13. A vez em que um jovem lobo conheceu o doloroso sentimento da perda

Apesar da minha agilidade na forma de lobo, era difícil acompanhar o ritmo de Rojão, que se embrenhava cada vez mais fundo na floresta, sem nunca diminuir a velocidade. Eu não sabia como fazer o animal voltar a si, mas, mesmo assim, simplesmente não podia vê-lo desaparecer daquela forma, sem ao menos tentar impedir.

Conforme perseguia Rojão, passei a reconhecer a paisagem. Sim, eu não estava enganado. Estávamos passando pelos mesmos lugares que percorri na noite do meu ritual de aniversário. E, antes mesmo que pudesse me dar conta, me vi, mais uma vez, na mesma clareira em que eu quase havia desistido de ser um lobo.

Rojão estava parado no centro daquele espaço descampado, me encarando. O cavalo batia energicamente seus cascos contra o chão e continuava a relinchar. Porém, seja qual fosse a transformação pela qual ele estivesse passando, ela finalmente estava completa. Rojão não estava mais gritando de agonia. Agora, ele estava me desafiando.

Aproximei-me do cavalo com cautela, fazendo círculos cada vez menores ao seu redor, enquanto ele continuava inquieto e atento a todos os meus movimentos. Meus sentidos de lobo começaram a me alertar, porém, que algo mais estava acontecendo ali. Começou com uma leve brisa, que, aos poucos, foi se convertendo em ventos cada vez mais fortes. Em instantes, a repentina ventania passou a agitar os galhos das árvores com força. Uma tempestade estava se formando.

Continuei naquele jogo de gato e rato com Rojão, tentando me aproximar cada vez mais, mas o cavalo sempre evitava as minhas investidas com seus coices. Meu plano era derrubá-lo e imobilizá-lo no chão, até que ele recobrasse a consciência. Não demorou muito, porém, até que a chuva começasse a cair violentamente sobre nós. Tinha esperanças de que o contato com a água pudesse fazer meu velho amigo voltar ao normal, mas, contrariando minhas expectativas, Rojão continuava possuído por aquela força misteriosa.

A tempestade ficava cada vez mais forte, mas foi apenas quando um relâmpago rasgou o céu, acima de mim, que tomei consciência de que havia mais alguém ali. O clarão iluminou por breves segundos a clareira e consegui perceber um vulto escuro, disforme, que nos observava por detrás de algumas árvores. Fiquei bastante incomodado com a descoberta, porque o que quer que aquilo fosse, conseguira se manter invisível aos meus sentidos de lobo durante todo o tempo em que ali estávamos. Aquela aparição era sinônimo de perigo, mas eu tinha que enfrenta-la. Aquele inferno precisava terminar.

Aproveitei-me de um momento de distração de Rojão para me afastar do cavalo e corri em direção a onde estava o vulto. Porém, antes mesmo que eu pudesse ultrapassar metade da distância entre mim e a sombra, senti meu corpo paralisar. Um som agudo, como um chiado, explodiu em meus ouvidos, me fazendo uivar de dor. Um relincho de desespero vindo de Rojão indicava que o ruído também o afetava.

Voltei-me em direção ao cavalo e vi o vulto se movimentar por detrás dele. Tentei com todas as minhas forças me aproximar, ou chamar a atenção de Rojão, que ignorava a aproximação da sombra e o perigo que ela representava. No entanto, não conseguia de maneira alguma retomar o controle sobre meus movimentos. Eu tinha sido dominado por aquela força desconhecida e mal podia suportar a dor agonizante que se espalhava por todo meu corpo.

O horror que eu vivenciaria naquela noite, no entanto, ainda estava longe de acabar. A sombra finalmente chegou até onde Rojão estava e não pude conter minhas lágrimas diante do espetáculo macabro que se desenrolava à minha frente. Um a um, vi os membros do cavalo serem partidos, atacados com brutalidade por aquela criatura. O animal se debatia em desespero e o som dos seus relinchos e de seus ossos sendo esmagados foi o suficiente para me colocar em um estado de profundo terror e choque.

Vi o corpo do animal ser retorcido de formas que deveriam ser fisicamente impossíveis e, para meu desespero, não conseguia fazer nada para impedir. Sangue se espalhava por todos os lados e aquele chiado infernal explodia em minha cabeça num volume cada vez mais alto, intercalando-se com os relinchos agonizantes do cavalo.

Depois de longos instantes de tortura, porém, Rojão finalmente tombou, com a cabeça aos meus pés. O som agudo desapareceu e, naquele momento, o único barulho que eu ouvia era o das gotas de chuva, que ainda insistiam em cair. Sem que eu pudesse controlar, meu corpo foi forçado de volta à sua forma humana.

Atrás do cavalo caído, vi o vulto lentamente retornar para dentro da mata fechada, desaparecendo logo em seguida. Porém, mesmo que eu quisesse, não seria capaz de voltar à forma de lobo, nem tinha forças suficientes para perseguir meu inimigo. Resignado, abaixei-me ao lado de Rojão, que ainda agonizava, e segurei sua cabeça junto ao meu peito.

— Tá tudo bem, amigão, tá tudo bem — eu repetia, enquanto fazia carinho e tentava acalmar o cavalo uma última vez.

Minhas lágrimas caíam e se misturavam com a chuva e com o sangue de Rojão. O mesmo animal que eu vira nascer, e que tinha sido um amigo fiel durante inúmeros anos, morria agora em meus braços.


***


Eu estava enrolado em uma toalha, ainda encharcado da chuva, enquanto observava em silêncio meus familiares discutirem diante de mim.

— A gente devia voltar pra lá, talvez ainda dê tempo de encontrar quem fez aquilo com o cavalo — insistia Benjamin.

— Você está louco? Vamos acabar todos mortos! — protestou Maia. — Você não viu o estado em que papai encontrou o Ian?

Apesar do argumento da minha irmã parecer surtir efeito, Benjamin ainda não se dera por convencido.

— O Ian estava sozinho... Talvez se voltássemos com um grupo maior...

— Eu já mandei todos os outros lobos irem para casa — interrompeu minha mãe. — Deu muito trabalho acalmar e recolher os animais da fazenda e nossos irmãos estavam todos bastante cansados. Muitos deles têm que trabalhar amanhã cedo, inclusive seu pai.

— E vamos deixar por isso mesmo? — quis saber Benjamin, claramente incomodado.

— Acho que é o melhor que podemos fazer por enquanto — finalmente meu pai se pronunciou. — Acho que nós todos também devíamos descansar.

— Ainda não terminou — comentou Maia, como se pressentisse algo a mais. — Foi só um aviso. Essa criatura, seja lá o que for, quer nos ver longe daqui, e parece que não vai medir esforços para isso...

— Se é guerra que ela quer, é guerra que ela terá — respondeu minha mãe.

Após encerrarem a discussão, Benjamin se despediu de nós e foi para sua casa. Maia me acompanhou até o meu quarto e me fez tomar um banho. Eu ainda estava em estado de choque e não conseguia conversar com ninguém. Na minha cabeça, continuava ouvindo o som de Rojão agonizando. E me odiava por não ter sido capaz de fazer nada.

Deitei-me em minha cama e tentei dormir, mas fui atormentado por pesadelos durante toda a noite. No entanto, apesar de todo o inferno que eu tinha acabado de vivenciar, havia algo martelando em minha cabeça, que me apavorava ainda mais. Desde o momento em que eu fora forçado de volta à minha forma humana, na floresta, eu não conseguia mais sentir a presença do meu lobo dentro de mim.


***


Acordei com o barulho de Maia se movendo ao lado da minha cama.

— Olha só como você é sortudo — ela brincou, enquanto se abaixava para colocar uma bandeja sobre o aparador ao lado da minha cabeceira. — Tem até uma irmãzinha que te ama e preparou café pra você.

Apenas forcei um sorriso e agradeci. Maia notou que eu ainda não estava a fim de conversa, e dirigiu-se à porta, sem insistir.

— Eu tô indo até a casa da Inara pegar uns livros emprestados. Mas logo tô de volta, se você quiser fazer alguma coisa pra se distrair... — ofereceu ela, antes de partir.

Fechei as cortinas, encostei a porta do quarto e voltei a me esconder debaixo dos lençóis. Passei o dia todo trancado, me levantando apenas para beliscar a comida que minha irmã trouxera pela manhã. Após anoitecer, no entanto, meu estômago começou a roncar, em protesto.

Contrariado, levantei-me da cama e fui em direção à cozinha. Porém, ao passar pelo corredor, ouvi vozes na sala e algo chamou minha atenção. Alguém claramente havia mencionado meu nome. Aproximei-me discretamente e consegui ver Maia, com uma pilha de livros abertos em frente a ela, discutindo com meus pais em tom alarmado.

— Vocês não estão me entendendo! — ela insistia. — Se eu estiver mesmo certa, acho que o Ian vai acabar rasgando o véu!

— E por que você acha isso? — eu questionei, entrando abruptamente onde eles estavam, sem disfarçar minha irritação. — Talvez você possa explicar diretamente pra mim. Ou prefere continuar falando pelas minhas costas?

Maia me olhava, assustada.

— Calma lá, campeão — interferiu meu pai. — Sua irmã só está tentando ajudar.

Apenas cruzei meus braços e continuei a encarar minha irmã.

— Estou esperando sua explicação — eu insisti.

Minha mãe enfim se levantou, dirigindo-se ao meu pai.

— Querido, acho que esses dois têm muita coisa para conversar. Vamos logo, sim?

— Espera, aonde vocês vão? — quis saber Maia. — Eu ainda não terminei!

— Nós vamos até a fazenda ao lado, fazer uma visita — minha mãe respondeu. — Depois de ontem, queremos ter certeza de que está tudo bem com nossos vizinhos. Enquanto isso, vocês dois aproveitem o tempo sozinhos e se entendam.

Aquilo não foi um pedido da minha mãe, mas sim uma ordem da líder da alcateia. De qualquer forma, pretendia mesmo confrontar Maia sobre o que quer que ela estivesse falando sobre mim, então apenas me sentei numa poltrona e aguardei meus pais saírem.

— Estou esperando, pode começar — eu ordenei à minha agora calada irmã.

— Eu queria ter certeza de algumas coisas, por isso vim falar primeiro com eles — ela tentou se justificar. — Não queria te trazer mais preocupações, não depois de tudo o que você passou ontem...

— De todas as pessoas do mundo, Maia, eu esperava que pelo menos você entendesse o quanto uma mentira pode magoar alguém. Cadê toda aquela conversa de justiça, honestidade, caráter? — interrompi, tocando no ponto fraco dela, dessa vez propositalmente.

— Eu sinto muito, de verdade — foi só o que Maia conseguiu responder.

Eu conhecia minha irmã e sabia dizer, pela expressão em seu rosto, que ela estava mesmo arrependida. No entanto, precisaria bem mais do que um pedido de desculpas para acalmar a raiva que eu estava sentindo naquele momento. Optei, ao invés disso, por descobrir de uma vez por todas o que a deixara tão preocupada a meu respeito.

— O que tem de interessante nesses livros velhos?

Ainda envergonhada, ela começou a se explicar.

— Você se lembra da lenda do Grande Lobo que se casou com a Lua, certo? Pois bem, quando você mencionou tudo o que sentiu naquele dia, na piscina, alguns detalhes chamaram a minha atenção.

— Que detalhes?

— Por exemplo, a maneira como você sabia que estava sendo observado quando estava dentro da água. E depois, quando você conseguiu sentir o cheiro daquele garoto, mesmo estando a uma distância considerável dele.

De fato, tudo aquilo tinha sido mesmo bem estranho.

— O que me chamou mais atenção, no entanto — continuou ela — foi que você estava na forma humana! E, mesmo assim, conseguiu utilizar os seus sentidos de lobo, sem nem ao menos se transformar... E é nesse ponto que entram os livros.

Sentei-me ao lado de Maia, para ver o que ela tinha para mostrar. Ela continuou, animada com o meu interesse.

— Eu me lembrava de já ter lido alguma coisa sobre isso. Sobre um tipo de lobo que conseguia usar suas habilidades mesmo sem fazer a metamorfose. Achei algumas menções breves nos livros do papai, mas nada muito esclarecedor. Até que eu fui na casa da Inara...

Observei enquanto Maia pegava um enorme livro, de capa de couro, e abria sobre os demais.

— O pai da Inara tem uma coleção enorme sobre toda a mitologia do nosso continente e é claro que acabei achando informações bem úteis sobre nossa espécie e...

— Ok, ok, já entendi! — interrompi, impaciente. — O que tá falando aí?

Maia me mostrou a figura de um grupo de lobos andando de pé, se apoiando em suas patas traseiras. Cada um dos lobos vinha acompanhado de uma figura humana, de mãos dadas. No céu, uma lua os iluminava. Senti um calafrio ao ver a ilustração.

— Aparentemente, há muito tempo atrás, existiu um tipo de lobo que tinha suas habilidades ampliadas, mesmo na forma humana. E o que ativava esse poder era a aliança feita com um ser de outra espécie — explicou Maia.

Agora eu compreendia melhor o teor da ilustração.

— Segundo esses registros, esses lobos tinham uma chance única na vida de encontrar um espírito compatível, quase como se fosse uma alma gêmea. Caso encontrassem, compartilhavam algo chamado de "laço lunar". De acordo com essas lendas, seria o mesmo tipo de vínculo que existiu entre o Grande Lobo e a Deusa Lua, ou seja, algo muito raro e especial.

— E onde eu entro nessa história toda? — perguntei, prevendo a resposta.

— Eu acho que você possa ser um desses lobos — respondeu ela. — E também acho que aquele garoto possa ser o seu espírito compatível...

Aquilo tudo era muito para processar. Eu e Davi, um garoto que eu mal conhecia, formando uma aliança mitológica? Não sabia o que responder, mas não estava disposto a aceitar aquelas lendas antigas assim tão facilmente.

— Como você pode ter tanta certeza? E por que logo eu, depois de centenas de anos?

— É apenas um palpite... — ela respondeu. — Por isso eu quis falar com papai e mamãe primeiro...

— Você contou pra eles sobre o Davi e eu? — perguntei, preocupado.

— Claro que não! — ela respondeu, ofendida. — Eu disse apenas que você poderia ser um tipo especial de lobo e que isso poderia te fazer rasgar o véu... Você entrou logo em seguida, eu não tinha falado mais nada!

Eu sabia que Maia não mentiria sobre aquilo e acreditei nas palavras dela. No entanto, mal tinha me recuperado da noite anterior e não conseguia mais me concentrar naquela conversa. Minha irmã percebeu minha exaustão.

— Olha, eu não vou mais te incomodar com isso. Vou deixar o livro com você, você lê e tira suas próprias conclusões. Depois, quando quiser, a gente pode conversar melhor a respeito — ela sugeriu, me entregando o pesado volume com capa de couro.

— Obrigado, prometo que vou ler — respondi.

Antes de me retirar, no entanto, Maia me interrompeu mais uma vez.

— Ian, se isso for mesmo verdade... Esses poderes, seu lobo... Isso pode trazer muitas implicações para a nossa alcateia — ela ponderou, apreensiva.

— A menos que meu lobo nunca mais apareça — respondi antes de sair, deixando Maia sozinha e sem palavras na sala de estar. 


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O que acharam do capítulo de hoje, lobinhos?

Esse, sem dúvidas, foi um dos que mais me deu trabalho, mas espero ter conseguido transmitir a mensagem.

Estou ansioso para continuar compartilhando o desenvolvimento do Ian, e espero que vocês apreciem o resultado.

Mas, por enquanto, segue o pedido de todos os dias: votem, comentem, compartilhem e incentivem esse seu amigo escritor a continuar trazendo essas histórias à vida. :)

Muito obrigado mais uma vez, um beijo em cada um, e até amanhã! 💜

Próximo capítulo: A vez em que um jovem lobo recebeu uma oferta inesperada

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