32 | EU TE AMEI E AINDA TE AMO PELOS DETALHES
Todo o céu tinha o seu tom de azul. Você me mostrou alguma coisa que eu não conseguia ver, você abriu meus olhos e me fez acreditar. — Taylor Swift (Crazier).
O mundo ao lado de fora permanecia caótico. O trânsito da metrópole trazia congestionamentos e as calçadas eram percorridas por pessoas apressadas e atarefadas. No entanto, dentro da casa dos Ferraz, parecia que a calmaria finalmente os resguardava.
Claro, desconsiderando a cantoria desafinada e imprudente de um trio específico.
Com microfones nas mãos e o volume da caixa de som do karaokê no máximo, os cantores nada profissionais davam voz a Wannabe, música do grupo Spice Girls. Nos refrãos se desafiavam em uma competição de quem cantaria mais rápido e mais alto e, simultaneamente, usando cachecóis de pena cor-de-rosa e tiaras de estrelas e corações, dançavam coreografias deselegantes e desengonçadas. Lena estava ainda mais enfeitada por conta do tule alaranjado.
— Estão pagando esse mico no crédito ou no débito? — Sarah questionou enquanto segurava uma risada assim que entrou no recinto ao lado de sua namorada.
— Sinto que encontrei a minha turma — Dirce declarou emocionada. Colocou as sacolas que carregava no chão e correu até Helena eufórica. — Alguém traz um tule azul para mim?
Lena assentiu euforicamente e buscou em seu quarto o acessório, entregando-o rapidamente à mulher, que o colocou por cima do jeans.
Não demorou para que Sasa fosse forçada a participar da agitação. Nas músicas mais extravagantes Dirce balançava a cabeça de um lado para o outro movimentando suas mechas azuis.
— Eu não aguento mais! — Ally confessou enquanto se jogava no sofá. Seu rosto estava suado e ela deixou o microfone escorrer de sua mão.
— Papai, ela é a perdedora, porque foi a primeira a se cansar — Lena argumentou dirigindo sua atenção para ele. — Perdedores tem que pagar caro!
— O que você sugere, borboletinha? — Seus lábios guardavam um sorriso traiçoeiro.
A menina fez suspense e, nesse momento, Sally sentiu-se receosa e arregalou os olhos frente àqueles ruivos ordinários e perigosos. Dirce e Sarah apenas acompanhavam os planos maquiavélicos da dupla de cabelos de fogo.
— Vamos matá-la — Lena sibilou focada na perdedora e com uma sobrancelha erguida — de cosquinhas!
E então antes que pudesse reagir, a interiorana foi literalmente atacada por todos enquanto ria e se contorcia sem parar. No entanto, surpreendida por uma ânsia de vômito, Sally os empurrou e correu em direção ao banheiro. A mulher se agarrou à privada e despejou todo o líquido enquanto pai e filha, assustados, a encaravam inertes.
— Será que tem pão nesse forno? — Dirce sussurrou para Sarah, que permanecia boquiaberta diante do comentário até então infundado da namorada.
— Está tudo bem... — Ally resmungou após se erguer. Ela deu descarga, lavou as mãos e aproveitou para escovar os dentes. — Acho que meu estômago estranhou o bolo que comemos...
— Seu estômago não é sensível assim, pirralha — Sasa replicou ainda abismada. — Lembra daquela vez que eu, você, mamãe, Lourenço e Miguel fomos pescar e você e Miguel quiseram experimentar uma minhoca para saber o gosto? E ainda escondidos dos pais? — Fez cara de nojo. — Miguel passou a tarde inteira no meio do mato com as calças abaixadas com diarreia e você só ficou rindo da cara dele, sem nem mesmo um mal estar.
—Nossa... — Dirce se surpreendeu e, curiosa, olhou para Sasa: — E você não quis experimentar também não, amor?
Arthur sentiu-se um pouco tonto diante de possíveis deduções e Lena mostrava um olhar confuso.
Antes que pudessem continuar a conversa, escutaram barulhos, expondo que alguém havia chegado na casa. Era Silvia. Sally aproveitou para fugir antes que as duas dissessem coisas insanas.
Quando o relógio da sala exibiu 21:00hrs, todos decidiram pegar colchões, travesseiros e cobertas. Amontoaram-se na sala e trouxeram pipoca, chocolates, napolitano e refrigerantes. A executiva colocou na TV um filme infantil e deitou-se ao lado da bisneta, tentou se distrair apesar do cansaço. O casal de garotas preferiu ficar no sofá. Arthur, por sua vez, abraçou a namorada pela cintura já que compartilhavam o mesmo colchão, a tampou com um lençol verde e a beijou no topo da cabeça.
O grupo mal notou quando finalmente adormeceu.
✈
O dia seguinte era a sexta tão temida por Miguel. O rapaz acordou em seu apartamento graças ao despertador. Sua cabeça estava um pouco dolorida, provavelmente por conta da quantidade de vinho que tomou. Tateou a mesa de cabeceira atrás do objeto barulhento e, sem querer, acabou derrubando-o.
O barulho fez com que a mulher ao seu lado despertasse assustada, principalmente por não reconhecer o cômodo.
— O que aconteceu? — a voz de Jasmim saiu fraca.
De imediato o rapaz olhou de relance para os cachos amassados e os lábios inchados da mulher e, por isso, também se assombrou. Ela estava sentada na cama com os seios expostos enquanto suas pernas eram tampadas pelas cobertas.
A garota de olhos verdes olhou para baixo e reparou em sua situação e, em um sobressalto, puxou o tecido para se cobrir. Suas bochechas ruborizaram e ela se amaldiçoou internamente por ser tão fraca com bebidas alcoólicas.
Ergueu a face e, ao mirar as orbes amendoadas de Luís, notou que também estava fraca por outra coisa. Mal pôde conter um suspiro ao reparar os cabelos castanhos dele levemente emaranhados, o queixo quadrado e as sobrancelhas grossas.
— Jasmim... E-eu... — Miguel tentou dizer algo.
— Calma — ela disfarçou ao se levantar da cama protegendo sua nudez com a coberta. Procurou suas peças de roupas, as quais estavam espalhadas pelo recinto e as vestiu como se estivesse tudo normal, mas sem encará-lo. — Somos adultos e maduros, é normal, não se preocupe. Não é como se eu fosse me apaixonar pelo acompanhante da minha paciente. — Riu nervosamente.
As memórias da noite se embaralhavam na mente do Ferraz, principalmente nas partes mais... intensas. Recordou-se de iniciarem, ainda que tímidos, conversas na varanda enquanto se deliciavam com aperitivos, bebidas e o cenário noturno. Aos poucos, provavelmente por conta do álcool, falavam em voz alta e debatiam assuntos aleatórios, como guerras mundiais, teorias conspiratórias e, em seguida, sobre o porquê do refrigerante de Pepsi ser melhor que Coca-Cola, embora o moreno a tivesse refutado seriamente.
Não demorou para que o clima aumentasse e, antes que pudessem prever, a médica seguisse com as mãos até o pescoço do rapaz e o puxasse para si em um beijo voraz, o qual o fez reagir e levá-la para dentro.
Ele podia sentir seus dedos faiscarem ao se recordar de quanto a tocou e desceu o vestido feminino, descobrindo-a em uma lingerie vermelha.
— Você tem razão — Luís concordou e tentou distrair-se dos próprios pensamentos. — Falando em paciente... — Olhou para o relógio caído e exclamou: — Em menos de trinta minutos será o exame de Helena!
— É verdade! — a mulher resmungou por estar tão avoada. Fazia anos que não se atrasava para seu trabalho e, mais ainda, tinha muito tempo que não se perdia nos lençóis de alguém, uma vez que seu passado amoroso não era um dos melhores. — Vamos que ainda dá tempo!
Em minutos recordes, Miguel alcançou com o carro a rua de sua avó. Estacionou o automóvel e pediu a Jasmim, que estava no banco do carona, o aguardasse. Ele atravessou a faixa e logo pressionou a senha eletrônica. Não precisou ir até o andar de cima, pois observou seus familiares dormindo no chão e a TV ligada.
Reparou em Sally agarrada a Arthur e, por um instante, desconcentrou-se.
Desviou-se de seus sentimentos estranhos e andou até Helena, acordando-a com cuidado. Letárgica, a menininha abriu os olhos gradualmente.
— A gente vai para o hospital agora, tio? — perguntou amedrontada. Ele apenas assentiu.
— Coloque uma roupa confortável. Vou deixar um bilhete avisando que está comigo para que não estranhem seu sumiço.
Helena, mesmo temerosa, assentiu. Subiu os degraus até o seu quarto e se arrumou rapidamente. Quando retornou, avistou o bilhete colado na borda da TV agora desligada. Deu a mão para Luís e gostou de avistar Jasmim logo que entrou no carro prateado. Seu tio a auxiliou a pôr o cinto de segurança.
— Vocês estão namorando? — questionou sorridente no banco traseiro. — Eu aprovo! Assim vocês podem fazer um encontro de casal com a tia Ally e o meu pai!
Jasmim quase se engasgou quando escutou o comentário despretensioso. Ela riu tentando transparecer naturalidade, embora não soubesse onde enfiar a cara.
— Somos só amigos — Miguel explicou após ligar o veículo.
— Meu tio é muito lerdo, né? — a garotinha o alfinetou para sua médica fazendo-a sorrir. — Se ele competir com uma tartaruga, a tartaruga ganha.
— Minha própria sobrinha contra mim! — Luís brincou.
— Você sabia, tia Jasmim, que meu tio comeu minhoca quando era criança e por isso ao invés de curtir o passeio para pescar ficou fazendo o número dois no meio do mato? — denunciou a história que tinha escutado de Sasa. A ruivinha exibia um sorriso divertido, o que fez com que a mulher gargalhasse.
Luís mal pôde evitar que suas bochechas ruborizassem. Ao notar, a garota de olhos verdes tentou consolá-lo, embora não conseguisse se desfazer da risada:
— Pense que, pelo menos no ponto de vista nutricional, minhoca é proteína, Luís.
Após chegarem ao local de destino, Luís procurou uma vaga no estacionamento enquanto as meninas foram para a entrada do hospital. Não demorou para que Jasmim organizasse suas coisas e vestisse seu jaleco. Miguel surgiu após alguns minutos e aguardou na recepção à medida que a médica levava a paciente para a sala de ressonância magnética.
— Pode tirar os brincos? Prometo que devolvo logo. — A mulher agachou-se para ficar do tamanho da criança. A menina fez o que ela pediu. — Tem que ficar quietinha, está bem? Não vou poder ficar na sala, mas iremos falar com você por microfone. É só seguir o que a gente falar. E essa cama vai se mexer, mas é normal, tá?
Lena ignorou as próprias hesitações e concordou. Foram para um espaço onde a ruivinha colocou um avental esverdeado. A mulher a pegou no colo e a deitou com gentileza em uma espécie de maca, que se movia para dentro de um grande aparelho circular e branco. A doutora, mantendo o olhar dócil, a acariciou para tranquilizá-la.
— Não precisa ter medo, não vai doer — garantiu.
— Não se preocupa, tia Jasmim, eu aguento — Lena a apaziguou com um sorriso inocente. — Vai ficar tudo bem, não vai?
— Vai sim, princesa.
A médica retribuiu sua expressão e se afastou. Vagorosamente Helena foi se acostumando e seguiu as orientações, mesmo que estranhasse a movimentação da cama para dentro do equipamento. Em determinado momento, alguém se aproximou e injetou em sua veia uma substância. Não demorou para que o exame finalmente terminasse.
Jasmim se sentiu orgulhosa de Helena e não hesitou em ajudá-la a tirar o avental e a devolver as joias da menina. Levou-a para o corredor e a guiou até Luís, que se ergueu da cadeira e suspirou em alívio ao visualizar a sobrinha. A menina correu até ele e o abraçou.
— Já estamos liberados, doutora Jasmim? — Alisou os cabelos alaranjados da menininha e mirou o semblante da amiga. Sentia-se, dessa vez, um pouco estranho e ansioso.
— É claro — ela confirmou com todos os seus sentidos em alerta. — Estarei com os resultados em até três dias, não se preocupem.
— Não me preocupo — Miguel confessou —, confio na sua competência.
✈
Arthur e Sally caminhavam lado a lado pelo jardim da casa da executiva ao mesmo tempo que o sol respaldava seus ombros. O tom azulado do céu e os raios atingindo as flores coloridas transformavam o cenário ainda mais paradisíaco.
Ela encarou o ruivo e desejou, por um segundo, que o tempo parasse. Não queria vê-lo partir novamente e, principalmente, não queria que ele se voltasse a ser trancafiado por algo que não cometeu. Ainda tinham muito o que viver. Avistaram um banco de madeira perdido entre as fileiras de rosas azuis e sentaram-se face a face.
Inconscientemente, os dedos da jovem se levantaram em direção às sardas salpicadas na pele branca de Arthur. Circundou com a ponta do polegar seus traços, como se estivesse guardando todos os detalhes em sua memória. A íris âmbar a fitava com curiosidade e brilhava por testemunhá-la tão absorta.
— Eu sei que é meio idiota e até mesmo egoísta o que vou pedir — a voz masculina cortou o silêncio e segurou a mão bisbilhoteira da garota. A genuína ação fez com que o coração de Ally parasse por um instante. — Mas me promete que, independentemente do que acontecer, irá se lembrar sempre de mim. É só o que preciso ter para permanecer em paz.
— Podemos negociar — a morena propôs com um princípio de sorriso nascendo em seus lábios. — Você também irá se lembrar de mim, gogoboy, sempre e para sempre?
— Não é uma proposta difícil — argumentou fingindo analisar a oferta. Aproximou seus lábios dos da garota e a mirou de cima a baixo, segurando-se para não a beijar imediatamente. — Consigo me lembrar muito bem de você embaixo de mim pedindo por mais. Consigo imaginar seus contornos e sua pele avermelhada após eu explorá-la insaciavelmente.
Espantada, Ally abriu a boca e, logo após, estreitou os olhos. Sentiu-se despertar, porém não seria a primeira a ceder.
— Apenas isso?
— Não — ele respondeu ainda com um sorriso sugestivo. Nem mesmo a paisagem ao seu redor ofuscava a feição graciosa e tendenciosa da garota de cabelos negros. — Consigo voltar ao passado e ainda enxergá-la sob as luzes da pista de dança, assustada diante de mim seminu, estimulando-a a se soltar em meio à barulheira da boate. Eu não poderia sequer imaginar a reviravolta que você traria a minha vida. — Ele pôs uma mecha de cabelo dela por trás da orelha pequena. — Se eu fechar meus olhos, sou capaz de relembrar como suas vestes amareladas e vibrantes na empresa contrastavam profundamente com os blazers discretos dos outros funcionários. E, para mim, era você quem brilhava e trazia vida àquele lugar.
— E? — ela incentivou.
— A cada vez que encaro o azul do céu, me lembro de seus olhos brilhantes e fortes ao me ver. Consigo sentir euforia até mesmo nos detalhes mais imprevisíveis que tivemos, como quando dividimos batatas fritas, goles de cerveja e dançamos ao som de Oasis. Mas você não gosta de breguices, não é, pedaço do céu? Então minha carga de breguice acabou por hoje...
Ela riu e relaxou os ombros.
— Aprendi a gostar com você. Você me faz ser brega, mas feliz — murmurou a contra gosto. Deitou sua cabeça no ombro do rapaz e respirou profundamente contra seu pescoço. — Porque sempre me lembrarei de você, a cada risada com suas provocações e seus sacarmos fora de hora, que me fazem pensar em como ainda não te joguei de uma ponte até hoje. Quando abri a porta do quarto de hospital e me surpreendi com você em pé, todo deslocado, com comida e flores para mim. A forma com que me abraçou. — Ela sorriu ao viajar ao passado. — Eu te amei e ainda te amo pelos detalhes. Sempre foram os detalhes que me fizeram perceber o quanto insuportável seria não te ter. E se lembre, principalmente, que quando as suas cicatrizes arderem, eu ainda estarei aqui para torná-las mais suportáveis, até que você não sinta mais dor. — Ergueu a fisionomia para assisti-lo. Arthur mantinha os batimentos acelerados e lágrimas intrometidas começaram a deslizar pela sua pele. — Nada no mundo inteiro será capaz de me fazer esquecer de você, porque todos os detalhes especiais que vivemos se tornaram parte de mim.
O rapaz não duvidou, porque entendia o que ela queria dizer. Sally também havia se tornado uma parte de si, uma parte especial. Ele a puxou e encontrou os lábios quentes e chamativos da garota, beijando-a com urgência e necessidade. Não havia timidez e nem pudor naquela troca de carícias, porque a cada dia que passava, parecia ainda mais viciado naquele contato.
Por obra do acaso, os primeiros pingos de chuva começaram a despencar, intensificando-se progressivamente. Seus cabelos já estavam ensopados, mas ainda permaneciam aos beijos e em tentativas desajustadas de se manterem colados mesmo em meio à aguaceira que afundava a cidade e a deixava acinzentada.
— Só prometa uma coisa agora, gogoboy — Ally sussurrou ao se afastar por um segundo para recuperar a respiração. — Que não se lembrará de mim toda encharcada e com cheiro de cachorro molhado.
Arthur riu e balançou a cabeça em negativo.
— Impossível, pedaço do céu — suas pupilas cintilavam segundas intenções —, você fica linda toda molhada. Inclusive, isso me traz ideias... — E então se levantaram, ele a segurou no colo e a carregou para o quarto.
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