Tudo
Devido aos problemas na infância (e todos os que se seguiram), eu deixei de confiar nas pessoas. Família, colegas, chefes, carteiros, governadores, homens, mulheres. Todos e tudo. Então apesar de ter alguns pensamentos aleatórios que envolviam a imagem de Está, eu também me sentia muito inseguro e duvidoso sobre marcar um encontro em algum lugar. Certamente não seria um encontro amoroso (ela disse que eu sou um defeito, afinal de contas!), ainda assim, era algo que eu não achava certo. Nem imagino como passei várias horas tentando escolher o melhor ponto para nos reunirmos (além de me perguntar qual seria a reação dela ao sugerir um motel... Em filmes, acontece).
Certamente fui um verdadeiro caos no trabalho e não fiz absolutamente nada. Difícil dizer o que mais me atrapalhou: o sono, o medo, Está, o encontro, a mensagem, ser considerado um defeito, 'eles'. O porquinho da índia percebeu minha mudança e tentou brincar, e acho que lancei um olhar tão feio que o homem se retirou e não me perturbou de novo, o que foi uma dádiva.
Assim que meu horário de trabalho terminou, cogitei sair correndo, deixar Está para trás, recolher as poucas coisas importantes em meu apartamento e partir para qualquer outro lugar. O problema era que minhas economias não permitiam pegar um avião e mudar de país, e minhas referências não eram as melhores para obter um novo emprego com facilidade (ainda mais sem dar baixa na carteira). Eu teria de recorrer a parentes, aparecer na casa de um tio que morava no Sul (era um chato da peste, mas eu estava ficando desesperado). E com a cabeça a cogitar as mais diversas e improváveis possibilidades, quase gritei de susto quando seguraram meu braço.
- Não queria assustá-lo. - disse Está, o rosto em um misto de vergonha e vontade de rir. - Pensou em algum lugar?
Eu queria dizer nenhum. Soaria indelicado, no entanto, eu realmente não estava com humor para conversas. (Ainda mais para ouvir que eu era um defeito). E ao olhá-la ali, em seu terninho sem vinco, precisei me conter para não sugerir um clube de Strip (filmes realmente são uma inspiração), então terminei por dar de ombros.
- Então vamos ao apartamento que aluguei.
Não foi uma pergunta ou sugestão. Aquela mulherzinha tomou a decisão e, com as mãos em meu braço, saiu quase a me carregar. E tudo se seguiu tão rápido que não sei como adentrei aquele carro alugado (não era uma Ferrari, infelizmente). Tão perturbado, não me atentei ao trajeto.
Adentramos um prédio comum, nada exuberante, e logo adentrávamos o quarto, que não era sujo, tampouco parecia usado. É difícil explicar, como se estivesse visitando um decorado. O que mais reparei foi a cama (no cinema, muitas conversas terminaram em lençóis. Um pouco de esperança naquele dia tão atribulado melhorou um pouco meu humor).
- Norman, eu prefiro ser direta. Não creio que exista forma de tornar essa conversa agradável. - ela estava séria ao se sentar ao sofá e apontar a cadeira à frente. - Tem alguma recordação de sua infância?
- Várias. - resmunguei sem muita vontade. Minha perna estava inquieta, balançando cada vez mais rápido. - Disse que prefere ser direta, então seja.
- Claro. Como eu disse, você é um defeito.
- Você vai me matar? - perguntei de uma vez. E ela soltou uma risada tão autêntica que eu não sei se senti mais medo ou vergonha.
- Eu não vou matar você, só quero ajudar a deixar tudo normal. Sei que, a princípio, não será muito fácil de entender como surge um defeito, então apenas escute. Algumas pessoas, chamadas Viajantes, podem se mover através do tempo. - desta vez, eu quem quase riu. - Existem os que tentam alterar o passado, outros a desbravar histórias antigas, além das mais variadas ideias incríveis ou terríveis, desde se tornar um herói ou tentar destruir o mundo. E, de vez em quando, um viajante acaba por gerar um filho no passado. Desta forma, nasce um defeito.
- Não, não, espere um pouco! - não sei se ela era uma completa louca ou se aquela conversa era só para tirar sarro da minha cara. Esquadrinhei seu rosto em busca de semelhanças com as diversas idiotas que praticaram bullying em meus anos de derrota e que, de repente, retornava para continuar as sádicas práticas. - Você está falando abobrinha. Meu pai, com toda a certeza, não é um viajante do tempo. Duvido muito que, na hipótese de alguém ter essa habilidade, essa pessoa iria ficar travada em uma vida difícil e chata. E se você vai insistir que um passageiro do futuro quis assentar a vida em uma borracharia, vou jogar minha esperança de lado e ir embora.
- Que esperança?
Creio que meu rosto ficou vermelho. Eu realmente disse aquilo?
- Não vamos mudar de assunto. - falei apressado, a unir as mãos e fazer a expressão mais séria que consegui. - Apenas responda.
- Norman, eu não tenho o direito de julgar o que cada viajante faz de seu tempo. Seria o mesmo que questionar a razão de você desperdiçar sua vida com aquela empresa que não lhe trará qualquer futuro.
O silêncio se alongou por vários segundos. Eu estava parado, a encará-la com uma mistura de desgosto e admiração. Afinal, Está permanecia ereta, o rosto sério, calma e com tudo sob controle. Era notável como já havia conversado sobre aquele assunto com outras pessoas. Estava acostumada. E minha mente desconfiada começou a tramar que ela era uma psiquiatra a testar se minhas faculdades mentais ficaram boas em minha vida adulta, ou se era melhor me enviar a um manicômio.
- Norman, você tem duas opções. - disse ela, sem demonstrar qualquer desconforto. - Duvidar do que eu digo, levantar e ir embora; Confiar e escutar o restante.
Permaneci imóvel, mais que confuso. Não confiava nela de forma alguma, pois não fazia sentido. Nem achei tão difícil acreditar em pessoas que voltavam ao passado. Mas minha mãe a se envolver com um viajante do tempo? Isso já era demais. Cheguei a me remexer, cogitando ir embora e encerrar tudo. No entanto, eu sabia que aquilo ficaria em minha cabeça até os meus últimos dias.
- Quem são 'eles'? - perguntei, ao mesmo tempo temeroso e a querer mudar o assunto sobre possibilidades de adultério por parte da minha mãe.
- 'Eles' são o que chamamos de Exterminadores, e tem o objetivo de eliminar todo e qualquer viajante do tempo, assim como os defeitos.
- Exterminadores do futuro? - meu tom estava repleto de desdém, mas foi impossível evitar. Tudo era irreal demais para mim. - E o seu nome verdadeiro é Sarah Connor?
- O que? - ela pareceu confusa pela primeira vez. Acho que aquela mulher gastava tanto tempo para deixar os terninhos bem passados que não assistia televisão. - Meu nome é Está Trudol. Meu objetivo é ajudar e proteger os viajantes e seus defeitos.
- Como é que eu vou saber? - perguntei com raiva. Não duvidava que, a qualquer momento, ela ia começar a rir e declarar que tudo era uma pegadinha da empresa. O porquinho da índia estaria vermelho de tanto rir da minha cara. - E se você não passa de uma exterminadora? Estamos aqui, em um apartamento onde você certamente não mora. Ninguém sabe que eu estou aqui, é a chance perfeita para eliminar o defeito.
- Quando criança, você matou um homem.
O gelo subiu pela minha espinha. Meu primeiro impulso foi negar. Depois, minha síndrome de perseguição teimou que aquela mulher queria averiguar minha estabilidade emocional.
- Norman, eu sei que sua infância... Sua vida toda tem sido difícil... Nosso grupo queria ajudar você, mas fomos traídos e, naquela noite, os exterminadores quase o destruíram... Não era para o sangue sujar suas mãos... No entanto, você sobreviveu. Não se lembra de nada?
Permaneci de boca fechada, sem saber responder, nem entender, sequer pensar. Tudo. Tudo era confuso e estranho demais.
- Precisamos ir, Norman. - ela se ergueu, o rosto como uma máscara. E eu a encarei em dúvida, sem a menor ideia de onde ou o que. - A pessoa que nos traiu no passado, ainda não sabemos quem foi. E ela já causou a morte de muitos, então precisamos encontrá-la. Só existe uma regra, Norman. O seu eu passado não pode ver o eu futuro.
- Como é que é? - perguntei com uma voz que sequer parecia minha.
- Nós vamos ao passado. Encontrar você, descobrir o traidor, livrar os viajantes e defeitos dessa ameaça. E, de preferência, impedir que o seu eu criança cause a morte de alguém e cresça tão infeliz.
Aquele rosto impassível franziu a testa assim que eu soltei um palavrão. Percebi que eu não era o maluco, e sim a mulher do terninho bem passado. Não estava mais com medo de ser enviado ao manicômio, e sim de ser esquartejado pela doida do tempo.
- Acho que só existe um jeito de acreditar em mim. - disse ela, passando a retirar o terno.
Eu já não pensava em cama, em filmes, em nada. Só queria correr para me salvar, e foi o que fiz. Agradeci mentalmente pela porta destrancada e avancei para a saída de emergência, sem perder tempo a esperar o elevador. Ao espiar para trás, fiquei surpreso em ver a mulher sem terninho a correr em meu encalço, os olhos com um brilho que me pareceu doentio.
Pulei de dois em dois degraus até chegar ao térreo, me joguei contra a porta, causando um barulho ensurdecedor, e dei de cara com um homem sério, a me encarar com a sobrancelha arqueada.
- Desculpe. - gaguejei sem graça, em grande esforço para controlar a respiração. - Estou com pressa.
- Mas o seu tempo acabou.
Arregalei os olhos diante do homem a erguer o braço, a mão enluvada a segurar uma arma. Senti o sangue gelar, a respiração entalou em minha garganta, meu coração saltou em uma tentativa de fugir do peito. Não entendi o que Está gritou. Eu estava hipnotizado pelo olho negro e oco do cano da arma a me encarar com frieza. As mãos da mulher sem terninho me agarraram por trás, talvez a querer me impedir de fugir. O som do tiro ecoou alto, e eu senti um aperto por todo meu corpo. Enquanto minha visão borrava e escurecia, fiz um último esforço para entender, sem resultado algum. E então tudo se apagou.
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