20. A vez em que um jovem lobo viu seu coração se encher de dúvidas
Eu me arrependeria daquilo mais tarde, eu tinha certeza. No entanto, minha frustração e raiva eram tão grandes que eu simplesmente não conseguiria disfarçar. Já havíamos saído do bar e estávamos caminhando em direção ao nosso carro, quando Davi se aproximou de mim e tentou segurar minha mão, mas eu me afastei.
— Ei, o que houve? — ele perguntou.
— Nada — foi só o que consegui dizer.
— Tem alguma coisa que eu possa fazer pra melhorar esse humor?
— Não, Davi. Você já fez demais — retruquei. — Não preciso de mais nada de você por hoje.
Aquilo saiu um pouco mais rude do que eu tinha imaginado na minha cabeça, admito. Como resultado, Davi deixou de me seguir. Virei-me em direção a ele e o vi parado, no meio do estacionamento.
— Posso saber o porquê dessa agressividade toda comigo? — ele perguntou.
— Talvez tenha a ver com o fato de você ter sentado no colo daquele desgraçado e nem pensar duas vezes antes de falar como foi bom o beijo dele!
Eu nem percebi, mas já estava gritando com Davi.
— Você tá maluco, Ian? Você sabe que eu fiz aquilo pra gente conseguir essas informações! As informações que você queria! — protestou ele, apontando o dedo para o meu peito.
— Ah, agora você vai falar que foi tudo por mim? Obrigado, mas esse tipo de ajuda eu dispenso!
— Qual o seu problema??? — ele questionou, alterando o tom de voz.
— O meu problema? Sabe qual é o meu problema? É gostar demais de você e não receber nada em troca, esse é meu problema! Eu mal posso encostar em você na escola, porque você tá mais preocupado com o que os outros vão pensar! E você nem sequer se deu ao trabalho de responder se vai querer fazer a droga do ritual da marca comigo! Daí eu tenho que ficar ouvindo qualquer vampiro imbecil dizendo que você não me escolheu. Que você ainda tá disponível! Qual é a sua, Davi? Você tá com vergonha de mim? Você se arrependeu de ter aceitado namorar comigo?
Davi me encarava, atônito.
— Parece mesmo que você não sabe nada ao meu respeito, Ian — lamentou ele, finalmente, com tristeza em sua voz. — Maia, me leva pra casa por favor — ele completou, dirigindo-se à minha irmã.
Os dois deram as costas para mim e caminharam em direção ao carro. Eu entendi que aquela conversa tinha terminado. Davi se sentou no banco do passageiro, ao lado de Maia, e eu me sentei sozinho, no banco de trás. Seguimos em silêncio até a pousada. Chegando lá, Davi mal deu boa noite e já desceu do carro, desaparecendo em seguida. Não tive tempo de dizer mais nada.
Passei para o banco da frente e tive que aguentar o olhar de reprovação da minha irmã.
— O que foi, Maia? — perguntei, sem paciência.
— O que você tem na cabeça, Ian? Você enlouqueceu?
— Você é minha irmã, devia ficar do meu lado...
Maia deu um soco com força no meu braço.
— Ei!!! — protestei.
— É pra ver se você acorda! É justamente por ser sua irmã que eu não vou ficar quieta vendo você fazer essas idiotices!
Maia ligou o carro e logo estávamos de volta à estrada.
— Você tem que segurar sua onda, irmãozinho — ela me aconselhou, finalmente. — Eu sei que esse lance de namoro é novidade pra você, mas não é assim que as coisas funcionam.
— Eu só não entendo... Se eu gosto do Davi, por que eu tenho que ficar me segurando? Me comportando enquanto eu vejo outro cara dar em cima dele na minha frente?
Maia apenas suspirou.
— Eu entendo sua frustração. Mas não se esqueça de que o Davi não agiu à toa. Você já parou pra pensar em como ele tava se sentindo ao ter que falar e fazer todas aquelas coisas constrangedoras na nossa frente? E não foi ele que sugeriu nada daquilo...
Eu não tinha como discordar. Mas Maia não tinha acabado.
— Até onde a gente sabe, o Davi é apenas um humano comum. E o pior, não tem a proteção do Véu. E, mesmo assim, mesmo já tendo sido atacado por aquela criatura, ele tava lá, com a gente, se arriscando. Por conta de um problema que nem é dele. Ele negociou com um príncipe vampiro e conseguiu todas as informações que a gente precisava. Você tem noção disso? O Davi, um menino que chegou aqui há menos de duas semanas, fez tudo isso sozinho, praticamente. E o que você fez?
— Nada...
— Nada? Não seja modesto, irmãozinho. Você fez muito. Você deu um show! Fez cena! Quase colocou tudo a perder várias vezes. E ainda ofendeu o Davi no final de tudo. E por conta de quê? De um beijo que ele deu no Leo quando vocês ainda nem namoravam? Por causa de ciúmes? Me poupe.
O carro voltou a ficar em silêncio. Não havia como argumentar contra aquilo. Maia estava certa, como sempre. Quando chegamos na fazenda, ela finalmente falou comigo outra vez.
— Você deve estar uma pilha de nervos, eu também estou cansada, então não dá pra gente conversar agora. Descansa e amanhã a gente discute melhor como vai fazer pra cumprir o acordo com o vampiro.
— Ok... Boa noite, Maia.
— Boa noite, irmãozinho.
***
Davi me evitou durante todo o dia seguinte na escola. Não apareceu para o almoço, nem vi sinal dele na hora da saída. Normalmente, nós dávamos carona para ele até a pousada, mas, depois da nossa briga, ele resolveu ir embora sem nos esperar.
Não bastasse todos os problemas que eu já tinha, encontrei mais um me aguardando no estacionamento da escola, encostado em nosso carro: Poliana.
— Oi, Ian! Que bom finalmente te encontrar — ela disse ao me ver, sorrindo.
— Corta o papo, Poliana, eu tô com pressa. O que você quer?
A ruiva não se deixou abalar pela minha hostilidade e manteve o sorriso.
— Problemas no paraíso? — perguntou ela.
— Como assim?
— Eu reparei que você almoçou sozinho hoje — ela continuou. — Fiquei imaginando por onde andava seu namoradinho...
— Não sei do que você tá falando — foi só o que respondi, desconversando.
— Me poupe, Ian. As notícias correm. Eu sei que você tá de rolo com o aluno novo. Só vim te lembrar que, caso você se canse dele e de toda essa aventura no país dos coloridos, eu ainda estou à sua espera.
— Sinto muito, Poliana, mas eu dispenso — rebati. — Eu já te disse antes, mas vou repetir. Eu e você, não rola. Eu não estou interessado. Acho melhor você partir pra outra. E como você já reparou, eu estou com outra pessoa. Então, por favor, me deixa em paz.
Para meu alívio, Maia chegou logo depois. Poliana se deu por vencida e foi embora, e logo estávamos na estrada mais uma vez, rumo à fazenda.
***
Maia estava calada atrás do volante e não me deu muita atenção. Tive vontade de perguntar se ela conversara com Davi durante a aula, mas achei melhor não tocar no assunto. Não queria ouvir outro sermão sobre meu comportamento na noite anterior. Ainda assim, havia outras pendências que precisávamos resolver.
— Será que estamos fazendo a coisa certa? Ao não contar para os nossos pais tudo o que aquele vampiro disse? — perguntei.
— Não sei, Ian, de verdade — ela suspirou. — Mas acho que não temos muita escolha a não ser continuar com o plano. Se a gente contar pra eles agora, as consequências podem ser piores mais à frente. Papai e mamãe não vão concordar com Leo entrando na reserva sem antes interrogá-lo... Isso acabaria chegando aos ouvidos do pai dele e sabe-se lá que incidentes diplomáticos poderiam acontecer. Vampiros são muito orgulhosos, não vão querer se submeter às regras dos lobos. Não podemos pisar na bola, não com um dos líderes deles.
— O problema é que não sabemos ao certo com o que estamos lidando — eu argumentei. — Quem garante que é assim tão simples de resolver, como ele disse? E se der errado? E se ele não conseguir selar essa coisa?
— Ele não teria por que mentir sobre isso... É a cabeça dele que tá em jogo. Além do mais, ele parece ser muito experiente. Ou vai dizer que você não sentiu a aura dele?
Nisso eu tinha que concordar com Maia. Seres mágicos emitem uma aura em torno de si e, quanto mais poderosos, mais perceptível ela é para as outras criaturas sobrenaturais. Apesar de eu não gostar de admitir, Leo tinha mesmo uma aura impressionante. De fato, ele não era qualquer criatura. E isso só me fazia gostar ainda menos de ter ele ali por perto.
— Ok, como a gente vai fazer pra colocar um vampiro dentro da reserva então? — perguntei.
— Eu tenho pensado bastante sobre isso — revelou Maia. — Vamos precisar de uma distração. Temos que achar um momento em que alguma outra coisa esteja acontecendo, para fazê-lo entrar despercebido.
— Tipo o quê?
— Ainda não sei — admitiu ela. — Mas vou bolar alguma coisa.
Olhei para a tela do meu celular. Havia enviado uma mensagem para Davi, perguntando como ele estava, mas nem sinal de resposta.
— Ian, eu pensei muito depois de tudo o que rolou ontem... — continuou Maia, me fazendo voltar a prestar atenção nela. — E tem mais um detalhe me incomodando.
— O que foi? Você parece séria...
— É sobre o Davi.
Ouvir aquele nome foi o suficiente para me deixar completamente atento a qualquer coisa que minha irmã tivesse para dizer.
— O que foi? Tá tudo bem com ele?
— Sim, sim, relaxa. Ele ainda tá chateado com você, mas, fora isso, tá tudo certo.
— O que foi então? — perguntei, curioso.
— Quanto mais eu penso, mais me parece que tem alguma coisa na história dele que não se encaixa... Você não achou estranho todo esse lance do Davi ter conseguido dominar e escapar de um príncipe vampiro na pousada? Sozinho?
— Bem, eu tava tentando me comunicar com ele naquela noite, usando nosso laço... Eu me concentrei em alertá-lo de que ele estava em perigo... Achei que tivesse sido isso que ajudou ele a escapar — expliquei.
— Mas pensa melhor, Ian. Você enviou uma mensagem via conexão mental. Você acha mesmo que só isso ia ser o bastante pra ele recobrar os movimentos e arremessar um vampiro experiente para o outro lado do quarto?
— Eu não tô entendendo aonde você quer chegar, Maia...
— Não me entenda mal, irmãozinho, eu adoro o Davi, de verdade. Mas e se ele for mais do que aparenta ser? Quem garante que ele é mesmo apenas um humano imune ao Véu? A gente não sabe nada sobre o passado dele!
— Bem, até agora ele não fez nada que me fizesse duvidar de suas intenções... Ainda acho que essas reações esquisitas que o Davi às vezes tem possam mesmo ser causadas pelo laço que a gente divide. Aquele livro que você me emprestou falava sobre isso, sobre várias habilidades que poderiam surgir desse tipo de união entre dois seres de espécies diferentes...
— Mas é justamente aí que as coisas não fazem sentido — ela me interrompeu. — Pensa comigo. Para o laço funcionar, vocês deveriam estar juntos, não deveriam? Mas, na noite em que o Leo atacou ele, vocês ainda não tinham se entendido. Vocês não estavam em harmonia um com o outro! Por que razão os poderes do laço estariam tão fortes?
Eu não queria admitir, mas o que Maia estava dizendo fazia sentido.
— E tem mais uma coisa que eu não te contei — ela prosseguiu, me deixando ainda mais preocupado.
— O que houve?
— No dia em que eu fiz amizade com o Davi na escola, nós fomos organizar o clube de astronomia, no fim da tarde. Teve uma hora em que a Inara apenas encostou nele. E isso foi o suficiente para fazê-la entrar em transe e desmaiar em seguida.
— Como assim? O que aconteceu exatamente?
— Algum espírito superior foi invocado e usou a Inara como canal pra passar uma mensagem. Eu não lembro em detalhes o que dizia, mas tem uma parte em especial que eu não pude esquecer. O espírito falou sobre uma "flor cadáver". Exatamente esse termo. E que deveríamos nos livrar dessa ameaça, ou algo assim.
— Bem, não é a primeira vez que esse tipo de coisa acontece com a Inara... — eu argumentei.
— Não, não é. Mas, justamente quando ela toca no Davi, um espírito menciona a Flor Cadáver, que a gente nem sabia que existia naquela ocasião. O próprio Leo disse ontem que essa criatura era um espírito antigo e que algo a despertou. E todas essas coisas aconteceram exatamente depois que o Davi mudou pra cá.
— Eu acho que você tá tirando conclusões precipitadas... Tem animais mortos aparecendo na reserva desde a época do nosso aniversário. O Davi chegou aqui bem depois disso. Ou seja, a criatura já estava agindo antes dele vir...
— Não sei, não sei, talvez você esteja mesmo certo — admitiu Maia, confusa com minha última afirmação. — Mas e se a presença dele de alguma forma acelerou as ações dessa criatura? Será mesmo que tudo isso é só uma grande coincidência?
Um pensamento novo cruzou a minha mente naquele momento.
— Espera um pouco, Maia. Acabei de me dar conta de algo. Você é um Lobo do Sol, não é? Então já não deveria saber se há algo de errado nas intenções do Davi?
— Aí é que está o problema, irmãozinho. Eu não contei isso pra ninguém, mas... Eu não consigo sentir nada vindo dele.
— Como assim nada? Tem que ter alguma coisa, não? — questionei, preocupado.
— Deveria. Mas é como se ele fosse uma folha em branco. Não consigo sentir nenhuma intenção vindo dele, boa ou ruim. Ele é indecifrável pra mim. E é isso que me deixa ainda mais desconfiada...
Aquilo era uma novidade. Eu nunca tinha visto os poderes de Maia falharem antes. Aparentemente, havia mesmo mais coisas sobre Davi do que imaginávamos.
***
Achei que a minha cota de preocupações do dia já havia sido preenchida, mas, pelo visto, eu estava enganado. Na fazenda, estavam à minha espera meus pais e Benjamin.
— Ei campeão, que bom que você chegou. Senta aqui, a gente precisa conversar com você.
Fiz como meu pai pediu e me sentei na sala, junto com eles. Maia subiu as escadas e foi para o quarto dela, nos deixando a sós.
— Bem, querido, seu irmão e seu pai conversaram muito comigo e eu cheguei a uma decisão — informou minha mãe. — Nós vamos aceitar o Davi como parte da alcateia.
Eu podia notar pelo tom de voz usado que ela concordara com aquilo à contragosto. Deve ter dado muito trabalho para o meu pai e Benjamin a convencerem.
— Obrigado, mãe, de verdade. Isso significa muito pra mim.
— Não pense que eu aceitei isso de bom grado — ela completou. — No entanto, Benjamin me contou sobre todas essas lendas, esse tal laço que parece existir entre vocês e, apesar de não ter me convencido, resolvi que não seria a "do contra". Diante de toda essa situação, achei que não havia outra solução mais apropriada a não ser aceitar tudo isso, pelo bem da alcateia...
— Você não vai se arrepender, eu prometo — me apressei em garantir.
— Isso só o tempo irá dizer — ela rebateu, com certa frieza.
Meu pai se encarregou de tentar melhorar o clima.
— Bom, meu filho, nós discutimos bastante e pensamos em algumas coisas. O Davi não conhece muito bem nossa cultura, então achamos que ele poderia assumir alguma função mais simples na alcateia. Algo que um humano comum possa fazer. Dessa forma, ele vai poder conviver mais com a gente e entender melhor nosso modo de vida.
— Ele disse que pretende fazer faculdade por aqui, não foi? — perguntou Benjamin. — Então, ele ainda vai continuar em Esmeraldina pelos próximos anos. Podemos aproveitar esse tempo pra ele se integrar melhor com o nosso grupo e, depois de formados, vocês decidem o que vão querer fazer.
Não pude deixar de notar que, aparentemente, eles já tinham decidido tudo a respeito do meu relacionamento e do meu futuro. No entanto, achei melhor não questionar, pelo menos não naquele momento. Minha mãe ainda não estava muito convencida a respeito de Davi, e eles não tinham sugerido nenhum absurdo no fim das contas.
— Falta só uma coisa, no entanto, meu filho — continuou meu pai. — Nós temos que apresentar o Davi aos demais lobos. Mas, antes disso, vocês precisam fazer o ritual da marca.
Ok. Isso era um problema. E meu pai percebeu minha preocupação.
— O que foi? Eu disse algo de errado?
— Não, pai, não é isso. É que o Davi ainda não me respondeu se vai querer receber a marca.
Minha mãe se agitou onde estava sentada.
— Como assim "querer receber a marca"? — ela contestou. — Eu pensei que vocês estivessem de acordo quanto a isso!
— Na verdade, ele só ficou sabendo da existência da marca no almoço de domingo e não tocamos mais no assunto desde então...
— Olha só irmãozinho, você precisa resolver isso com ele o quanto antes — interveio Benjamin. — Para a segurança dele e para a nossa. A marca é a prova de que Davi aceitou nosso modo de vida e de que podemos confiar nele. Precisamos ter certeza de que nosso segredo estará seguro.
Não conseguia parar de pensar no que Maia me dissera no carro. Sobre o quão pouco nós sabíamos sobre Davi. E, agora, eu tinha que tomar uma decisão junto com ele, que não poderia ser revertida futuramente. Por que as coisas tinham que ser tão complicadas?
— Eu vou conversar com o Davi, pode deixar. E depois eu aviso vocês.
Minha mãe se levantou, contrariada, e foi para o quarto. Meu pai foi logo atrás. Nem imagino as dificuldades que meu velho deveria estar enfrentando para lidar com aquele humor dela. Precisaria pensar em alguma forma de agradecê-lo depois. Benjamin pegou suas coisas e se preparava para ir embora, quando o interrompi.
— Ben, espera!
— O que foi, irmãozinho? — ele quis saber.
— Eu quero te pedir um favor. E preciso que você mantenha isso em segredo.
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Fogo no parquinho! Ian não segurou a onda e tivemos a primeira briga do nosso casal! O que será que o Leo acharia de tudo isso? :p
Não bastasse essa confusão, um monte de informações novas sobre Davi estão bombardeando a mente do nosso querido lobo: e agora, deve Ian insistir no ritual da marca, mesmo com tantas dúvidas?
O que o futuro em Esmeraldina reserva para nossos dois pombinhos? Mistério! :D
Obrigado pela leitura, vote, comente, faça nosso Clube crescer! Um beijo de lobo em cada um de vocês! 💜
Próximo capítulo: A vez em que um jovem órfão pediu ajuda aos espíritos ancestrais
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