05. Intoxicação Exógena

O CENÁRIO AO MEU REDOR ALTERNOU-SE NUM TREMELICAR DE OLHOS.

Acendo a lanterna que trouxe comigo e faço uma rápida inspeção no recinto. Trata-se de um pavimento composto por um extenso chão de concreto com dispersas poças de água refletindo o céu escuro e estrelado de uma madrugada quente como o diabo. O muro que circunda o períbolo tem cor verde militar e apenas a alguns passos do ponto onde estou parada ergue-se uma espécie de pátio com uma cobertura de metal curvada. Surge a dúvida: Como é possível eu estar aqui se apenas há alguns segundos eu estava no salão do Caraminholas?

Faço o reconhecimento do local. Aqui já estive anteriormente, em eventos ao lado de Fran e Carlito. Solitária e sem propósito, caminho deliberadamente em direção a um campo de futebol sem vida envolto por névoas cinzentas, que emergiu à minha direita como um borrão. Um calafrio me percorre e desejo chorar. Sou tomada por um sobressalto após notar uma agitação atípica em uma das guaritas do quartel, instalada a alguns metros de distância do campo. Uma voz me diz que existem mais de uma sentinela quando devia ter um único vigia dentro do minúsculo aposento. Algo está errado. Corro até lá. Sinto meus pés descalços tatearem a grama úmida do campo enquanto faço a travessia. Diminuo o ritmo. Aproximo-me sorrateiramente da portinhola entreaberta do abrigo circular até ouvir estalidos de palmadas de pele contra pele. Dou um passo para trás motivada por uma advertência intuitiva. Sigo em frente. Odores sensuais que infestam a penumbra do interior do ambiente deixam-me sem saber como agir. Ouço risos e guinchos animalescos. A curiosidade me consome. Espera um pouco! Em que ano estamos? Será que estou prestes a assistir ao vivo a lendária suruba dos periquitos?

Fico terrivelmente consternada quando a luz da lanterna ilumina a musculatura de um tórax incrivelmente amplo e definido. Um feixe de luz é suficiente para revelar o rosto do sujeito que está logo à frente.

Indago seu nome.

Alê?

O professor de capoeira aparentemente não se importa com a minha presença na guarita, tampouco com a cena que meus olhos contemplam. Ele está postado de pé, despido inteiramente, propiciando máximo prazer ao outro rapaz igualmente desnudo que ali se encontra.

Reconhecer o indivíduo que faz o papel de receptor foi um choque e tanto.

Guto?

Não bastando o desespero de vê-lo ali, com o tronco debruçado, permitindo que o professor investisse nele com ferocidade o chifre do diabo, ainda precisei ouvir de sua boca num tom sádico:

— Vem, Vick... Se quiser eu divido ele com você.

É tamanho o absurdo que fico incapaz de esboçar uma resposta.

— Que foi? Não quer experimentar também? Não dói não. É gostoso.

Desvio meu olhar de Guto para encarar Alê mais uma vez. O baiano umedece os lábios carnudos e rosados com a língua num gesto libertino.

Meneio a cabeça várias vezes, atemorizada.

— Não, não, não, não, não, não, não, não...

Então recuo três passos e encosto-me a algo macio e peludo. Viro-me. Morangotango acena para mim somente com uma mão e com a outra ela segura um altíssimo bolo, redondo e decorado, seus olhos exorbitados e fumegantes são como dois demônios vermelhos. Grito até o meu pulmão arder. A mascote pede silêncio com um gesto simples e depois inclina a iguaria festiva para apreciação.

Pus-me a chorar com força após ler a frase escrita em sua superfície com letras de glacê.

Seja bem vinda ao Paranauê Erótico!

Sou silenciada por um golpe violento. Rolo três vezes no gramado do campo depois de Morangotango enterrar o bolo na minha cara. Uma garota albina se aproxima de mim enquanto eu limpo o chantili em torno dos olhos. Três figuras bestiais surgem no campo com ela. Todos avançam com velocidade na minha direção. Posso ver seus corpos seminus e suas cabeças de periquito, atrofiadas e monstruosas. A garota albina ri. E no segundo seguinte tudo acaba, comigo afundada no colchão da cama, suada, ofegante, olhos arregalados e coração aos pulos na garganta.

Eu estava tão farta de pesadelos. Era insuportável reviver sequências tão tempestuosas assim, noite após noite. Minha repulsa por Guto Martins tinha se tornado tão forte que eu já havia me decidido que iria deletá-lo para sempre, como se ele nunca tivesse existido na minha vida. Mas de que forma eu faria isso se a minha imaginação insistia em nos colocar frente a frente um com outro?

Embora houvesse variações de enredo e cenários, meus pesadelos pós-traumáticos reproduziam de maneira distorcida o flagrante que expôs a farsa por trás do anel de castidade daquele traste. E como se isso já não fosse suficientemente ruim, com a chegada dos pesadelos, passei também a ser constantemente assombrada por outro inimigo silencioso e apavorante. As vozes que entravam em minha cabeça sem autorização.

Para ter uma breve noção do meu deprimente estado psicoemocional, eu não podia sequer ouvir o nome de Guto, pois bastava uma simples menção de seu nome para que eu ficasse terrivelmente perturbada. Inclusive, cheguei ao ponto de preferir o isolamento total a ter que sair lá fora, por ter medo de ser julgada pelos olhares piedosos de todas as pessoas que se fartaram de assistir o "paranauê erótico". Se havia uma maneira correta de agir, não era aquela com certeza. Mas de que outra forma eu poderia agir, a não ser me isolar do mundo, visto que naquele momento eu sentia ódio até da minha própria sombra?

Não demorou para que eu sentisse os efeitos colaterais provocados pelo isolamento. Além de ser abatida por uma tosse inquietante, uma nuvem de sentimentos nebulosos e pensamentos intrusivos pairou-se sobre mim. A atmosfera ao meu entorno declinou-se ainda mais quando Guto tentou se retratar comigo me enviando um áudio.

"Sinto muito, eu não tive a intenção de te magoar. Eu vacilei feio. Deveria ter aberto o jogo contigo. Peço perdão de todo o coração. Agora que não estamos mais juntos, você poderia me devolver os covers que estão com você? Tenho por aquelas fitas um valor sentimental muito forte. Abraços."

Respondi o áudio da seguinte forma:

[14:41] Vick: Boa tarde.

[14:41] Vick: É só isso o que tem a me dizer depois de todos saberem a verdade por trás do seu anel de castidade?

[14:41] Vick: Vc ñ tem pena do meu coração?

[14:41] Vick: Vc me tapeou.

[14:41] Vick: Me fez se sentir uma completa idiota!

[14:41] Vick: Magoe-me com uma verdade, mas jamais me iluda com uma mentira, Guto Martins!

[14:41] Vick: Quanto às fitas, ñ se preocupe, pois vc receberá elas de volta. Até porque ñ tenho a intenção de ficar com aquelas tranqueiras.

[14:42] Vick: Adeus.

CONFIRMAÇÃO

Tem certeza de que você quer bloquear Guto Martins?

CONTATO BLOQUEADO!

Bloqueá-lo não me fez se sentir melhor nem por um instante. Afinal de que adiantava bloqueá-lo em um aplicativo se ele ainda estaria lá fora, livre para esbarrar em mim a qualquer segundo? Além do mais, não seria bloqueando-o que faria eu me sentir inteira novamente. Não seria isso que faria eu me esquecer de que dediquei um período da minha vida a uma mentira, a uma ilusão. Não seria isso que faria me esquecer de que fui unicamente usada por ele para exibição, para se trancar no armário da negação. O que eu precisava era parar de chorar pelos cantos e aceitar o fato. Eu precisava parar de me questionar o tempo todo como consegui ser tão estúpida a ponto de nunca desconfiar das reais intenções por trás do favoritismo que o professor de capoeira nutria por Guto. E pior de tudo, não perceber que o garoto que julguei ser o meu sonho adolescente, meu pôr do sol, o amor incondicional da minha vida, gostava, na verdade, de meninos e não de mim.

Tentei me manter serena após a fase da aceitação, mas não consegui. Comecei a me comportar de modo tão insolente que cheguei ao ponto de não me reconhecer mais. Para a minha vergonha me esquivei de tudo. Recusei todos os conselhos de tia Carmem. Recusei e não retornei nenhuma ligação recebida no meu celular. Não atualizei as minhas redes sociais. Recusei todas as visitas, seja lá quem fosse. Abandonei meus estudos e adiei minhas aulas práticas de direção veicular. Faltei do trabalho sem prestar qualquer satisfação a Vlad. Foram duas semanas assim. Duas semanas esmorecidas que se arrastaram lentamente, afundando-me numa bad terrivelmente maligna como uma âncora no mar.

Eu só saia um pouco do quarto quando queria afugentar os pensamentos mórbidos. Entre idas e vindas, esbarrei com tia Carmem na cozinha. Ela ocupava um lugar à mesa, suas pernas longilíneas perfeitamente cruzadas sob um vestido longo com estampa tropical.

— Está tudo bem? — Ela quis saber.

— Estou mais que bem. Pensei muito hoje. Posso dizer que agora em diante, ficarei ótima. A senhora vai sair?

Sua boca se curvou num sorriso

— Vou ao supermercado.

— Agora?

— Sim. Mas estou fazendo uma listinha de compras antes de ir. Só para garantir que eu não volte sem comprar as coisas que realmente precisa ser comprado. Você sabe como eu sou. Sabe que eu me empolgo quando estou dentro de um supermercado. Aliás, deseja acrescentar algum item específico à lista?

— Eu quero!

— Diga então. Eu compro para você.

— Eu quero uma barra de chocolate. De dez quilos. Não. De quinze. Ou talvez de trinta? É, pode comprar uma barra de trinta quilos. Acho que vai ser suficiente.

Tia Carmem puxou uma cadeira, me oferecendo gentilmente.

— Vem cá, Maria Victória, sente-se aqui. Vamos conversar.

Cruzei os braços e fiz o que foi pedido.

— Eu sei o quanto é difícil gerenciar conflitos, principalmente nessa idade, mas você não concorda que já passou da hora de esquecer de uma vez por todas esse mal-entendido? Pombinha, o Guto é um menino de ouro. Ele é um em um milhão.

Fiquei abismada.

— Menino de Ouro? Como a senhora pode ser tão cega?

— Maria Victória! Que hostilidade é essa? Me respeite, menina. Sou sua tia. Só estou tentando ajudar. O que pensa da vida? Que pode ficar trancada para sempre aqui? Uma hora ou outra você e Guto terão que se acertar.

— Tia, a senhora lembra quando afirmou lá no seu programa de rádio que a mentira tem perna curta?

— Logicamente, lembro muito bem. Mas por que diz isso?

— Porque o garoto que a senhora chamou de menino de ouro me mostrou da pior forma que nem todas as mentiras tem perna curta. A dele, por exemplo, tem uma perna com quilômetros e quilômetros de extensão. E isso para mim já é suficiente para desejar que ele morra. Então, por favor, pare de me dizer o que preciso fazer. Porque nem em sonho vou me acertar com ele.

— Quem aconselhou você a agir assim? Seus amigos descabeçados?

— E se foi, qual é problema? Muito melhor ouvir os conselhos deles do que de uma velha solitária com crise de abstinência que não faz nada da vida além de envelhecer.

— Maria Victória!

Enquanto eu voltava para o meu quarto batendo o pé, tia Carmem disse com voz embargada:

— Como assim não faço nada da vida? Eu levo a palavra de Deus para as pessoas.

Esse atrito não impediu que tia Carmem fosse e retornasse do supermercado com suas ecobags abarrotadas de frutas, verduras, produtos de higiene pessoal de todo tipo. E também com muitas barras de chocolates. Eram tantas barras que pensei na possibilidade de tia Carmem ter feito a limpa na prateleira de chocolates até somar os trinta quilos que pedi para ela comprar.

Ela retornou do supermercado até que contente, mas logo viu a alegria desaparecer ao se deparar com uma situação que por pouco não terminou em tragédia.

Fumaça! O apartamento todo estava infestado de fumaça. Tia Carmem certamente logo viu que o foco da fumaça estava na lavandeira. Isso porque, passado o susto, ela correu até lá para ver o que estava queimando. Ali ela me encontrou, parada em frente ao tanque de lavar, meu rosto escondido pela metade por uma camiseta amarrada atrás do pescoço.

— Maria Victória, o que você fez?

O que será que tia Carmem pensou de mim naquele momento quando me viu queimando os presentinhos e todas as cartinhas românticas que troquei com o menino de ouro?

Um silêncio pairou-se sobre nós. O que eu havia acabado de fazer era um indício, ainda que frágil, de que uma janela perigosa e obscura havia sido aberta dentro de mim. Será que existia uma maneira de fechá-la sem pôr minha sanidade mental em risco?

Por onde eu deveria começar se quisesse me livrar dessa tristeza sem final? Lembro-me de ter lido em uma revista teen que ficar na bad é um estado de espírito, um sentimento que vem e que passa, um rito de passagem doloroso e necessário. Seria realmente incrível se conseguíssemos curar uma bad com barras de chocolate, mas o aumento da serotonina provocada pelo cacau é insuficiente para aliviar toda a dor. Isso acontece porque existem inúmeras variantes de bad. Até mesmo as pessoas com autoestima saudável estão expostas a sofrer com isso. Uma ressaca nervosa depois de uma noitada, por exemplo, pode gerar uma bad terrível em qualquer ser humano. Eu jamais vivenciei tal experiência, mas dizem que beber bastante água costuma curá-la. Contudo, existem certos tipos de bad difíceis de curar, onde meninas e meninos não conseguem sair e que causam pequenos danos, estágios de estado depressivo, que provocam um sentimento interno de arrependimento moral, um buraco negro, uma vontade absurda de desaparecer do mapa, e que faz tudo o que está ao redor desaparecer, para então tudo tornar-se um imenso vazio, um nada. Era assim que eu me sentia. Um nada.

Foi necessária uma semana inteira de trabalho duro para limpar toda a fuligem que se espalhou pelo apartamento. Eu sabia que Tia Carmem, muito provavelmente, não me deixaria ficar sozinha nunca mais depois do que fiz. E de certa forma ela tinha razão. Todo cuidado era pouco.

Fiquei até surpresa no dia que ela me avisou que se ausentaria por algumas horas.

— As irmãs da igreja me chamaram para dar uma força no bazar solidário. As mães samaritanas estão lá ajudando, mas não estão dando conta.

Ela se despediu de mim com um beijo afetuoso.

— Volto antes do anoitecer — deixou avisado.

Então anoiteceu e ela não chegou. Tentei dormir um pouco, mas despertei assustada por causa de outro pesadelo com Guto Martins.

Um bocado inquieta, fui até a janela do quarto e observei o Lago sendo abraçado pelo breu da noite. Depois fiquei circulando pelos aposentos do apartamento, rompendo o silêncio gélido e sombrio impregnado em todos os cantos. Na sacada, fiquei encostada no guarda-corpo por alguns minutos, pensando em mil maneiras de silenciar as vozes que conspiravam ininterruptamente na minha cabeça.

Retornei ao meu quarto.

Embora eu estivesse consciente das minhas insatisfações, aproximei-me do espelho grande, me encarando de cima a baixo para ter uma ideia objetiva da minha própria aparência. Foi a pior experiência sensorial da minha vida. Eu estava um horror. Espinhas por todo o rosto, olheiras escuras e profundas em torno dos olhos sem vida, cabelos opacos e quebradiços como um sabugo de milho... Até a roupa que eu usava no corpo cheirava mal.

— Olha só você. Já está morta. Falta só enterrar.

Dali fui para o quarto de tia Carmem. Fiquei postada na batente da porta do aposento por um tempo, observando um objeto específico, exposto na superfície da centenária penteadeira de mogno dela, outra relíquia herdada da vovó.

Quando deu coragem, entrei. O ar do quarto tinha cheiro de incenso e vela derretida. Sentei-me na banqueta da penteadeira e me encarei novamente no espelho emoldurado. Apanhei o pequeno baú branco decorado que tia Carmem utilizava para armazenar os psicotrópicos, bastante conservado apesar das ações provocadas pelo tempo. Graça Aires era o nome talhado em uma das laterais do baú. Dentro dele continha: Bromazepam, diazepan, metilfenidato, prometazina, haloperidol, carbamazepina, carbonato de lítio e outros remédios que ingeridos demasiadamente deviam causar uma intoxicação exógena letal.

Um porta-retratos com uma fotografia minha muito antiga estava em cima da penteadeira. Deslizei meus dedos sobre ela observando cada detalhe. As vozes sussurravam mais alto agora. Tão alto que trouxeram de volta uma lembrança de quatorze anos atrás. Um resquício da noite em que aprendi as três regras para não se tornar um tesouro de porcaria.

Sem perceber, fui desprendida da realidade e voltei a ser criança novamente. Na parede e por todo o teto, as borboletas brilhavam na penumbra como fadas.

— Um crime contra o coração, pombinha.

Quando tia Carmem apagou a luz do quarto fui invadida por um sentimento aterrorizante. Era a minha primeira noite longe dos meus pais e até então não entendia o que havia ocorrido comigo, tampouco o que ocorreria com os meus pais. O que os homens fardados fariam com eles? A noite invernal, a luz vermelha, os gritos, as lágrimas. Eram tantas perguntas sem resposta.

Lion, meu bicho de pelúcia de toda a vida, já era o meu companheiro fiel desde aquela época. Embora estivesse todo perfurado, continuava um bichinho de pelúcia fofinho e carismático. Eu estava abraçada quando levantei da cama e fui silenciosamente até a cozinha. Tia Carmem estava sentada a mesa escrevendo uma carta. Demorou um pouquinho para ela notar a minha presença.

— Não ande pela casa sem seu chinelinho, pombinha. Você pode ficar resfriada.

A recordação era tão viva que eu era capaz de sentir o frio do chão.

— Eu não consigo dormir. Para quem a senhora está escrevendo?

Ela me deu um sorriso, seus lábios cerrados.

— Estou escrevendo uma mensagem para o seu papai.

— Para o papai? A senhora sabe para aonde ele foi?

Tia Carmem piscou para afastar as lágrimas que subiram em seus olhos.

— Ele está detido em um lugar onde terá todo o tempo necessário para refletir o que fez a você, querida. Quer que eu leia a carta para você?

Sentei-me no chão e aninhei a cabeça no colo dela para ouvi-la ler. A voz dela falhou de modo lacrimoso várias vezes durante a leitura. Era o peso do mundo em seus ombros.

"Ela está comigo, agora. Está sendo bem cuidada. Agora tem um quartinho só dela. Todo pintado de Lilás e com borboletinhas na parede, e também tem bonecas e pelúcias que as irmãs da igreja com muito amor nos doaram. Cuide-se meu irmão. Vigie. Reze. Use esse tempo para refletir um pouco sobre seus erros. Eu, uma cristã, garanto a você que não tenho raiva de ti, e ensinarei isso a Maria Victória também, para que cresça sem magoas em seu coraçãozinho. Procure colocar Deus em seu caminho e verá que tudo será mais fácil com ele ao seu lado. Sou uma mulher de fé. Acredito em você. Força meu irmão. Um grande beijo. Com amor e carinho, Carmem e Maria Victória."

Nessa noite, tia Carmem me autorizou dormir com ela em seu quarto até eu perder o medo de dormir sozinha. Ela também me ensinou a oração de São Francisco de Assis para espantar todos os meus fantasmas. Foi um momento reconfortante. Uma mudança climática e anormal. Uma memória que se instalou em mim e nunca será esquecida.

Voltando ao presente, o que se seguiu aconteceu muito rapidamente, como um recorte no tempo.

Quando regressou do bazar solidário tia Carmem me encontrou na cozinha, posicionada de pé entre a pia e a geladeira, como um espectro. Olhei de soslaio e vi que ela vestia um turbante verde limão que escondia os cabelos acobreados e que carregava consigo meia dúzia de ecobags com roupas seminovas recém-compradas.

— Olá, tia.

Um sorriso espontâneo surgiu nos lábios dela assim que me viu, produzindo rugas características ao redor de seus olhos.

— Comprei roupas para mim e para você.

— Nossa! Que legal.

— Santo Deus! Você não me parece nada bem. Está fria e sua cara está com um aspecto horrível.

Meu olhar estava fixo no ralo da pia.

— Estou bem, tia. Estou bem. Como foi lá no bazar?

— Foi uma correria danada, mas graças a Deus tivemos uma excelente arrecadação. Superou nossas expectativas.

— Fico contente.

— Minha nossa, pombinha, tem certeza de que está tudo bem com você? Estou te achando tão abatida.

— Eu já disse, tia, estou bem. Eu juro. Vou para o meu quarto agora. Com licença.

— Não quer provar as roupas que eu comprei para você?

— Amanhã eu vejo isso, tia. Boa noite.

Tia Carmem não viu, mas lágrimas inundaram meus olhos funestos quando dei as costas em direção ao meu quarto.

— Pombinha! Estou rezando incansavelmente por você. Por nós! Para que tudo fique bem. Tenha fé. Apegue-se com a força que vem do céu e toda a tristeza contida em seu coração se dissipará.

Tranquei a porta do meu quarto num total silêncio. Liguei o ar condicionado e deitei na cama cobrindo a cabeça com o edredom. Abraçada ao Lion, esperei. Simplesmente esperei acontecer. Pois eu estava cem por cento certa que quando tia Carmem descobrisse a desordem que se encontrava seu baú de psicotrópicos, associaria as coisas e viria até mim para tentar me salvar.

Dito e feito.

TOC, TOC, TOC, TOC, TOC...

— Maria Victória, abra esta porta... Abra esta porta!

Ser livre, transcender. Enquanto o tinir da maçaneta se movendo e os gritos desesperados de tia Carmem do outro lado da porta faziam se ouvir, eu escutava, ao mesmo tempo, as vozes sussurrando dentro da minha cabeça.

Era a última linha. A última e inesquecível linha da oração de São Francisco de Assis. É morrendo que se vive para a vida eterna.

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