02 | CIDADE GRANDE E HOMEM SEMINU


É um novo amanhecer, é um novo dia, é uma nova vida para mim. E eu estou me sentindo bem. — Michael Bublé (Feeling Good).


    ATUALMENTE

     — Meninas, venham aqui! — Fátima gritou da sala enquanto lia a carta que sua irmã havia enviado. Apesar das mãos sujas de trigo, ela limpou os olhos devido à emoção. — Larguem de lerdeza e venham! Rápido! 

     Com receio de ter acontecido algo, as irmãs, agora já maiores de idade, simplesmente desceram as escadas correndo e ainda com seus pijamas no corpo. 

     — O que foi, mamãe? Para essa gritaria toda achei que a casa estaria pegando fogo! — Sarah resmungou tentando manter os olhos abertos. 

     — Vire essa boca para lá, menina! A carta chegou! A bolsa de estudos de Sally foi aceita... Minha filha, você irá para a capital cursar Publicidade e Propaganda. 

     Diante da notícia, as duas despertaram imediatamente. A mais nova correu até sua mãe e, em seguida, leu sobre sua aprovação em voz alta. Estava muito feliz, pois sempre sonhou em fazer faculdade, o que infelizmente não era a realidade de muitas garotas de sua cidade quase desconhecida do mapa. 

     Ali, infelizmente, era tudo muito rural e atrasado. Para a maioria dos pais, suas filhas eram criadas para cuidar da casa e conquistar um marido. 

     — Oba, vamos para a capital! — Sarah comemorou por de trás delas. 

     — Como assim vamos, Sarah? — Fátima girou o corpo para a filha e arqueou uma sobrancelha. 

     O silêncio reinou no ambiente por incontáveis segundos. 

     — Mamãe, então... Eu também quero ir. Arrumarei um emprego e farei companhia a Ally, não é? Podemos nos cuidar.

     — Mas, querida... — Fátima aproximou-se dela, limpou as mãos sujas em seu avental e acariciou os cabelos encaracolados da filha mais velha. — Eu achava que você queria ficar aqui e se casar com Crustáceo. 

     Crustáceo era o vizinho da família Bessa, conhecido pelo jeito atrapalhado e um tanto... infantil. Ele gostava de contar o tempo todo sobre sua coleção de gnomos de jardim. Mesmo que fosse errado, sempre fugiam dele quando o avistavam. 

      — Não, mamãe, eu não quero. Entenda, por favor. Quero ser independente! Dirce também pretende ir. Não ficaremos sozinhas. 

     — Além disso — Sally se intrometeu, segurando um sorriso travesso —, Sasa é alérgica a caranguejo. 

     Ao escutar o deboche da filha, a mulher se movimentou e preparou-se para lhe dar cascudos, porém, a morena foi rápida e correu até seu quarto por reflexo e autodefesa. 

     Apesar de sentir triste por ter que abdicar da presença de suas garotinhas, Fátima acabou aceitando a mudança de ambas. Pensou que, pelo menos, não teria que preparar mais tortas de amora para subornar o policial Willians. 

     Enquanto faziam as malas, Sarah sentia-se em expectativa por poder finalmente ter mais liberdade em expor seu amor à namorada, pois previa que as pessoas da capital fossem mais mente aberta. 

     Sally, por sua vez, tocava nos móveis e alisava os porta-retratos, recordando-se de sua infância. Em seguida, espionou seu reflexo pelo espelho e o estranhou, pois o sorriso aberto que um dia iluminou seu rosto, agora parecia ofuscado por uma neblina permanente. Embora muitos acreditassem que ela havia superado a separação de seu melhor amigo, a verdade era que seu coração ainda estava vazio.  

     Talvez sair do lugar que lhe trazia tantas lembranças a curasse finalmente. 

     — Me liguem se precisarem de dinheiro, se houver muito mosquito ou se quiserem voltar — Fátima tagarelava por conta do aperto no coração. Ela mantinha suas meninas agarradas em seu peito, sem coragem de soltá-las. — Amo vocês, ok? Juízo! 

     Já com suas malas pretas nas mãos, vestidas com sobretudos e com os olhos marejados, as irmãs beijaram a testa de sua mãe e assentiram. Em seguida, subiram no ônibus junto a Dirce e acenaram, despedindo-se de todos, pois praticamente o vilarejo inteiro estava ali. Até mesmo Crustáceo, que segurava um de seus gnomos de jardim. Apesar dos pesares, elas sentiriam saudades.

     Dois dias depois, após longas paradas na estrada e cochilos, além de uma viagem final de avião, as três finalmente se depararam com o cenário da capital. Havia construções robustas e aglomeração de pessoas e de veículos. Os pulmões delas também sentiram o impacto. 

     — Meus ouvidos doem! — Dirce reclamou assim que pisou na rua, tampando inutilmente as orelhas. Alguém apressado trombou nela, mas sequer pediu desculpas, simplesmente continuou andando. — Ei, imbecil, sua mãe não lhe deu educação, não? 

     No mesmo instante, uma garota em uma bicicleta quase atropelou Sarah. 

     — Ei, olha por onde anda, espantalho! — a desconhecida bradou. 

     — É... — Sally balançou a cabeça, relaxou os ombros e começou a caminhar. — Bem-vindas à cidade grande, garotas.

     Com a ajuda da tia, encontraram um pequeno apartamento de preço acessível um pouco mais afastado do centro. Pertencia a um bairro modesto, porém, ainda assim, sentiam-se felizes por finalmente terem seu canto. 

     — A gente podia sair para conhecer a cidade, né? — Dirce propôs, já dentro do apartamento.

     — Acabamos de chegar... Vamos dormir. Teremos muito tempo para desbravar esse lugar caótico. — Sally tirou os sapatos e se jogou na cama de solteiro. — Aliás, amanhã já é dia de procurarmos emprego. 

     — Larga de ser chata, Ally — Sasa a atacou. — É só chegarmos cedo. Por favor, maninha! Por favor!

     Sally grunhiu irritada por sua irmã conseguir dissuadi-la sempre, expondo sua derrota. As outras duas comemoram com pulinhos e palmas alegres. 

     Com a mala aberta sobre o colchão, retiraram dali vestidos e maquiagem. Como a mais nova era péssima com sombras e pincéis, sua irmã teve que maquiá-la. Ela escolheu um vestido azul com um pequeno decote, que favorecia seus olhos azuis anis e contrastava com seus cabelos negros.  

     Assim que alcançaram a rua, fitaram os arredores ansiosas. Não sabiam sequer para onde ir. Avistaram um táxi à distância e correram aos gritos para que o motorista parasse, o que felizmente ele fez logo após encará-las com expressão maliciosa. 

      — Para onde garotas tão graciosas vão?

      — Para o IML, se o senhor não se comportar — Ally murmurou. O homem murchou seu sorriso sacana.

      — Somos turistas, filhas de militares, sabe — Dirce introduziu, mentindo provavelmente para assustar o homem. — Jovens da nossa idade costumam ir para onde? Pode nos levar a algum lugar divertido!

     — Certo — o motorista concordou sem sequer encará-las. As meninas disfarçaram uma risada de vitória. 

     Não demorou para que ele as deixasse em frente a uma espécie de casa noturna. Sarah lhe deu dinheiro e finalmente saíram do veículo. A música era altíssima e havia muitas garotas de minissaia, o que imediatamente estranharam. Todos seguravam garrafas de bebida alcoólica e pareciam meio tontos.

     — Se mamãe estivesse aqui, ela diria que isso é a perdição e que fomos, oficialmente, corrompidas — Ally concluiu. 

     — O que os olhos não veem o coração não sente, né? — Dirce brincou, sendo a primeira a ir atrás dos ingressos. 

     Se o lado de fora parecia a perdição, o de dentro poderia ser considerado o próprio inferno. Porém, nem mesmo a discrepância de paisagem as assustariam. Sarah pediu uma dose de tequila para as três, embora Sally nunca tivesse bebido na vida. 

     O que as três não previam era que, justo naquele dia, Fernanda, noiva de Luís Miguel, comemorava ali sua despedida de solteiro antecipada. Suas amigas tinham contratado diversos gogoboys, que dançavam de forma sensual e animavam as convidadas. Dentre eles, apesar de não ser contratado, estava Arthur, meio-irmão do noivo. Ele estava vestido somente com uma boxer branca e de colarinho, e participava por amar farra e garotas solteiras.  

      Enquanto sensualizava sobre o palco e expunha todo seu físico definido, desinibido até mesmo das mãos ousadas que tocavam seu abdômen, o ruivo ergueu o rosto e encontrou o olhar perdido de uma garota de íris azul anil. Sentiu-se fascinado. Azul como o céu. Imediatamente desejou que ela fosse a felizarda a passar a noite com ele. 

      Sem receio algum, principalmente pelo fato de todas sempre querê-lo, o rapaz afastou-se das mulheres atrevidas e desceu do palco. Ele caminhou em direção à mulher que o interessou e se movimentou tentando fazê-la acompanhá-lo, no entanto ela parecia assustada.

     Inicialmente Sally culpou a bebida por ter uma miragem de um homem seminu em sua frente. Ousou fechar os olhos, mas, ao abri-los, permanecia a encarar aquela figura sem pudor e erótica. Alvoroçada, ela simplesmente roubou uma dose da bebida de Sarah. O líquido queimou sua garganta e a aqueceu.

     — Pode tocar — Arthur declarou para ela com um sorriso indecente. Ele a pegou pela mão e a espalmou em seus gominhos. 

     Os olhos de Sally mantinham-se arregalados, enquanto sua irmã e Dirce, já alcoolizadas, gritavam extasiadas pela situação. A garota conseguia sentir seus dedos deslizarem pelos contornos admiráveis e libidinosos do rapaz que sequer conhecia, mas que lhe causava extrema curiosidade. Parou de desvendá-lo somente quando alcançou o caminho proibido. Ele exalava uma masculinidade afrodisíaca, quase como se a fizesse se sentir como uma verdadeira pecaminosa.

     — Gosta do que vê, pedaço do céu? — ele a provocou, apelidando-a devido às esferas intensas e azuladas que o atiçavam.

     — Sim — respondeu por causa da sinceridade que o álcool lhe dava. Com a fala enrolada de bêbada, continuou: — Vo-você é um filho da mãe gostosu... Gostosu igual cenora... — Riu ao analisar os tons alaranjados do cabelo do rapaz, fazendo-o  gargalhar.

     Antes que pudessem prever, Dirce e Sarah haviam se afastado e encontravam-se aos beijos em meio a jovens tão libertos quanto. Enquanto isso, em outra parte da boate, Fernanda sorria contente por finalmente ter conseguido enlaçar Luís Miguel. Em uma área próxima estavam Arthur e Sally, que sequer sabiam o nome um do outro, mas dançavam de forma divertida e sensual, embebedados de álcool nas veias e no cérebro. 

      A menina sentia-se perigosa e liberta.

     — Me passa seu número, pedaço do céu — ele pediu, segurando-a pela cintura enquanto se movimentavam pele com pele.

     — Comu  eo vou saber que você nam é um cretino? — sua voz denunciava seu estado crítico.

     — Talvez eu seja. — Arthur a virou para ele, agarrando-a pelo cabelo e beijando superficialmente seu pescoço. Ela estremeceu. — Mas cretinos também têm um lado bom e você pode descobri-lo. 

     A garota sorriu de forma ardilosa. Dominada por seus instintos, correu os dedos pelo corpo exposto daquele homem desconhecido e começou a beijar cada cantinho que encontrava.

     — Hummm — murmurou um pouco grogue —, me-eu nunbero é... 

     Um estrondo na rua fez com que as três garotas acordassem. Estavam jogadas no chão do apartamento, ainda vestidas com as roupas da noitada. Sentiram imediatamente dor de cabeça e no corpo. Estavam destruídas. 

     — O que aconteceu? — Sally questionou, tentando se recordar de todos os detalhes. 

     — O gogoboy que estava com você nos trouxe para cá, ele conseguiu achar nosso endereço em um papel na minha carteira... — Dirce sussurrou, pois sua audição estava sensível. Fitou o espelho e assustou-se com sua aparência. — Minha nossa, nunca mais bebo na minha vida! 

      Outro barulho zuniu, fazendo-as resmungarem. Era o celular de Sally. Por isso, ela o desbloqueou. Assustou-se ao encontrar uma mensagem de um número desconhecido. Ao abrir a foto da pessoa, logo deparou-se com o ruivo da boate. 

     Em sua casa, apenas de cueca e jogado entre lençóis caros, o rapaz riu. Apesar de essa não ser sua real profissão, teclou de volta: 

     A morena desligou o aparelho e decidiu iniciar sua busca por trabalho, afinal, elas tinham aluguel e contas para pagar. 

     — Vamos, levantem, suas bêbadas... Quero nem saber se estão acabadas, foram vocês quem quiseram sair à noite. — Puxou a irmã pelo braço e a cunhada pela perna. Ambas eram pesadas. — Temos que enviar currículos, fazer entrevistas e arrumar dinheiro! Se nada der certo, eu viro cafetina de vocês.

     — Amanhã, Ally! — Sasa implorou, tentando se salvar ao segurar o pé da cama. 

     — Nada de amanhã. Levantem logo, senão eu vou pôr música alta!

     Imediatamente as duas se ergueram. Mesmo resmungando, seguiram para o banheiro. Sally as observou e riu internamente. Horas depois, as três estavam prontas para saírem, com seus currículos em mãos, além de balas de menta, para disfarçarem o resquício de álcool. 

     Elas descobriram praticamente todos as ruas e avenidas do lugar. Arremessaram-se no meio de diversas pessoas, mesmo com um sol escaldante, atravessaram pistas lotadas de carros e ainda pegaram ônibus em que foram espremidas. Foram quase atropeladas cinco vezes. A primeira a dar sorte foi Dirce, que encontrou uma vaga de garçonete em um café. A segunda foi Sarah, que conseguiu substituir uma atendente de padaria que havia sido descoberta roubando o caixa. 

     Sally, no entanto, no final do dia se jogou derrotada em sua cama, pois havia sido a única a não encontrar nada. No restaurante em que foi, acabou vomitando no entrevistador, pois ainda não estava completamente curada da ressaca. No Pet Shop, o dono do lugar a assediou a ponto de fazê-la reagir com uma joelhada em seus países baixos. 

     — Por que eu sou tão azarada? — indagou-se enquanto olhava para o teto descamado e cinzento. 

     O celular apitou novamente e, apesar do desânimo, ela abriu as mensagens. 

     Arthur, no outro lado da tela, afrouxou a própria gravata, pois tinha acabado de chegar de seu verdadeiro trabalho. Era diretor financeiro. Como filho e herdeiro de Lourenço Ferraz, embora não o considerasse seu pai, infelizmente tinha que aturar a empresa de sua família. Isso rapidamente o fez lembrar de sua avó, que estava procurando uma secretária. 

     Além disso, tendo a morena por perto, poderia finalmente levá-la para cama como havia planejado quando a conheceu. Só não o fez pelo estado embriagado que ela se encontrava. Poderia ser um cretino e mulherengo, como o chamavam, mas jamais se aproveitaria de uma mulher dessa forma. 

     O ruivo riu ao ler. A menina nem imaginava quão útil poderia ser. Em seguida, prometeu agendar a entrevista e a ajudou a se destacar, uma vez que conhecia a própria avó. Dona Silvia valorizava, acima de tudo, a dedicação. Por isso, pediu que Sally discursasse por esse caminho.

     Despediram-se e ela se deslocou até o banheiro minúsculo. A água gelada a atingiu e a fez se sentir quase esperançosa. Talvez em uma maré de azar houvesse uma gotinha de sorte. 

     Ao sair do banho, notou seu celular nas mãos de Sasa. Ela franziu o cenho e a confrontou: 

     — Ei, o que está fazendo?

     — Você quem deixou suas mensagens abertas! Mas então, o stripper tem outro emprego? E ainda vai te mencionar para seus superiores... Arrasando corações!

     — Intrometida! — A morena retirou seu aparelho das mãos ardilosas de sua irmã e se deslocou para pegar suas peças íntimas. — E para sua pergunta, sim... Deve ser algo comum, né? Tipo trabalhar em almoxarifado ou na limpeza, não sei. 

     Dirce estava sentada em frente à TV antiga e, pensativa, interferiu na conversa:

     — Mas aparentemente ele tem moral com os chefões. 

     — É. Mas deve ser porque, sei lá, ele é funcionário antigo ou o melhor do mês. Agora vocês parem de me encher e me deixem pôr uma roupa!

     — Tudo bem, estressadinha — Sasa retrucou a irmã aos risos. Em seguida, ergueu-se e puxou Dirce. — Ei, vamos sair para descobrir o que esse lugar tem para casais! E você, maninha, tente não ficar caidinha de primeira pelo stripper, viu? Homens da cidade são perigosos...




E aí, o que acharam dessa relação que começou a existir entre Sally e Arthur? Alguém já fez as ligações da confusão que será a vida da guria agora? haha

Espero que estejam gostando, bjss!! <3 

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