23 | A ÚLTIMA LUTA


Você vai ficar comigo esta noite e fingir que está tudo bem? — James Smith (Tell Me That You Love Me).


— Alguma notícia sobre o paradeiro do meu neto? — Silvia questionou ao policial pela trigésima vez naquela semana. Ela estava na recepção e as pessoas permaneciam atentas àquela conversa. 

Todos se sentiam com os ombros pesados e impotentes, até mesmo Helena que se encolhia no colo do seu tio Miguel. O rapaz segurava a sobrinha e com o outro braço abraçava sua melhor amiga de infância. 

O clima na empresa estava pesado e os dias silenciosos, como se o desaparecimento do herdeiro também tivesse dissipado toda a alegria e toda a leveza dos funcionários.

— Sinto muito — o homem fardado lastimou. Era horrível para ele ter que dar sucessivas más notícias. — Investigamos as informações dadas sobre o tal Escorpião, mas infelizmente não encontramos nenhuma pista sobre essa... gangue.

— Vocês não procuraram direito! — Sally, nervosa, se intrometeu na conversa. Estava consternada. — Por favor, policial, foram eles que me sequestraram! Eles podem estar machucando o meu namorado! O senhor tem que aumentar os esforços! Tem que encontrá-lo!

— Dos homens que foram presos, todos riram diante da menção do nome Escorpião. Receio que talvez deva pensar que... que o rapaz realmente fugiu e não quer ser encontrado. — Suspirou pela constatação. — É normal pela situação dele, um garoto cheio de traumas.

— Não! — Ally gritou e, em reflexo, as pessoas se assustaram. — Está errado! — A jovem tremia e sua cabeça parecia girar em meio a tantas palavras ridículas.

Ninguém conhecia a lealdade e a nobreza do ruivo. Ele jamais a abandonaria.

— Obrigado pelo seu esforço, policial. Deixe-me levá-lo até a saída. — Fabrício o guiou até o elevador de forma educada, despedindo-se.

A morena abandonou a recepção e se deslocou para pegar um pouco de café, quem sabe assim se acalmasse e finalmente aceitasse a realidade. Quem sabe como uma droga, a cafeína fosse capaz de mantê-la distraída e alheia às tristezas e ao azar.

— Querida, se quiser, pode tirar o dia de folga, pois irei para casa. Quer carona? — escutou a voz de Silvia e, por isso, virou-se para encará-la.

As duas mantinham um semblante melancólico e os olhos embargados.

— Certo — A interiorana concordou. — Mas recuso a carona, pois irei para outro lugar.

— Só descanse, querida. — A mais velha abraçou Ally, confortando-a. — Estou com um mau pressentimento e, por isso, tente se manter segura. Pode fazer isso?

Com a voz estremecida e o coração pesado, a jovem meneou a cabeça positivamente e beijou a idosa no rosto carinhosamente, até mesmo tentou sorrir. Caminharam até o hall de entrada do edifício e, logo após, seguiram caminhos opostos.

A faculdade parecia a mesma para a jovem. Ela tentou se desligar de seus problemas enquanto escutava a professora falar sobre legislação publicitária. Levantou a mão e fez perguntas, de maneira que, quem a visse de fora, não reparasse em seu estado deteriorado.

Na saída, entretanto, ela ousou ir para casa. Lá encontraria o conforto de Sasa e ouviria as confusões de Dirce, porém, não conseguia mais fingir que estava seguindo com sua vida.

Era tudo uma farsa.

A fim de ficar sozinha, desviou para uma rua contrária a que sempre ia. Pegou um ônibus e em minutos encontrava-se em frente ao prédio de Arthur. Acenou para o motorista e acompanhou o veículo partir.

— Ei, dona Sally! — O porteiro a reconheceu. — Infelizmente seu Arthur ainda não veio. A polícia me interrogou... Descobriram algo?

— Oi. — Ela ameaçou sorrir. — Ainda não... Será que você teria uma chave reserva do apartamento dele, por favor? Eu... eu acho que esqueci umas coisas e preciso pegar.

O homem vasculhou a gaveta até que encontrou o objeto e o entregou a jovem.

Sally se dirigiu até o elevador e apertou o conhecido número doze. Ela acompanhou pessoas e crianças entrarem e saírem da caixa de metal, enquanto abastecia o peito de ar e de coragem. Precisava fazer isso. Correu em seguida até a maçaneta e utilizou a chave dada.

Assim que escancarou a porta de madeira, analisou a entrada da casa e suas lágrimas caíram desenfreadas. Tudo se mantinha no lugar e intocável, quase como se o aguardasse chegar. Ele retornaria para o seu lar?

Mas o ambiente também estava quieto, sem os brinquedos espalhados de Helena e sem o surgimento de Arthur com uma toalha branca enrolada na cintura. 

— Tudo parece tão irritantemente pacífico e silencioso — ela reclamou consigo mesma. — Cadê você?

Em passos cautelosos, a morena alcançou a sacada e observou a paisagem do mar. Absorveu o cheiro salgado do oceano e, de imediato, lembrou-se de quando foi ali pela primeira vez.

— Está no meu lugar preferido daqui — pôde escutar a voz dele ecoar em sua mente. Virou o rosto e o encontrou trazendo um pote de napolitano e colheres. Sorria para ela. 

A fim de não se torturar com a lembrança, Ally moveu-se até o sofá e se sentou como fazia, tirando os pés do chão. Ela abraçou as almofadas e ligou a TV. Acompanha a voz de um repórter de um canal qualquer preencher o ambiente.

— O que vamos ver hoje, gogoboy?

Ninguém a respondeu. 

Mais uma vez, a angústia a envolveu mais fortemente.

Pôs então para rodar o filme do Galinho Chicken Little. Por um instante alegrou-se e gargalhou com a cena que o galinho se desespera pensando que o céu está caindo, e como se voltasse no tempo, a morena trouxe à mente a careta de Arthur representando o desespero do personagem no Argos Bar. 

Devido à overdose de memórias, o instinto de Sally foi desligar abruptamente a televisão. Deitou-se então no sofá e, ao se sentir confortável, começou a se render à sonolência.

— Ally? — Escutou alguém tentando acordá-la. Reconheceu o tom grave e seu interior se aqueceu. — Vamos para cama, pedaço do céu. Está tarde.

Ainda letárgica, a morena se espreguiçou enquanto acompanhava os braços fortes e aconchegantes do dono do apartamento a tirarem no sofá. Ele a carregava no colo e, cuidadoso, a transportou até seu colchão. Deitou-a cuidadosamente entre seus travesseiros e sentou-se ao lado dela. Beijou-a no topo da cabeça, amoroso. 

— Alguém já te disse que você fala dormindo? — ele cochichou ao admirá-la. 

Ela abriu os olhos aos poucos, acostumando-se com a visão. Ainda que o breu na noite a atrapalhasse, a luz do luar que atravessava a janela permitia que as incontáveis sardas e os olhos âmbar dele fossem vistos. Esculpidos em perfeição só para ela.

— Você prometeu não me abandonar. — Uma lágrima escorreu por sua pele. Ele tentou limpá-la com o indicador. 

— Não se esqueça... Não importa como isso termine, fico feliz de ter te encontrado. — Sussurrou. — Agora descanse, estou aqui.

Exausta, a interiorana não o refutou. Aproveitou para deitar a cabeça no colo dele e, enquanto recebia carinhos, adormeceu com um sorriso genuíno no rosto.

Ao acordar na manhã seguinte, porém, observou que ainda estava no sofá. Esfregou os olhos para despertar.

Suspirou, frustrada por ter sido apenas um sonho.

— Lembre-se, Arthur, essa é a última luta e então estará livre — o ruivo relembrou a si mesmo enquanto encarava o próprio reflexo pelo espelho. — Poderá retornar.

A única coisa que o mantinha de pé durante aquelas semanas era a esperança de que, no fim, conseguiria sua alforria definitiva. Precisava cumprir com o combinado. Precisava lutar e vencer para garantir a segurança das pessoas que amava. Era um trato. 

Não queria que suas más escolhas do passado respingassem em alguém.

— Como se sente, campeão? — seu treinador, que havia o acompanhado desde novo, o questionou ao encontrá-lo no banheiro do galpão.

O local havia sido realocado. Nem mesmo Cíntia sabia a localização, pois todas as informações sobre o envolvimento dos dois e até mesmo sobre Helena tinham sido descobertas.

— Com saudade — confessou. — Parece que estou morto. Preciso da minha namorada, da minha filha e da minha família.

— Quem diria que você teria isso, não? — o técnico deslumbrou-se. — Nem parece o mesmo adolescente revoltado do passado. Você amadureceu. Estou orgulhoso do homem que se transformou! — Deu dois tapinhas nas costas do ruivo e saiu do cômodo.

Arthur sorriu diante daquela verdade. Agora podia enxergar uma perspectiva de futuro. Estendeu a perna na cadeira e passou um pouco de gel para aliviar as dores musculares, pois estava treinando de forma excessiva.

A insônia o impedia de dormir, por isso, até mesmo suas noites eram preenchidas com sacos de pancada, ganchos de direito e chutes. Às vezes, corria pelos arredores nas madrugadas soturnas. 

Não queria pensar em como estavam sem ele. Não queria imaginar Ally sofrendo. Não queria sofrer também.

O treinador retornou e o forçou a descansar. O rapaz, apenas de bermuda, seguiu até seu alojamento e deitou na parte debaixo de um beliche. Fechou os olhos, mas sua mente mantinha-se agitada demais. Girou o corpo três vezes, no entanto, seus pensamentos não paravam. 

— O que será que você está fazendo? — questionou baixinho e imaginou o sorriso de Sally, até mesmo a risada estranha da namorada. — Não importa como isso acabe... ainda fico feliz por ter encontrado você. Sempre ficarei.

Mais tranquilo, finalmente ele adormeceu, quase como se pudesse senti-la ao seu lado. 

No dia seguinte, ao acordar, tudo aconteceu rápido demais. Primeiro fez sua higiene, arrumou-se e, em seguida, organizou sua mala para viajar até o centro onde aconteceria as lutas. Ficou abismado ao se deparar com a construção gigante. Iria ser um grande evento, pois seus oponentes eram atletas lendários. 

— O investimento em você tá sendo alto, tá sabendo, né? — O treinador aproximou-se do ruivo. — Vencendo, eles conseguirão milhões só em apostas. Então vai lá e dê tudo de si. Sem piedade dessa vez. 

Arthur assentiu e se desfez de qualquer sentimento. Vestiu sua máscara impenetrável. Seu semblante era sério e focado, tornando-se a máquina mortal que aludiam. Ali era uma versão sua que nem ele mesmo reconhecia.

Acompanhou as primeiras lutas acontecerem, pois a dele seria a principal da noite e, portanto, mais tarde. Quando sua vez chegou, acompanhou a euforia da arquibancada ao vê-lo de volta aos ringues. Muitos estavam ali só para assisti-lo. Ele vibrou e ergueu os braços estimulando ainda mais as pessoas.

— Não devia ter voltado — Seu adversário opinou. — Não vou ter pena de você.

O ruivo apenas sorriu e deu de ombros, ignorando a declaração patética do rival. Assim que o duelo iniciou, todos encontravam-se em expectativa. Por mais que Arthur quisesse negar, o tempo longe do octógono cobrava seu preço, pois tinha perdido muito da sua agilidade.

Muito dos golpes proibidos eram praticados nas lutas clandestinas, pois ali era basicamente terra sem lei. Sobreviveria o mais forte, apenas. Por isso Arthur não se surpreendeu quando foi atingido com uma cabeçada e caiu no chão. O seu oponente iniciou golpes sucessivos contra sua costela enquanto o observava cuspir sangue e respirar com dificuldade.

O homem tinha prazer ao vê-lo esparramado na arena, gemendo de dor e se desviando para se proteger. O ruivo mal enxergava, pois o inchaço em um de seus olhos tampava sua visão. Seu suor se perdia à medida que o líquido vermelho de seus machucados o encharcava. Zonzo, o neto de Silvia aos poucos se afastava da realidade e todo o barulho do ringue se tornava mero eco.

— Arthur! — pôde ouvir a voz distante do treinador. — Não desista! Levanta! Vamos lá!

Ele estava cansado, abatido e derrotado. Não se sentia um vencedor. Finalmente estava em posição do que sempre se sentiu: um fraco.

Mas então, como se fosse um último alento antes de se render, recordou-se de uma memória de sua viagem à Itália.

Estava junto com Sally no terraço do hotel italiano. Apreciavam a paisagem de Florença e sentiam gotas de chuva começarem a cair sobre eles. Ela mantinha-se sentada em seu colo e o acariciava no rosto. Mesmo bêbada, notou como a jovem era linda.

— Eu quero você. — Escutou a voz de Sally confessar em desespero. A garota encostou os lábios nos lábios dele, ansiosa. — Não importa o que o mundo diga, meu bem, para mim você não é danificado. — Esquadrinhou cada detalhe do rosto emocionado do homem. Seus olhos brilhavam de ternura e admiração. — É completo.

Como se estivesse sofrendo de um surto de adrenalina, como se injetassem uma droga energética em suas veias, Arthur buscou toda força do seu ser, até mesmo as que nunca precisou, e simplesmente empurrou seu rival grosseiramente para longe de si. 

O rapaz de cabelos alaranjados se levantou gradativamente, e conforme se colocava de pé, a torcida vibrava. Até mesmo os olhos arregalados de seu técnico exibiam assombro diante da força de vontade de seu pupilo. A  região da costela de Arthur latejada de dor, mas, mesmo assim, canalizou sua atenção no que interessava: vencer.

Marchou até seu adversário, pegando-o de surpresa, o atacou com tanta obstinação que finalmente o acertou com uma sucessão de socos, fazendo-o bambear para trás e o deixando exposto. Aproveitou então para nocauteá-lo com um chute na cabeça, apagando-o de vez. 

Arthur permitiu que levantassem seu braço para o declararem vencedor. Mal pôde conter a emoção ao observar a felicidade de seu treinador e de toda sua torcida de pé alegre pela sua vitória. Porém, antes que pudesse absorver a sensação de euforia, algo estranho aconteceu. 

De repente escutaram um barulho de alerta. Luzes avermelhadas piscavam por todo o local. As pessoas saiam de seus lugares alvoroçadas, correndo para fora da arena. Vários policiais armados invadiam a arena. A movimentação era tão grande que ele chegou a se sentir ainda mais tonto. Não aguentava se deslocar, simplesmente despencou no ringue devido sua costela machucada. Ninguém se preocupou em retirá-lo dali.

O ruivo foi cercado e várias armas eram apontadas para ele. Um dos homens aproximou-se: 

— Arthur Ferraz?

— Sim — afirmou fracamente, até mesmo falar doía. O inchaço em suas pálpebras aumentou a ponto de todas aquelas pessoas parecerem miragem. — So-sou eu... 

— Estenda os braços e não reaja. Você está sendo preso, acusado de planejar diversas lutas clandestinas e de chefiar uma das principais gangues do país. 

— O quê? — Mal pôde escutar as próximas respostas, pois a dor dilacerante de seus machucados o fizeram perder a consciência. 



É, pessoal, Arthur tá encrencado... 

A tendência, meu caro, é sempre piorar...

O que será que aconteceu? Armaram p ele???

Até o próximo!!


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