaram a me alertar de que algo não estava certo, mas segui em frente, agindo como se não tivesse reparado.

Ao chegar no corredor principal da escola, no entanto, finalmente entendi o que estava acontecendo. Uma infinidade de cartazes estava espalhada no chão e nas paredes e todos os alunos por ali estavam rindo e comentando sobre o que quer que estivesse impresso naqueles papeis. Fui até a parede mais próxima e peguei um dos cartazes, com um mau pressentimento. Senti meu coração disparar assim que vi o seu conteúdo, percebendo que minha intuição não estivera tão errada assim.

Bem no meio do papel havia uma fotografia minha, trajando roupas femininas, com peruca e maquiagem. Eu havia tirado aquela foto anos atrás, numa festa à fantasia, numa brincadeira com alguns amigos meus na época, e nem lembrava mais da existência dela. O problema, entretanto, não era a foto em si, mas o que estava escrito em letras garrafais, logo abaixo da imagem:

"SEJA BEM-VINDO AO COLÉGIO, VIADINHO!"

Minha primeira reação foi ficar com muita raiva, mas respirei fundo e tentei colocar minha cabeça no lugar. Eu havia lidado com bullying durante quase toda a minha vida escolar e sabia que a pessoa que tinha feito aquilo deveria estar escondida por perto, apenas aguardando para ver minha reação de desespero. Era isso que fazia aquele tipo de gente se divertir e era exatamente isso que eu não iria oferecer. Não ia perder a cabeça e não ia contribuir ainda mais para a alegria de quem quer que tivesse planejado aquele evento lastimável.

Amassei o cartaz que tinha nas mãos e o joguei na lata de lixo mais próxima. Segui em frente, caminhando em direção a minha sala de aula e tentando ignorar os risos e cochichos enquanto eu passava pelos demais alunos. Estava quase alcançando o final do corredor quando um braço forte atravessou na minha frente e bloqueou o meu caminho. Eu fiquei alguns segundos sem entender de onde aquele membro tinha surgido até finalmente ter a brilhante ideia de olhar para cima. Só então eu consegui ver a cara do sujeito que tinha impedido minha passagem. Ele era gigantesco. E assustador.

— Ora, ora, ora, então finalmente vou ter a chance de conhecer a mais nova atração do circo de horrores de Esmeraldina! — provocou o garoto, em tom sarcástico.

— Você pode me dar licença por favor, minha aula já vai começar... — tentei pedir de maneira educada, mas fui interrompido por aquele mesmo braço, que me ergueu do chão pelas alças da mochila e me pressionou contra a parede mais próxima.

— Você é novato, então deixa eu explicar como as coisas funcionam por aqui — ele prosseguiu. — Primeiro, você não me interrompe quando eu estiver falando com você. E segundo, você ouve calado o que eu tenho a dizer e vai embora na hora que eu achar melhor — completou o brutamontes, me encarando com um sorriso ameaçador enquanto me mantinha erguido a pelo menos dois palmos do chão.

— Larga ele, Paulo, ou eu chamo a inspetora agora mesmo!!! — ouvi uma voz feminina ameaçar por detrás do meu agressor, que não esboçou reação nenhuma.

Enquanto isso, todos no corredor se amontoavam em silêncio, atentos, aguardando para conferir o que o valentão faria em seguida.

— Ou, se você preferir, peço para meu pai bater um papo com o seu pai então — insistiu a mesma voz, num tom ainda mais incisivo.

Aquela segunda ameaça incomodou bem mais o meu agressor, que finalmente me soltou, me fazendo cair sentado no chão. Quando ele se moveu da minha frente, pude ver que era Maia, a irmã de Ian, quem tinha vindo em minha defesa.

— Olá Maia! — cumprimento Paulo, o gigante, com o mesmo tom irônico que usara para falar comigo. — Como sempre defendendo os fracos e oprimidos, não é mesmo?

— Fica na sua e deixe ele em paz! — disparou a garota, visivelmente irritada.

— Quem sabe, se você me der uma chance e sair comigo, eu possa pensar em pegar leve com o novato aqui — provocou o troglodita, sorrindo, antes de se afastar de nós e finalmente desaparecer no final do corredor.

— Só se for nos seus sonhos — Maia deixou escapar, entredentes, antes de vir até onde eu estava.

— Ei, você tá bem?

— Sim... — respondi, ainda assustado. — Só preciso de um pouco de água.

— Tenho comigo aqui na minha bolsa, pode ficar com ela — ofereceu a garota, abrindo a mochila e me entregando uma garrafinha de água mineral.

O sinal da escola tocou assim que eu tomei os primeiros goles.

— Você é do terceiro A? — ela quis saber.

— Sim, sou — confirmei.

— Eu também, vamos juntos pra sala então.

Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, Maia me pegou pela mão e me puxou pelo corredor em direção à nossa sala de aula. Não preciso nem dizer que todos os olhares continuavam grudados em nós. "E o dia está apenas começando...", refleti, aflito.


***


Chegamos à sala do terceiro A e, para meu desespero, reparei que as carteiras eram duplas, o que significava que eu precisaria dividir o espaço com mais alguém. Provavelmente minha aflição ficou estampada em meu rosto, já que Maia rapidamente tratou de me acalmar.

— Não se preocupa, eu sento com você. Tem um lugar ali, vem.

Apenas a segui em silêncio e tentei não prestar atenção nos cochichos e risinhos ao nosso redor. A primeira aula era de Literatura, uma das minhas disciplinas favoritas, o que me trouxe um certo alívio. A professora, Cecília, era bastante simpática e tinha ganhado minha estima sem esforço, até o momento em que reparou na minha existência e me fez rever imediatamente meus sentimentos a seu respeito.

— Ah, temos um aluno novo!

"E lá vamos nós outra vez", pensei, frustrado.

— Venha já pra cá, se apresentar pra turma! — continuou ela, num tom amigável, mas que não diminuiu em nada a minha vontade de cavar um buraco no chão e me enterrar lá dentro.

Para evitar que o constrangimento fosse ainda maior, não tive escolha a não ser me levantar de uma vez e caminhar até a frente da sala. Encarei todos aqueles rostos desconhecidos, que me investigavam com curiosidade, e finalmente comecei.

— Oi pessoal, meu nome é Davi e...

— DAVIADINHO!!! — uma voz desconhecida gritou do fundo da sala, fazendo todos caírem na gargalhada.

— Ei, parem já com isso e respeitem o colega de vocês! — protestou a professora, mas os risos ainda continuaram por algum tempo antes de finalmente desaparecerem por completo.

Enquanto todos ainda riam, respirei fundo e tomei uma decisão. Precisava dar o melhor de mim naquela escola, meu futuro dependia daquilo, e não seria um bando de caipiras preconceituosos que iria me atrapalhar. Não mesmo. Com isso em mente, continuei minha apresentação.

— Bem, como eu ia dizendo, eu sou o Davi. Ou "Daviadinho", para alguns de vocês. Ou bicha, gay, boiola, ou qualquer outro nome que vocês costumem usar por aqui. Sim, eu sou homossexual, como vocês já devem saber graças aos cartazes que alguém fez o desfavor de espalhar pela escola. Desde criança eu soube disso e fiz questão de me assumir pra minha família e amigos alguns anos atrás, porque acredito que esse fato não é algo pra se envergonhar. Pelo contrário, faz parte de quem eu sou.

O silêncio na sala era mortal, mas continuei mesmo assim.

— Então, temos duas opções de agora em diante: vocês podem abrir a cabeça de vocês, entender que isso é algo normal, que não me faz melhor ou pior do que ninguém, e podemos todos seguir nossas vidas em paz, quem sabe até mesmo ser amigos. Ou, então, vocês podem continuar sendo preconceituosos e homofóbicos. Mas, se for esse o caso, eu só peço que me façam um grande favor: calem a porra da boca e guardem esses xingamentos de merda pra vocês, porque eu pago a mensalidade cara dessa escola pra poder estudar em paz e não pra ficar ouvindo desaforos.

Ah, como eu queria poder tirar uma foto daquele momento, com todo mundo me encarando de olhos arregalados! Merecia um lugar num porta-retratos, registrado para a posteridade, sem sombra de dúvidas.

— Eu já sofri muito bullying calado — prossegui — mas resolvi que não vou deixar ninguém decidir como é que eu devo viver a minha vida. Se você atacar a minha liberdade, eu vou me defender, pode ter certeza. Eu não vou tolerar discriminação contra mim nem contra ninguém nessa escola sem fazer o possível para que os responsáveis sejam punidos.

A maior parte da turma parecia envergonhada e o silêncio constrangedor permanecia.

— Alguém discorda ou tem algo que queira me dizer? — perguntei, encarando cada um deles. É claro que ninguém deu um pio, como já era de se esperar.

— Bem, então acho que estamos conversados. Era só isso mesmo professora, obrigado pelo espaço — encerrei, voltando para minha carteira em seguida.

Assim que me acomodei em meu lugar, vi que Maia me olhava com orgulho.

— Você é corajoso. Isso vai ser muito útil por aqui — foi só o que ela me disse, antes da aula finalmente começar. 


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E o primeiro dia de aula do Davi não está sendo nada fácil... Ainda bem que a Maia apareceu para dar um apoio. Vocês também já passaram por situações de bullying na escola? Como lidaram com isso?

Obrigado mais uma vez pela leitura, não deixem de votar e comentar por favor, e até a próxima! 💜

Próximo capítulo: A vez em que um jovem órfão conheceu o incrível clube de astronomia

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