Capítulo Sem Nome Dezesseis

 Nova York estava completamente viva, mesmo já passando da meia noite. O movimento era bem maior que o de Fawn durante o dia. As pessoas entravam e saiam de todos os lugares possíveis, como um formigueiro, as luzes ofuscavam o sono e eu não vi um único bar vazio ou fechado.

 Seguimos por ruas secundárias para não cruzarmos com uma viatura. Meu medo de morrer havia diminuído, mas o de ser preso aumentou em proporção. Eu não sabia onde ficava a área abandonado de Nova York, mas quando chegamos em um lado sem barulho e pessoas percebi que estávamos perto.

 Rhonda serpenteava por becos estreitos. Se eu erguesse a cabeça não conseguiria ver mais que alguns metros, já que a área era formada por prédios. Ela estava relaxada, como se já tivesse se embrenhado por ali muitas vezes, mas eu a todo momento imaginava um maníaco nos encurralando no próximo beco. Minutos depois comecei a ouvir gritos e música abafados. Saímos de mais um beco esquisito e entramos em uma avenida abandonada, onde consegui ver um prédio baixo, o único com luzes acesas. Rhonda parou a moto no estacionamento improvisado, entre uma chevy e um ford, escondeu os capacetes embaixo da chevy e entramos na fila de cinco pessoas.

— Bem-vindo à Esquina dos Desesperados. — ela falou sorrindo, excitada. Tentei sorri de volta, mas suava enquanto olhava as pessoas estranhas na fila.

 Quando chegou nossa vez, o cara da entrada, que parecia o primo do falsificador de documentos, nos examinou de uma ponta a outra.

— Documentos. — pediu.

 Rhonda e eu passamos as identidades para ele. Meio segundo com elas nas mãos e percebi que ele acreditava naqueles papéis tanto quanto no Papai Noel. Lancei um olhar preocupado para Rhonda, mas ela pegou uma carteira de cigarros na bolsa e segurou um entre os dedos despreocupadamente.

— E aí, vai deixar a gente entrar ou não? — ela perguntou, revirando os olhos.

— Acha mesmo que parecem ter vinte e um? — o cara riu.

— Achamos.

— Essa maquiagem toda não serviu para esconder o cheiro de fraldas e leite em você, menina.

 Rhonda rodou o cigarro nos dedos e sorriu.

— Aposto que já deixou passar meninas mais jovens que eu.

— Talvez.

— E aposto que você adoraria me ver aí dentro. — ela se esticou para colocar o cigarro entre os lábios do cara. O grandalhão sorriu, mas seus olhos caíram em mim.

— Pena que está acompanhada.

— Ah, William é meu irmãozinho.

— Ele não parece nada com você.

— Irmão bastardo. Resultado inesperado de uma noitada do meu pai. — ela deu de ombros.

— Irmãozinho, é?

— Apenas alguns meses de diferença.

 Eu só fiquei ali parado, com medo até de separar os lábios para respirar e acabar gritando que era tudo mentira. Minhas axilas eram duas poças de suor, meus dedos tremiam.

— Ok, vou engolir essa. — o grandão devolveu os documentos. — Se consumirem alguma coisa ou se eu pegar vocês apostando, eu coloco os dois para fora.

— Combinado. — Rhonda concordou.

 Passamos por ele e entramos no maravilhoso mundo da Esquina dos Desesperados. O lugar era uma espécie de bar com música ao vivo e cassino. Devia ter uns cinquenta metros ao todo, com o palco jogado de um lado, o bar próximo à entrada e as mesas de jogos nos fundos.

 Uma banda de reggae já estava tocando um cover do Bob Marley. A multidão estava quase toda concentrada próxima ao palco, dançando com uma ginga que os fazia parecer drogados, se bem que eu apostaria que estavam mesmo.

— Quer beber alguma coisa? — Rhonda gritou no meu ouvido.

 Lancei um olhar para o barman. Ele não parecia em nada com o cara da entrada. Alto, magro, de aparência limpa. Parecia querer não estar ali, mas, como todo mundo, tinha contas para pagar. Duvidava que ele venderia alguma coisa para a gente.

— Vamos apenas pedir uma coca normal para você e uma diet para mim. — falou, como se escutasse meus pensamentos.

 Depois de pagarmos as bebidas, rodamos um pouco pelo lugar até que decidimos ir para as mesas antes de sermos expulsos dali.

— Não acredito que fez um trato com aquele cara. — eu disse quando nos afastamos do palco.

— Precisávamos entrar.

— E porque eu tinha que ser o bastardo?

 Ela apenas revirou os olhos.

— Você não fuma de verdade, não é?

— Era só disfarce. Pessoas mais velhas andam com cigarros.

— Só aquelas que querem morrer de câncer.

 Nos aproximamos do bloco-cassino, como eu mesmo o batizei. Vi mesas de sinuca, pôquer, dados e roletas.

— Heathcliff era pobre. Após a morte do sr. Earnshaw, ele se transformou em nada mais do que um empregado. Depois de descobrir que Catherine se casaria com Edgar, fugiu e ficou anos desaparecido. Quando retornou, foi como dono de uma grande fortuna. Como ele ganhou tanto dinheiro o livro não diz, mas Nelly dá a entender que foi através de apostas, assim como ele ganhou tudo do Hindley.

 Eu não fazia a menor ideia de quem eram aqueles personagens.

— Então, você quer que eu ganhe uma fortuna?

— Não. Só vai provar se é bom em jogos de azar como o Heathcliff.

— Não tenho dinheiro, como vou apostar?

 Rhonda puxou uma nota de cem dólares do bolso.

— Comece com isso.

— Onde você...

— Dinheiro para emergência. Meus pais sempre deixam alguma coisa quando viajam.

 Peguei a nota e me aproximei das mesas de pôquer. Meus pais não me deixavam jogar, mas eu aprendi o básico quando precisava ficar com tia Grace e ela fazia suas ''reuniões'' com as amigas. A mesa estava ocupada por três homens.

— Meu amigo aqui quer jogar. — Rhonda falou apoiando as mãos na mesa.

 Os homens olharam para nós.

— Isso aqui é pôquer, garoto, não baralho dos Padrinhos Mágicos. — disse o cara da ponta, com óculos laranja e pulôver verde. Que mistura agradável para os olhos.

— Temos dinheiro. — ela fez um gesto com a cabeça e eu mostrei a nota.

— Uau, vejam só, cem dólares! — o cara do pulôver riu. — Por que não vão comprar balas com isso?

— E se fizermos um trato? — Rhonda ganhou a atenção dele. — Você deixa meu amigo entrar com as cem pratas, se ele perder...

— O que acontece? — o homem ao lado perguntou.

— Ele se torna o vassalo de vocês pelo resto da noite.

— O quê? Tá maluca? Eu não... — comecei a protestar, mas ganhei uma cotovelada no estômago.

 Os homens se entreolharam e sorriram.

— Feito.

 Desde o dia que conheci Amy Sophie Rhonda Green imaginei diversas coisas que gostaria de fazer com ela. Desde subir no alto do trepa-trepa e dividir uma caixinha de suco quando tinha seis anos até ficarmos enrolados com xalés em frente a lareira sentindo o cheiro de nosso envelhecimento quando tivesse sessenta. Mas naquela noite foi a primeira vez que imaginei passando uma corda pelo pescoço dela e puxando no tronco de uma árvore.

 Meus novos amigos concordaram em diminuir as apostas para dez dólares de cada vez. Em vinte e cinco minutos havíamos jogado oito mãos e meu placar de vencedor estava no zero. Enquanto o cara dos óculos coloridos, que se apresentou como Luke, distribuía as cartas mais uma vez, eu fiquei imaginando quais tarefas meus futuros senhores me mandariam fazer.

 Um pouco de alívio penetrou em minha mente aterrorizada quando vi minhas cartas. Se eu tivesse bastante cuidado poderia até ter uma chance. Jogando como se minha vida dependesse daquilo, e era mais ou menos essa a ideia, consegui minha primeira vitória. A segunda e terceira vieram com pura sorte e com a quarta decidi que Deus não me queria ver como escravo sexual. Metade do dinheiro que entrei estava de volta no meu bolso. Perdi mais três rodadas e, lá pelas duas da manhã, de uma forma que nem eu entendi como aconteceu, eu tinha duzentas pratas guardadas.

— Talvez eu pague umas balas para vocês. — falei com a confiança lá em cima. Rhonda me censurou com o olhar, mas ela parecia bem contente com meu sucesso.

 Claro que eu não faria fortuna naquela noite, mas mesmo que ela anunciasse meu sucesso no Plano Três, eu não me chamaria Heathcliff.

— Parece que o rapaz tem sorte de principiante. — outro companheiro, Lionel, comentou.

— Nada vai me mandar para debaixo da mesa. — falei sorrindo.

 Infelizmente, minha profecia não se cumpriu. Enquanto eu puxava mais fichas, alguém gritou da entrada:

— Polícia!

 A Esquina dos Desesperados deu jus ao nome. Crianças com documentos falsos, pessoas com menos de vinte e um portando bebidas alcoólicas e os drogados começaram a correr para todos os lados, esbarrando uns nos outros, como se o juízo final estivesse chegando. Rhonda me puxou para debaixo da mesa enquanto os jogadores fugiam também.

— Há uma porta para lixo depois do palco. — ela disse.

— Então vamos!

 Saímos da mesa e corremos meio curvados, como jogadores de futebol americano. Segurei firme a mão dela para não sermos separados.

— Ei, vocês! — alguém gritou. Lancei um olhar para trás e vi um policial apontando para nós.

— Rhonda, você precisa se salvar! — eu disse, colocando o dinheiro nas mãos dela.

— O quê?

— Corra! Eu fico e... distraio ele!

— Você vai ser preso, York! Cala a boca e vamos!

 O policial estava abrindo caminho até nós.

— Tem muita gente usando a porta, você é pequena, vai conseguir passar. Eu saio pela porta da frente.

— Não vou deixar você aqui.

— Espere dois minutos na moto, se eu não aparecer, vá!

— York...

— Eu me sacrifico por você!

— Não é para tanto, você não vai morrer.

— Espero que não.

— Tem certeza que quer que eu vá?

— Não!

 Mas ela correu do mesmo jeito.

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