Capítulo 14 - Ponte das Estranhezas

O apartamento era minúsculo, e a força da explosão atirou os dois para dentro do quarto fazendo com que se chocassem dolorosamente contra a parede. Lynx recebeu todo o impacto, mas foi tão violento que fez com que ele soltasse Alec, que caiu para o lado.

Foi então que ele viu o estrago.

Como era o último andar, metade do teto e da parede lateral do quarto e da sala estavam faltando, revelando o céu límpido lá fora. Em cima da pilha de escombros estavam três figuras. Alec reconheceu a fumaça falante do beco, Amarantha, mas os outros dois anjos ao lado dela não eram familiares. Lynx não parecia muito a fim de trocar ofensas naquele momento, e apenas olhou para Alec que de alguma forma entendeu o que ele estava pensando.

—Faça o que tiver que fazer. — O humano falou simplesmente, sabendo o que o outro planejava: fuga. Eles eram apenas dois, um humano comum e um anjo enfraquecido, não tinham a menor chance.

Com um movimento extremamente rápido, porém, cuidadoso Lynx pegou Alec nos braços e suas asas levantaram poeira quando ele tentou uma rota de fuga para tirá-los dali, mas no mesmo instante foram arremessados de volta para o chão por um dos anjos que agarrou o calcanhar de Lynx. Com a queda, o cotovelo de Alec bateu dolorosamente contra o piso e ele sentiu o sangue quente escorrer pelo braço. Lynx surgiu ao seu lado e quando seus olhos amarelos registraram o ferimento ele lançou um olhar flamejante na direção de Amarantha e dos outros.

—Eu vou matar vocês. — Disse friamente.

Lynx não conseguia mais usar sua foice, mas isso não impediu ele se impor contra os três inimigos. Sua mão voou, dando soco no guarda-roupa que fez o móvel se despedaçar, então ele pegou uma estaca de madeira afiada dos destroços que voaram para o chão. Ele podia não depender mais de seus poderes angelicais, mas ainda era um lutador e sua força física ainda era maior do que a de uma pessoa comum. E naquele momento, Alec percebeu que ele não estava mais se contendo para omitir seu lado violento, na verdade percebeu isso na noite em que ele afundou a cabeça daquele demônio no chão com o pé.

Na Cidade Fluorescente ele não pode fazer muito porque haviam sido pegos desprevenidos por anjos muito mais fortes, mas dessa vez ele não parecia disposto a cair antes de lutar com o que tinha.

O primeiro anjo atacou Lynx, com um movimento ágil ele desviou e cravou a arma improvisada na nuca do anjo, a ponta afiada da madeira atravessou a frente de sua garganta enquanto o anjo produzia um som engasgado e o sangue escorria de sua boca aberta. Com uma rapidez absurda ele puxou a estaca e a lançou na direção do anjo ao lado de Amarantha, o pedaço de madeira fincou-se no olho do anjo vazando pela parte de trás de sua cabeça, assim como o primeiro, ele desabou no chão.

—Não sabia que você andava com lacaios tão fracos, Amarantha, logo você que é tão forte.

Então Amarantha, sem expressão, atacou também, atirando coisas afiadas e rápidas que era indiscerníveis para olhos humanos. Provavelmente as adagas de vento que Lynx mencionou. Seu primeiro golpe resultou em um novo rasgo na jaqueta de Lynx, como se fosse apenas um aviso.

Ele suspirou, e deu uma olhada para o buraco agora no outro ombro também.

—Você realmente destruiu minha jaqueta favorita. Querer arrancar minhas asas é uma coisa, mas isso? Tsc. Inaceitável. — Ele zombou e tirou a peça jogando-a longe. Ele vestia uma camiseta branca e as tatuagens pretas nos braços, mãos e pescoço contrastavam com a pele pálida.

—As coisas poderiam ser mais fáceis se você apenas se rendesse. — Amarantha não expressava nada, como se estivesse apenas repetindo uma frase feita.

—Fácil pra vocês, né? — Lynx riu com a testa franzida de descrença. —Azazel já deixou bem claro que nada disso vai ser fácil. Ele te mandou aqui, não foi? Sabe, você é uma ótima marionete. Não pensa, não sente, só faz o que os outros mandam. Não me admira que Luce tenha fugido de você.

Pela primeira, Amarantha demonstrou algo. Sua expressão tremeu por um milésimo, mas Alec notou. Foi uma mistura de dor e ódio.

—Azazel apenas quer reparação. — Sua voz saiu forçada, como se ela estivesse se esforçando para não reagir ao que Lynx disse.

—Reparação de quê? — Lynx franziu a testa. —Ah, está falando de restauração da ordem? Que monte de merda. Ele está mais preocupado em nos torturar do que seguir as leis.

—Você não tem chance. Reforços estão vindo. — Ela retomou seu comportamento robótico, ignorando ele. Vendo que Lynx realmente não ia se render, Amarantha materializou uma foice parecida com a que Lynx usava antes, mas dourada, e sem hesitar ela atacou novamente.

Lynx desarmado, desviada dos golpes por muito pouco. Alec notou que a cada movimento, ele se aproximava da cozinha. Lynx rolou por cima da mesa no momento em que a foice de Amarantha desceu partindo o móvel e espalhando comida e louça para todo lado. Alec tinha a impressão de que ninguém arrumaria seu apartamento dessa vez. Lynx chegou até a cozinha e abriu uma das gavetas. Ele começou a atirar as facas que haviam lá em Amarantha. Uma delas perfurou sua perna, manchando o terno banco de vermelho, e ela pareceu mais irritada com isso do que sentindo dor de fato. Lynx continuou arremessando facas.

Os carros buzinavam nas ruas abaixo. As pessoas viviam suas vidas, completamente alheias da batalha entre anjos acontecendo naquele prédio. Será que ninguém estava vendo ou ouvindo?

De repente, quando estava prestes a alcançar Lynx, Amarantha paralisou como se tivesse sido congelado viva, e em seguida caiu no chão com os olhos abertos. Atrás dela estava outro anjo ruivo. Castiel.

—Eu não matei ela. — Ele ergueu as mãos se defendendo com os olhos verdes arregalados. -Só nocauteei, ela vai acordar logo.

—Obrigado. — Lynx disse a Castiel enquanto corria até Alec.

—Seu braço. — Ele levantou o braço de Alec com muito cuidado, mas, ainda assim, doeu. Só então Alec notou o tamanho do rasgo em seu cotovelo.

—Castiel. — Lynx disse com a voz dura, sem olhar na direção dele. Lynx parecia estar se segurando muito para conter um ataque de fúria.

Castiel se aproximou e ajoelhou ao lado de Alec, com um clarão rápido de luz ele curou o ferimento em seu braço.

—Bom, pelo menos, cheguei a tempo dessa vez. — Castiel levantou limpando os jeans. —Vou mandar vocês para Cidade em segurança, antes que mais deles apareçam.

—Pelo menos, não foi Azazel quem veio. — Disse Alec aliviado, olhando para Amarantha estatelada no chão.

—É, mas não vai demorar muito pra que ele consiga vir. — Castiel estava claramente preocupado por eles. Ele olhou ao redor com reprovação no olhar. —Fizeram uma bagunça e tanto dessa vez.

—Então vamos nos apressar e ir logo para o local combinando, para que você possa abrir o portal. — Lynx estava impaciente, seus olhos ainda eram raivosos. —Alec, troque de roupa.

—Tá bom. — Alec saiu de seu estado de choque e pegou uma muda de roupa indo para o banheiro que era o único cômodo da casa de pé. Vestiu um jeans skinny preto e uma blusa fina simples de manga longa preta também, foram as primeiras peças que ele viu pela frente e estava meio sem tempo de ser estiloso agora. Felizmente o coturno estava sempre a vista. Ele escovou os dentes tão rápido que se machucou, lavou o rosto na pia e tentou segurar a crise de pânico querendo irromper. Após se trocar, saiu rapidamente do banheiro. Lynx e Castiel discutiam próximos um do outro.

—Estou pronto. — Alec irrompeu bruscamente na sala e quando os dois anjos viram ele, pararam de falar. Alec os encarou. —Algum problema?

—Nada não. — Castiel sorriu, mas o sorriso morreu quando ele olhou para cima. —Acho que não vai dar tempo de irmos para a floresta.

—Por quê? — Lynx perguntou segundo seu olhar, e Alec olhou também. Figuras voavam ao longe no céu, aumentando de tamanho conforme se aproximavam.

—Se sairmos agora, vão nos seguir. — Castiel disse preocupado. —Não há tempo de chamar reforços da Cidade também.

—Então abra o portal agora! — Ordenou Lynx.

—Okay. — Castiel disse agindo rapidamente.

—Ei, não precisa ficar assim. — Alec tocou no braço dele. Lynx suspirou.

—Estou cansado dessa perseguição. — Ele escovou os cabelos pálidos para trás com as mãos. —Só quero que você esteja seguro e que nós fiquemos em paz.

—Sinto que não vamos ter paz tão cedo... Tenho a impressão de que Azazel não quer apenas restaurar a ordem. — Alec falou. —Algo no que Amarantha disse sobre reparação... Por algum motivo, acho que tem a ver com outra coisa.

—Você acha? — Lynx franziu o rosto pensando naquilo. Ele estava não apenas com raiva, mas de mau humor com toda situação. —Mas reparar o quê? Era só o que faltava, mais um drama daquele maluco.

Alec concordou com ele. Quando pensavam que estava tudo se encaminhando, mais problemas surgiam.

Amarantha estava caída do mesmo jeito, imóvel, perto da cozinha. Castiel estava desenhando algo no chão da sala... Usando o sangue dos anjos mortos. Era um círculo menor dentro de um círculo maior, e no espaço entre os dois havia vários símbolos estranhos que Alec nunca tinha visto antes, e no centro do círculo estava pintado um símbolo grande que lembrava um tridente.

—Magia de portal. — Lynx começou a explicar enquanto Alec observava Castiel. —Foi inventada na Cidade dos Mestiços, é preciso de sangue de um ser sobrenatural pra fazer.

—Está prontooo! — Cantarolou Castiel.

Alec não viu nada a princípio, então aconteceu. Em cima do círculo com vários símbolos estranhos que Castiel desenhou, um brilho avermelhado começou a surgir. Começou como uma pequena bola e então se expandiu até se tornar grande o suficiente para uma pessoa passar. Era como um espelho, mas em vez do apartamento destruído, mostrava outra paisagem, porém, lá estava escuro demais para Alec conseguir discernir o que era.

Alec sentiu Lynx pegar sua mão com firmeza e sem dizer nada puxou ele em direção ao portal. Alec hesitou um pouco sentindo os pés congelarem no chão. Lynx olhou para ele e seu olhar frio se derreteu em uma poça calmante de dourado.

—Está tudo bem, Alec. Confie em mim.

Alec respirou fundo, balançou a cabeça e se forçou a seguir em frente, juntos de mãos dadas, eles atravessaram o portal.

Por um momento, Alec sentiu como se tivesse pisado em falso e caído em um buraco. O chão em baixo deles sumiu antes de aparecer de novo, mas obviamente não era o mesmo chão. Ele cambaleou para frente e antes que caísse, a mão de Lynx o manteve no lugar. Como havia anoitecido tão rápido? Alec ouvia o barulho de uma coruja piando em algum lugar e os sons de outros animais selvagens à espreita.

Quando sua visão se ajustou, Alec percebeu que estava de fato em uma floresta. O chão era de terra e folhas e dava para ver vagamente o contorno das árvores e arbustos ao redor. O pano de fundo era um céu roxo com nuvens azul celeste, e quando o vento espalhou os galhos das árvores, eles foram iluminados pelo brilho da lua... Três delas, pairando naquele céu estranho.

Um par de olhos amarelos que pareciam brilhar na meia luz invadiu seu campo de visão tomando sua atenção. Lynx estava na sua frente, olhando para ele atentamente.

—Tem três luas. — Foi a primeira coisa que Alec conseguiu falar.

Houve um barulho arrastado e um arbusto próximo tremeu.

—Fique perto de mim. — Lynx tinha um tom de cautela na voz.

—O que foi? — Alec seguiu a direção do olhar dele e viu alguns pares de olhos vermelhos entre as árvores.

—Estamos sendo vigiados.

—Não é por nada não, — Começou Alec abaixando a voz. — mas essa Cidade dos Mestiços não é tudo isso que você falou não. Só tem mato e demônios.

—Não são exatamente demônios e não estamos na cidade ainda. — Lynx começou a explicar, ele não tirava os olhos das árvores e as criaturas espreitando nelas. —Apesar de a magia de portais ter sido desenvolvida lá, não é possível fazer um portal que dê diretamente dentro da cidade, por causa das barreiras. Questões de segurança, para impedir que qualquer um tente entrar.

—E essas coisas encarando a gente?

—Aqui é a Floresta das Doze Bestas, é o lar dessas criaturas. Elas são deuses antigos, e estão aqui a muito tempo, antes de a cidade ser construída.

—Por que Castiel nos mandou pra cá então?

—Ele não tinha como saber onde o portal ia dar. A Cidade tem três entradas, e é claro que fomos mandados para a pior delas.

—E agora?

—Eles não vão fazer nada comigo. — Lynx apontou com o queixo em direção aos donos dos olhos vermelhos. —Mas você me preocupa, humanos não são bem-vindos aqui, eles estão tentando decifrar o que é você, e ainda não atacaram porque meu cheiro deve estar em você... Por causa de ontem.

—Ah, que ótimo. — Alec ficou com o rosto quente. —Muito interessante mesmo.

—O caminho até a cidade é meio longo, não acho que vamos enganar eles por muito tempo, mas tem um jeito... Um feitiço que podemos usar, mas...

—Sim? Como funciona esse tal feitiço? — Alec perguntou impaciente. Era impressão dele ou aqueles olhos diabólicos pareciam maiores e mais perto? Se só os olhos desses deuses faziam ele se arrepiar de pavor, ele não queria saber como eram suas aparências completas.

Lynx coçou a cabeça e hesitou um pouco antes de falar.

—Você vai achar meio nojento, mas envolve você consumir meu sangue. — Ele respondeu lentamente. —Assim meu cheiro vai ficar em você por um tempo até a gente chegar na cidade.

A ideia não causou em Alec a repulsa que deveria, mas ele não estava a fim de mencionar isso.

—É o único jeito mesmo?

—Sim, eu sei que é nojento, mas...

—Não sinto nojo. Só queria saber se tinha outra saída que não precisasse machucar você.

Lynx ficou sem resposta olhando para ele com um olhar difícil de ler na pouca luz.

—Enfim. — Alec engoliu em seco. —Vamos fazer isso então.

—Não posso mais usar minha foice, então não tenho nada comigo que eu possa usar para fazer um corte em mim... — Ele olhou ao redor procurando algo que pudesse usar. —Se eu achar uma pedra pontuda...

Alec começou a se sentir impaciente com ele revirando os arbustos em busca de alguma coisa afiada. Os olhos pareciam cada vez mais perto e a palavra "bestas" e "deuses antigos" estava fazendo Alec imaginar todo tipo de criatura horrenda. Seria cômico e ridiculamente trágico chegar até aqui para ser morto no meio do nada por essas coisas.

Então Alec tomou uma decisão impulsiva que provavelmente se arrependeria depois.

Ele foi até Lynx que estava de costas para ele e o virou para que pudesse encará-lo. O anjo arregalou os olhos quando a mão de Alec mão agarrou sua nuca e puxou ele em sua direção chocando seus lábios contra os dele. Não havia delicadeza no gesto. Foi até mesmo um pouco doloroso. Desesperado. Antes que a mente de Alec pudesse clarear e ele recuasse, ele mordeu a boca de Lynx e sentiu o gosto metálico do sangue se misturando em suas línguas quando aprofundou o beijo. Ao sentir o toque de sua língua, Lynx pareceu sair do estado de choque e retribuiu. Suas mãos se apertaram ao redor da cintura de Alec e ele assumiu o controle deixando o humano atordoado. Eles tropeçaram para trás e as costas de Alec bateram em uma árvore, com o corpo forte de Lynx pressionando ele no tronco. As mãos de Lynx passeavam pela sua cintura e costas por baixo da blusa, e os calos em sua mão causavam uma sensação deliciosa em sua pele. Alec sem querer soltou um gemido abafado na boca dele, isso pareceu afetar Lynx ainda mais, e o beijo se tornou faminto. As mãos de Alec estavam emaranhadas no cabelo dele que eram tão macios quanto seda. Aquilo era um milhão de vezes melhor do que suas fantasias. A mente de Alec estava vazia de tudo que não fosse Lynx e seus lábios macios contrastando com o toque de suas mãos meio ásperas, seu corpo colado no dele. O mundo inteiro pareceu sumir e todos os problemas foram junto. Alec tinha a impressão de que estava com medo de algo, mas a língua de Lynx explorando sua boca tinha feito ele esquecer o que era. O beijo ansioso se tornou mais lento, mas isso não fez com que ficasse menos ardente. Pelo contrário, Alec sentia que se isso continuasse, ele derreteria em uma poça de desejo aos pés de Lynx.

Nenhum deles percebeu que beijo durou mais que o necessário apenas para fazer o tal feitiço funcionar, e quando finalmente se separaram ambos estavam ofegantes. Alec sentiu o rosto queimar, mas eram os olhos de Lynx que pareciam em chamas. Por um momento de nervosismo e euforia, Alec quis rir imaginando as criaturas presentes ali confusas vendo dois homens se agarrando do nada no meio de uma floresta escura.

—Desculpa. — Alec pediu rapidamente começando a sentir o arrependimento. —Eu não devia ter feito isso... Só achei que seria mais eficiente.

Lynx soltou uma risada grave. Alec desejou brevemente ser engolido por uma das tal bestas-deuses. Falando nelas, os bichos tinham sumido.

—Ah, foi extremamente eficiente. — O anjo disse baixinho. Ele apertou a cintura de Alec e pressionou a parte inferior do próprio corpo contra o dele, para que Alec sentisse o efeito que aquilo tinha causado em Lynx.

Alec engoliu em seco, sentindo que estava cavando a própria cova.

—Vem comigo, Alec. — Lynx se afastou em seguida. —Vou te mostrar o lar dos rejeitados.

Alec estava sem reação diante da própria ousadia em beijar o anjo. Tinha sido um erro. Mas uma parte dele estava em êxtase por ter feito algo que queria já fazia um tempo. Ele começou a seguir Lynx enquanto lutava com dois sentimentos distintos em conflito dentro dele. A culpa e a satisfação. A verdade, era que Alec também tinha medo. Ele estava morrendo de medo da intensidade das próprias emoções. E se ele se entregasse a elas e saísse machucado também?

Muito tempo havia se passando enquanto eles ainda serpenteavam pela floresta, talvez horas. Alec esperava que Lynx realmente soubesse para onde estava indo porque para ele os caminhos pareciam todos iguais. Ouvindo a cantoria desafinada do anjo que parecia muito feliz caminhando uma pouco a frente, Alec pensava no que poderia dizer para consertar essa situação, mas sua mente não conseguia produzir nada coerente.

Então ele decidiu que ser direto era a única opção.

—Desculpa. — Ele disse. Lynx olhou para trás diminuindo o passo até que eles ficaram caminhando lado a lado.

—Pelo quê? — Quis saber o anjo franzindo a testa.

—Por... — Alec limpou a garganta. —Ter beijado você. Não significou nada... Não! Quero dizer, significou algo, mas imagino que seja diferente pra você... É só que eu devia ter pensado melhor...

A voz de Alec foi diminuindo enquanto ele falava, até ficar em silêncio sem sequer conseguir expressar direito o que queria dizer.

—Ah. — Lynx olhou para frente e levou um tempo até completar: —Não se preocupe com isso. Foi pelo feitiço, né?

Alec não sabia se estava certo, mas tinha a impressão de que o tom dele era seco e magoado.

—Sim. — Ele falou desviando o olhar. —Mesmo assim, eu não devia ter feito sem sua permissão. Não vai acontecer de novo.

—Não se preocupe, não vou ficar todo emo por causa de um beijo. — A indiferença na voz dele perturbou Alec, mas era isso que ele queria, não era? Que Lynx não tivesse levado o beijo a sério... Ele também se surpreendeu por Lynx usar o termo emo nesse contexto. Teria rido se a situação fosse outra.

Lynx não deu tempo para ele responder, apenas apertou o passo deixando Alec para trás. Ele começou a se sentir bobo por ter ficado tão agitado. Lynx gostava dele, mas era maduro o suficiente para não criar expectativas com qualquer coisa. Além disso, o beijo realmente tinha sido só pelo feitiço... Exceto que isso era mentira e ambos sabiam muito bem. O tal feitiço tinha sido apenas a desculpa perfeita.

Infelizmente, o clima ficou meio estranho e o silêncio da floresta agora parecia ensurdecedor.

—Mas então, e a minha casa? E acabei esquecendo minha mala para trás, só trouxe o celular. — Alec decidiu prosseguir como se nada tivesse acontecido.

—Castiel vai dar um jeito na sua casa, vai estar do jeito que era quando você voltar. — Respondeu Lynx ainda com indiferença, até meio frio. —E eu já disse que posso arrumar o que você precisar quando chegarmos no nosso destino.

—Isso parece suspeito, além de anjo caído você também virou traficante? — A intenção de Alec era falar brincando, mas considerando a estranheza ainda no ar, saiu como uma provocação.

Lynx o ignorou. Alec ficou mau humorado e resolveu ser petulante.

—Perdeu o senso de humor também foi? — Respondeu sem esperar resposta. —Todos os anjos são bipolares assim ou você tem mesmo múltiplas personalidades?

Alec sabia que não estava sendo razoável, tinha sido ele que provocou toda essa situação constrangedora para começo de conversa. Mas era a primeira vez que ele se via diante de uma situação que não conseguia lidar racionalmente.

—Você é um idiota. — Ele disse a si mesmo. Um erro. Pois ele falou em voz alta sem querer e Lynx pensou que o insulto era direcionado a ele.

O anjo parou bruscamente e se virou. Ele se aproximou de Alec com passos largos e o encurralou contra uma árvore. Lynx estava tão perto dele que ele conseguia ver seu rosto com clareza, apesar do escuro.

—Sim, e você é um humano indefeso no meio do nada com esse idiota. — Ele sussurrou como uma ameaça. —Então é melhor parar de me provocar.

—Você não vai fazer nada comigo. — Alec debochou erguendo o queixo para enfrentá-lo. Ele sentiu um nó na garganta. Depois de todo progresso que tinham feito, ele se odiaria se por causa de um impulso idiota, eles começassem a regredir.

Lynx olhava para ele com os olhos profundos e cada vez mais perto. Por um momento Alec não o reconheceu.

Mas então os ombros dele caíram e ele soltou uma risada.

—Não mesmo. Minha nossa, eu me senti muito mal agora de ter falado assim com você.

Alec ficou sem reação por um momento, então começou a rir.

—Você é um idiota.

—Alec... — Ele pegou seu queixo e o ergueu suavemente para que pudesse olhá-lo nos olhos. —Não precisa se martirizar por causa de um beijo. Eu já disse que não estou exigindo nada de você.

—Mas você realmente ficou chateado quando eu disse que não significou nada, e só pra esclarecer, não foi isso que eu quis dizer. Significou algo, e não foi só pelo feitiço... É só que...

—Seu coração não reagem a mim, — Lynx disse antes que ele pudesse concluir a frase. Sua voz era baixa e ele aproximou o rosto, seus olhos encaravam a boca de Alec. — mas seu corpo sim. Você está pensando demais, por que não deixa a coisas acontecerem naturalmente?

—Por que não quero machucar você.

E não quero me machucar também.

No entanto, Alec sabia que não era esse tipo de pessoa. Ele não machucaria Lynx, pelo menos, não intencionalmente. O fato era que ele sabia que sentia algo, mas por algum motivo estava relutante em aceitar esses sentimentos.

—Seria uma honra ser machucado por você. — Lynx se afastou e soltou o queixo dele. Alec o encarou tentando decifrar se ele estava brincando ou não.

—Certo. Vou adicionar masoquista a sua lista de traços de personalidade.

Lynx riu.

—Vamos continuar, falta pouco.

Eles andaram mais alguns minutos, então de repente Lynx parou. A floresta densa se abriu, e logo a frente no meio da névoa havia uma ponte, cuja ponte parecia extremamente precária, balançando suavemente com a brisa noturna. Alec se aproximou com cuidado e olhou pela borda do abismo onde eles estavam. Não dava para ver o fim, apenas infinita escuridão. Lynx caminhou em direção a ponte e fez um gesto com a cabeça para Alec segui-lo.

—Tem certeza que é seguro? — Perguntou Alec com receio. —E se essa coisa desabar enquanto a gente estiver atravessando?

—Pra sua sorte eu sei voar. — O tom de Lynx era meio brincalhão. Ele estendeu a mão para Alec, que pegou a mão do anjo sentindo o calor da palma.

Como esperado a ponte rangeu e balançou assim que Alec pisou nela, mais pelo susto do que falta de equilíbrio, ele cambaleou e se apoiou em Lynx.

—Eu sei que você está desesperado pra cair nos meus braços, mas tome cuidado. — Seu tom era em parte sério. —Cair é a menor de suas preocupações... Olhe pra frente e não preste muita atenção nas coisas que ver ao redor.

Alec não considerou que poderia haver um alerta real em suas palavras e simplesmente avançou, se sentindo mais seguro por Lynx estar bem atrás dele. A ponte era meio longa e Alec não era muito fã de altura, logo começou a ficar com vertigem. O corrimão da ponte era um pedaço de corda grosso, Alec segurou nele sentindo as mãos suarem e fez a besteira de olhar para baixo. Esperando ser arrebatado por uma onda ainda maior de tontura, ele congelou quando o que o recebeu foram uma série de imagens se formando da névoa como um filme antigo em um projetor. Então ele começou a ouvir coisas também. Gritos de desespero, pessoas correndo em uma rua de paralelepípedos atropelando umas as outras, de repente a imagem cortou para um grande salão coberto de sangue, uma mão com uma adaga...

Sua visão escureceu. Um par de mãos quentes cobriram seu rosto poupando-o de ver mais daquela cena confusa e agonizante. Só depois disso ele percebeu o quão forte seu coração batia e o quanto ele tremia de pavor, como se sentisse o desespero daquelas pessoas como se fosse o próprio.

—Está tudo bem. — Lynx o reconfortou com uma voz suave. —Você não precisa ver isso.

Alec levantou as mãos para tirar as de Lynx de seu rosto, mas o anjo apertou mais firme.

—Confie em mim. — Pediu, e o humano confiou. Na realidade, Alec não queria mesmo ver aquelas coisas de novo.

Ele deixou Lynx guiar ele de olhos fechados pela ponte, e os dois seguiram em frente. As mãos de Alec ainda suavam, mas agora por outro motivo.

—O que foi isso? — Ele perguntou, sua voz saiu tremida. Lynx agora cobria seus olhos com apenas uma mão e a outra estava apoiada suavemente em sua cintura para guiá-lo. O anjo esperava pacientemente enquanto ele testava o caminho com a ponta do pé antes de firmar o passo em cima das tábuas de madeira.

—Essa é conhecida como a Ponte das Estranhezas. — Lynx respondeu. —Ela mostra coisas a todos que a atravessam, mas ninguém sabe exatamente o porquê. Uma lenda antiga diz que são as memórias da vida de um antigo deus que caiu e se tornou um demônio em busca de vingança contra os que derrubaram ele. A história mais famosa é que são as memórias dos deuses que habitam essa floresta, que se transformaram em bestas depois da queda. São várias as teorias.

—E o que você acha?

—Também acho que essa história dos deuses é a mais provável, eles são as únicas criaturas vivas aqui que tem um passado antes de terem decaído. Acho que faz sentido.

—Então existem outros deuses também? — O mundo de Alec se expandia cada vez mais, quanto mais tempo ele passava com Lynx.

—Bom, existem outras religiões, e se céu e inferno é real, porque outras coisas não seriam?

Alec pensou que fazia sentido. Ele queria continuar a conversa para não pensar no que tinha visto, mas não conseguia pensar em algo para dizer. As imagens ainda estavam rodando em sua mente deixando-o abalado. Alec tentou se distrair das imagens pensando em outra coisa, mas o que veio a mente foi o beijo. Lynx claramente tinha ficado chateado com Alec dizendo que não significou nada, mas depois das desculpas e da conversa, eles estavam bem novo. Só que Alec ainda se sentia meio mal, mas não entendia bem o porquê.

O que o trouxe de volta a realidade foram seus pés tocando o chão firme em vez de uma ponte bamba, e as mãos em seus olhos libertando sua visão. Olhando para Lynx atrás dele, Alec percebeu que a ponte havia sumido e eles estavam em uma rua larga.
Quando ele olhou para frente e prestou atenção na paisagem, seu queixo caiu.

—Bem-vindo a Cidade dos Mestiços, Alec.

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