18. A vez em que um jovem lobo encontrou um destemido rival

Eu corria pela floresta o mais rápido que podia. Já havia me acostumado com a nova forma do meu lobo e aproveitava para testar os limites do meu corpo. É claro, não deu para esconder dos meus pais nem do restante da alcateia que eu havia feito o ritual do suplício prateado – bastava olhar para mim para perceber aquilo. Mas, depois de muito conversar, eles pareceram entender meus motivos e acabei apenas recebendo trabalho dobrado na fazenda aos finais de semana como punição.

O dia de hoje tinha sido complicado, porém. Apesar de o meu pai ter reagido bem sobre minha revelação durante o almoço, minha mãe ainda não estava falando comigo. Decidi fazer como meu velho sugeriu e dar um tempo para ela. Não dava para fazer omeletes sem quebrar os ovos e, de fato, eu já esperava por aquela reação. Minha mãe nunca escondeu os cuidados exagerados que ela tinha comigo e, por mais que Maia e eu fôssemos gêmeos, eu ainda era o caçula, o que tinha nascido por último. E isso a fazia ser super protetora muitas vezes.

Estávamos um pouco mais distantes da fazenda na patrulha da noite de hoje. Nosso objetivo era encontrar alguma pista sobre a garotinha que havia desaparecido na floresta. Ela era sobrinha de um dos funcionários da pousada e já fazia sete dias desde que ela sumira. A polícia estava toda mobilizada no caso, até mesmo uma equipe da capital havia sido enviada a Esmeraldina. No entanto, enquanto os policiais humanos dormiam, nós, lobos, continuávamos o trabalho, tentando encontrar pistas que talvez eles não fossem capazes de enxergar.

Durante toda aquela semana, nós fizemos uma varredura partindo do local onde a mãe da garota havia sido encontrada, desacordada. No entanto, em determinado ponto, os rastros delas simplesmente desapareciam. Mesmo assim, continuamos empenhados naquela tarefa. Era uma corrida contra o tempo e, a cada dia que passava, nós sabíamos que menores eram as chances da menina.

Estava prestes a retornar ao ponto de encontro, sem nenhuma pista mais uma vez, quando um ruído me chamou a atenção. Eu sabia que já havia escutado aquilo antes, só não me lembrava onde. Tentei localizá-lo e me surpreendi com uma figura que eu não esperava ver por ali. Era um canário vermelho, da mesma espécie que eu havia encontrado na noite do meu ritual de passagem. Talvez aquilo não desse em nada, mas não custava arriscar. Uivei para chamar atenção do resto do grupo e comecei a seguir o animal, que voara floresta adentro, alheio à minha presença.

Assim como na noite do meu aniversário, o canário rubro acabou me conduzindo por locais aparentemente inacessíveis, me fazendo atravessar alguns arbustos e plantas que me impediam de ver o que havia adiante. Porém, quando finalmente consegui enxergar o que me aguardava, aos pés de uma encosta, paralisei.

Era um mastro semelhante ao que havíamos encontrado na noite do ataque à fazenda. Pendurada nele estava uma carcaça de algum animal, aparentemente um bezerro, já em avançado estado de decomposição. Aos pés do mastro, várias outras carcaças de animais mortos, como aquelas que vínhamos encontrando na região da nossa fazenda. E, em meio a elas, uma visão preocupante. Um casaco infantil, manchado de sangue.

Os outros lobos chegaram ali logo em seguida. Como não havia nem sinal da garota, decidimos não tocar em nada. Meu pai conduziria os investigadores humanos até aquele local, na manhã seguinte, bem cedo, e eles continuariam as buscas a partir dali. Nossa parte estava encerrada. Ainda assim, um pensamento me aterrorizava. Seria a mesma criatura que matou Rojão a responsável pelo sumiço da garotinha?


***


Acordei bem-disposto e cheio de energia. Mais uma semana de aulas se iniciava e eu finalmente voltaria à escola. Manhãs de segunda-feira muitas vezes são motivo suficiente para acabar com o bom humor de qualquer um, mas não com o meu. Ir para a aula significava rever Davi e isso era o bastante para me deixar animado.

Eu estava afastado do colégio já há alguns dias. Paulo e eu fomos suspensos pelo restante da última semana depois da nossa briga no vestiário, mesmo com Davi explicando à diretora que fora o valentão quem começara toda a confusão. No fim das contas, não dava para espancar o filho do prefeito e esperar que nada acontecesse com você, então apenas aceitei minha punição.

Apesar da minha animação, no entanto, havia duas coisas que ainda estavam me deixando preocupado. Primeiro, os rastros macabros que encontramos na floresta na noite anterior. Meu pai levaria os investigadores até lá, mas eu estava ansioso para saber o que aconteceria depois disso. E, em segundo, toda aquela discussão sobre fazer o ritual da marca em Davi. Eu tinha evitado esse assunto com ele, porque achei que era muita informação para dar logo de cara, mas, agora, Davi já sabia e nós ainda não havíamos conversado a respeito.

Eu estava curioso para saber o que ele tinha pensado daquilo tudo e acho que muito em breve eu descobriria. Vi Davi mais a frente, distraído, enchendo uma garrafa de água no bebedouro da escola e não pude conter um sorriso.

— Oi, moço — eu brinquei, me aproximando para dar um beijo nele. Davi, no entanto, se afastou de mim, aflito.

— Ei, o que você tá fazendo? — ele protestou.

— Dando bom dia para o meu namorado?

Eu podia ver a preocupação estampada no rosto dele. Alguma coisa não estava certa.

— O que tá rolando, Davi?

Ele se sentou num banco próximo e fez sinal para que eu o acompanhasse.

— Acho que a gente tem que conversar sobre algumas coisas...

— Tipo? — agora era eu quem estava confuso.

— Tipo você me beijar em público e todas essas demonstrações de afeto...

— Eu achei que não teria problemas nisso — eu admiti. — Quer dizer, todo mundo já sabe sobre você...

Davi pareceu se incomodar com meu último comentário.

— Sim, e essa é a questão. Eu sou como sou, não dá pra disfarçar. E não tô falando só da aparência, tá ligado? Qualquer lugar que eu vá, todo mundo saca de cara que sou gay. Por conta disso, eu já sou julgado, rotulado, ridicularizado. Você reparou em tudo que me aconteceu em menos de uma semana por aqui? Além de ser exposto pra escola toda, eu fui espancado! E tudo isso apenas por ser do jeito que eu sou...

— Mas agora eu tô com você, Davi... — tentei argumentar.

— E é justamente esse o problema. Desculpa, Ian, não me entenda mal, mas você é o garoto perfeito aos olhos de todo mundo aqui. Você pode fazer o que quiser e ninguém vai falar nada. Pode dar um beijo no garoto afeminado da escola e continuar sua vida como se nada tivesse acontecido. Ninguém nunca vai apontar o dedo pra você e te chamar de "viadinho". E, se por algum azar isso acabar acontecendo, você ainda é forte o bastante pra se defender sozinho... Já eu... eu não sou nada disso...

Eu conseguia entender o que Davi dizia. De fato, nesse aspecto, éramos mesmo bem diferentes. E a questão ia muito além de mim e das minhas vontades. Dava para ver que ele já tinha passado por muita coisa antes de chegar em Esmeraldina.

— Você quer manter nossa relação em segredo, é isso? — perguntei, com medo da resposta.

— Não, não precisa chegar a tanto... Eu tô com você e não vou deixar ninguém atrapalhar a gente. Mas vamos tentar não chamar muita atenção enquanto estivermos em público, pode ser? Eu não quero ter mais dores de cabeça nessa escola... Só quero terminar o ensino médio em paz.

— Olha, vai ser muito difícil me segurar diante desse rostinho, mas prometo que vou me esforçar — eu provoquei.

Davi revirou os olhos.

— Dá pra ser menos brega também?

— Você que faz isso comigo — eu respondi, aproveitando o momento de distração dele para roubar um beijo.

— Ei! — ele protestou. — Você por acaso ouviu alguma coisa de tudo o que eu acabei de falar?

O sinal tocou em seguida, me salvando de uma nova bronca.

— Te vejo no almoço? — perguntei, desconversando.

— Sim, senhor! — ele respondeu com um sorriso, se dando por vencido.


***


No horário do intervalo, Davi e Maia me esperavam no refeitório, em nossa mesa habitual. Peguei minha bandeja e fui em direção a eles. No meio do caminho, entretanto, um som me fez paralisar. Dessa vez eu sabia bem o que era – era o canto do canário vermelho, que eu já tinha encontrado duas vezes na floresta, mas que não fazia nenhum sentido eu estar ouvindo ali, dentro dos prédios da escola. Mudei a rota e passei a seguir o ruído e me surpreendi ao ver que ele vinha do celular de uma garota.

— Desculpa, mas de onde você tirou esse som? — perguntei, sem perder tempo.

Ela se virou para mim, mal-humorada.

— Eu te conheço?

— Não, não conhece e peço perdão pela minha intromissão... Eu só queria saber onde você conseguiu esse toque do seu celular.

— Sei lá, baixei um programa e ele tava no meio, eu gostei e tô usando.

Todos na mesa da garota me olhavam como se eu fosse maluco. Era um grupo de alunos bem esquisito, para falar a verdade. Concluí que era melhor dar logo o fora dali antes de arranjar encrenca.

— Tudo bem, desculpa incomodar. Obrigado!

Quando cheguei até minha mesa, Maia e Davi também me olhavam com curiosidade.

— O que você tava fazendo, pescoço de jaburu? — perguntou Maia.

— Nada... Eu apenas pensei ter escutado um som familiar, mas acho que me confundi.

— Tá tudo bem? — quis saber Davi.

Aproveitei a deixa e contei para os dois sobre minhas suspeitas de que a criatura que atacou a fazenda pudesse estar envolvida no desaparecimento da garotinha em Esmeraldina. Após me ouvir, Davi demonstrava estar preocupado com alguma coisa.

— Olha, eu não quis tocar nesse assunto antes, porque muita coisa rolou nesses dias, a briga com o Paulo, o almoço com seus pais... E eu acabei não encontrando o momento certo pra falar disso, mas... Tem algo que eu preciso contar pra vocês — começou ele.

Maia e eu não dissemos nada, confusos, e esperamos pela explicação dele.

— Lembra daquela noite que você me ligou na pousada, pra saber se eu tava bem? E eu te disse que tava tudo certo e nada tinha acontecido?

Foi a noite em que fiz o ritual com o Benjamin, não tinha como eu esquecer.

— Lembro sim. O que houve?

— Bem, acontece que de fato rolou algo estranho antes de você me ligar.

Davi estava constrangido. O que quer que tivesse acontecido, estava o deixando desconfortável em nos contar. Porém, depois de mais alguns segundos, ele finalmente criou coragem e nos revelou com detalhes o que de fato havia se passado naquela noite, envolvendo um tal hóspede bizarro.

Então eu estava certo. Alguma coisa tentara mesmo atacar ele na pousada. E eu também estava furioso, devo admitir, não apenas por conta da ameaça que Davi tinha sofrido, mas porque aquela criatura, seja lá o que fosse, também havia beijado ele (ok, ok, isso não era tão importante quanto ele correr algum risco, mas, ainda assim, era inadmissível).

— Isso é muito estranho — ponderou Maia, interrompendo meus pensamentos. — O solo de Esmeraldina é protegido pelo Véu, o que deveria afastar qualquer criatura inferior...

— Não sei se entendi... — respondeu Davi.

— Bem, se ele conseguiu se hospedar na pousada e fazer tudo aquilo com você sem nenhum esforço, isso significa que ele não é uma criatura qualquer... Ele deve ser bem poderoso — concluiu Maia.

— Durante o ritual, eu vi uma sombra se aproximando do Davi, mas não consegui identificar o que era — eu mencionei.

— E quando você estava na floresta, com o Rojão, a criatura que apareceu para vocês também era uma sombra, certo? — quis saber Maia.

— Sim, era — confirmei.

— E tem mais uma coisa — continuou Davi. — Esse garoto estava hospedado na pousada desde antes da sobrinha do Roberto sumir... Não quero parecer precipitado, mas eu o vi no sábado, na varanda... E, no dia seguinte ao desaparecimento dela, ele simplesmente foi embora!

Não podia ser coincidência. Aquele sujeito tinha que estar envolvido de alguma forma. E eu não via a hora de colocar minhas mãos nele. Como assim ele tinha beijado o Davi? (E, sim, sim, precisávamos achar a garotinha também).

— E o que a gente faz então? — perguntou Maia.

— Não deveríamos contar isso para o pai de vocês? — Davi sugeriu.

— A gente pode até contar — eu disse —, mas não sei se ele vai dar muita atenção. Tudo que temos, por enquanto, são suspeitas... Eu até tentei falar pra ele ontem que achava que o ataque à fazenda e o caso de desaparecimento poderiam estar relacionados, mas ele falou que eu estava imaginando coisas, porque ainda estava impressionado com a morte do Rojão...

— Alguma novidade nas investigações? — Davi quis saber.

— Mandei mensagem para meu pai alguns minutos atrás, perguntando sobre o casaco que encontramos. Ele disse que fizeram os primeiros exames e o sangue que havia nele não era humano... A hipótese da polícia é de que a menina passou pelo local das carcaças, se assustou com o que viu e se embrenhou ainda mais na mata, perdendo o casaco nesse processo... O sangue seria de algum dos animais mortos que estavam lá...

— Acho que devíamos investigar por conta própria então — sugeriu Maia. — Mesmo que no final esse garoto da pousada não tenha nada a ver com a criança desaparecida, pelo menos precisamos saber o que, de fato, ele é, e nos certificar de que ele não vai mais atacar o Davi nem ninguém por aqui.

Garantir que ele nunca mais chegasse perto do Davi era uma prioridade minha, pode ter certeza.

— Como a gente acha esse cara então? — questionei.

— Eu posso olhar no registro da pousada — propôs Davi. — Eu sei o quarto e o dia que ele estava lá, vai ser fácil achar os dados dele. Daí a gente resolve o que fazer.


***


Eu e Maia fomos com Davi até a pousada após a aula. Chegando lá, esperamos ele assumir a recepção para poder procurar a ficha do garoto estranho sem ser interrompido.

— Achei! — informou ele, depois de buscar por alguns minutos. — Leonardo da Silva, é esse mesmo.

Um nome comum até demais, o que me pareceu suspeito.

— Tem endereço, ou algo que nos ajude a localizá-lo? — perguntou Maia.

— Não, só o telefone de contato e o número do documento de identidade. Ele não preencheu nenhuma outra informação, a reserva foi feita pelo site da pousada e ele pagou adiantado, com cartão de crédito.

— E o que a gente faz agora? — perguntei.

Ia ser difícil achar qualquer informação na internet. Deveriam existir milhares de Leonardos da Silva. E nem sabíamos de onde ele era.

— O número é de um celular... Eu vou mandar uma mensagem — sugeriu Davi.

— Nem pensar! — respondi, impulsivamente. — Não quero você se arriscando com esse cara de novo!

— Calma, Ian — Davi me tranquilizou. — Ele se interessou por mim de alguma forma... Talvez eu consiga chamar a atenção dele. E vocês estão comigo agora. Não tem como ele me fazer nada.

— Ele tem razão, irmãozinho. É nossa melhor chance — concordou Maia.

A contragosto, vi Davi pegar seu celular e digitar uma mensagem.

DAVI: Oi Leo, aqui é o Davi. A gente se conheceu na pousada em Esmeraldina, eu ajudei você com o seu ar-condicionado, lembra?

Em menos de cinco minutos o garoto respondeu.

LEO: Como poderia esquecer? Até hoje lamento não ter conseguido continuar aquele beijo...

"Eu vou matar esse desgraçado", pensei, incomodado. Maia, enquanto isso, ria da minha reação às mensagens. Já Davi continuava empenhado em descobrir mais sobre aquele desconhecido.

DAVI: Você ainda tá na região? Queria conversar algumas coisas com você... Quem sabe a gente podia continuar de onde parou...

— Você tá maluco? — protestei. — Que raios de mensagem é essa???

— Calma, Ian! Eu tenho que chamar atenção dele! Quem diria que logo você seria do tipo ciumento, hein?

A acusação de Davi me fez ficar vermelho. Maia continuava rindo da minha cara. O garoto respondeu, finalmente.

LEO: Descobriu meu número e agora me faz uma proposta dessas? Como eu poderia recusar?

— Isso, ele mordeu a isca! — comemorou Maia. Eu não consegui me empolgar, no entanto.

DAVI: Como fazemos então?

LEO: Encontro amanhã à noite?

DAVI: Claro! Mal posso esperar!

Depois disso, o garoto enviou o endereço de um bar que eu não conhecia. Pela localização, ficava na rodovia, já fora de Esmeraldina. Estava marcado então e eu finalmente poderia acertar meus assuntos com aquele sujeito. 


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Olha só quem apareceu! Ansiosos para o reencontro de Leo e Davi?

E como será que o Ian vai lidar com isso tudo? Que lobo mais possessivo!

Vocês também são ciumentos como o nosso lobinho marrom? Estou curioso para saber!

Obrigado pelos votos e comentários e até a próxima! 💜

Próximo capítulo: A vez em que um jovem órfão firmou um acordo com um príncipe

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