Capítulo Sem Nome Dezenove
— A gente jantou no Bonisiol, é um restaurante italiano. Os pais dela pediram um prato sem carne, e eu nem tinha falado que era hinduísta. Aposto que Eloise avisou. A gente conversou bastante, ela fez perguntas sobre mim, riu das minhas piadas e pareceu não se importar com meu fascínio por Harry Potter. Depois do jantar escapamos dos pais dela e encontramos um prédio com escada de incêndio. Subimos até o terraço e ficamos assistindo as luzes da Time Square.
Ravi continuou contando sua maravilhosa noite por cerca de uma hora. Como eu ainda estava no castigo de cárcere privado só podíamos nos ver no Eureka, então ele precisou soltar toda a história de uma vez. Aquele foi o assunto predominante durante todo o dia. Eu estava feliz por ele, mas enquanto voltávamos para casa e ele descrevia o vestido da namorada me deu uma vontade absurda de forrar a boca dele com grama.
Por sorte, ao pararmos em frente minha casa, meus pais estavam descendo do carro. Eu quase ergui as mãos para os céus e agradeci ao Pai.
— Oi, filho. — minha mãe passou a mão em meu cabelo e me deu um beijo na testa.
— Ravi e eu vamos jogar videogame. — falei, torcendo para que eles não concordassem. Eu adorava o indiano, mas se ouvisse mais algum detalhe sobre Eloise Murphy iria bater minha cabeça na parede.
— Você ainda está de castigo, York. — meu pai lembrou, de cara feia. Ainda não havia me perdoado.
— Sinto muito, Ravi. — mamãe falou.
— Tudo bem, eu gosto de fazer companhia para minha avó. — ele respondeu com um ar de bom menino.
Minha mãe se maravilhou.
— Que amor. Espero que cuide de mim assim quando eu for velhinha. — avisou, olhando para mim.
— Até amanhã, então. — Ravi se despediu e foi embora.
— Posso assistir a ESPN? — perguntei me virando para meus carcereiros.
— Não. — papai foi curto e firme, como sempre.
Entramos em casa. Eu sabia que eles só estavam ali para tomar uma rápida ducha e trocarem de roupa, depois voltariam para o hospital. Então, seria só a TV, salgadinhos e eu.
— Você precisa pegar sua irmã na aula de balé em meia hora. — mamãe avisou, já tirando os sapatos. O tempo deles era tão curto que precisavam começar a tirar a roupa na entrada. Eles deviam chegar ao quarto já pelados, mas eu nunca os segui para ter certeza.
— E precisa fazer que ela tome banho e se vista. Prepare um lanche, não muito pesado para não tirar o apetite do jantar. — papai completou, tirando o relógio e desfazendo o nó da gravata.
— Sim, pai.
— Ajude ela com a lição, sim? Seria ótimo se brincasse com ela também. Ah, e nada de ir pra cama muito tarde. Vocês dois. — mamãe continuou com as instruções pelas escadas.
Ok, aquilo tudo já era demais.
— Mas vocês sempre chamam uma babá quando têm dois turnos!
— Hoje você é a babá, amigão — meu pai falou desabotoando a camisa. — Hoje e enquanto durar o castigo.
Eu até tentei seguir as ordens dos meus pais, mas uma criança de seis anos tem mais personalidade e força do que um buldogue gigante. A única coisa que saiu certa foi eu buscá-la no balé.
Eu tentei dar um banho em Molly, mas depois de correr a casa toda e não conseguir segurá-la, desisti. Ela também não quis tirar a roupa de bailarina, então estava a umas quatro horas com o tutu. Preparei um sanduíche, mas Molly preferiu comer o resto da comida italiana que encontrou na geladeira e, no jantar, só tocou na comida para brincar com ela. Ela desenhou em todo o dever de casa e me obrigou a brincar de Reino Encantado das Criaturas Fofas antes de dormir.
— Vamos, York, é a sua vez! — ela gritou do outro lado da mesa.
Eu estava sentado em uma mesinha de chá de brinquedo com o urso Arco-Íris de um lado e o unicórnio Pudim de Nuvem do outro. Meu dedo era grande demais para passar pela alcinha da xícara, então usava as pontinhas dos dedos.
— Eu não vou dizer aquilo.
— Você quer se vestir de Princesa Primavera? Talvez se comporte com mais cortesia! — Molly ameaçou.
— Prefiro continuar sendo o príncipe.
— Então diga a sua fala.
Suspirei.
— Princesa do Reino das Fadas, poderia passar mais um cupcake do amor, por gentileza?
— Com prazer.
Continuamos assim até depois da meia-noite, quando ela deitou a cabeça na mesa e não levantou mais. Eu a peguei no colo, cansado e dolorido por ter ficado tanto tempo em uma cadeira minúscula. Joguei Molly na cama com um pouquinho de força desnecessária, mas quando a cobri coloquei o ursinho ao seu lado. Vendo-a dormir tão pacificamente, pensei que até poderia aceitar o convite para o baile de amanhã.
O dia seguinte começou estranho e terminou mais ainda. Acordei as seis e quarenta e cinco e virei para o outro lado, decidindo dormir por mais meia hora, quando lembrei que o pacote de trinta quilos no andar de cima estava sob minha responsabilidade.
Levantei com sono e irritado, subi as escadas e entrei no quarto da minha irmã. Ela estava escondida nas cobertas como uma ratinha miúda.
— Molly, vamos, hora de levantar. — chacoalhei ela, mas não serviu de nada. — Não me faça usar minha arma secreta. — ameacei. — Molly?
Ela só soltou um resmungo. Esperei dez segundos.
— Foi você quem pediu. — puxei a coberta para deixar o rosto dela livre, inclinei para mais perto, abri a boca e soltei uma baforada em sua cara.
Molly pulou sentada com uma careta.
— Eca! Vou contar pra mamãe! — ela esfregou o rosto como se pudesse se livrar do meu mau-hálito.
Em um dia comum, eu não faria aquilo com a pobre criança, mas Molly me fizera ser um príncipe idiota, tomar chá de mentirinha, falar com bichos de pelúcia e ainda me acordou as três da manhã porque estava com fome por não ter jantado. Ela bem que mereceu.
— Você precisa se trocar. — falei ao notar que ela ainda estava com a roupa do balé. — Veste qualquer coisa que não seja isso aí, e calce os sapatos também. — olhei para ela tentando ver se tinha esquecido de algo. — Acho que é isso. Depois desça para tomar café.
Afinal, não era tão difícil cuidar de uma criança.
Joguei um pouco de cereal e leite em uma tigela para Molly. Servi um pouco para mim também e comecei a mastigar distraidamente.
Aquele seria o dia que começaríamos com o plano. Rhonda encontraria um babaca do time para ser seu novo namorado e anunciaria para todo Eureka. No dia seguinte eu daria um jeito de alguma menina descobrir o suposto caso de Rhonda com um nerd para que a fofoca chegasse até o Terceiro Olho e, no Dia dos Homenageados, descobriríamos quem era o grande fofoqueiro.
Molly entrou na cozinha me tirando de meus pensamentos. Olhei-a de cima a baixo.
— Que roupa é essa? — perguntei.
A menina estava com uma regata amarela berrante com uma pelúcia na frente, um casaco rosa pink de inverno, uma saia de pregas vermelha com bolinhas pretas e meia calça branca. Para completar calçara sandálias com velcro.
— Você disse para eu vestir qualquer coisa menos a roupa de balé.
Minha irmã mais parecia um dos marshmellows coloridos da Willow.
— Essas são as sandálias que o papai comprou quando ficou encarregado dos presentes de Natal. Você odeia elas.
No ano passado, com nossa mãe de cama por uma forte enxaqueca, papai precisou comprar os presentes sozinho. Molly ganhou as sandálias horríveis, mamãe um livro chamado ''A Terapia do Chá'' onde trazia mil receitas para chá (ela nem gosta de chá) e eu uma luneta (para que diabos eu queria uma luneta?).
— Não sei amarrar cadarços, eu tenho seis anos. — disse levantando os ombros.
— E o que aconteceu com seu cabelo? Parece que algum bicho deu a luz aí.
— Você não mandou eu pentear ele, nem escovar os dentes. Ainda tenho meleca nos olhos e estou fedendo.
Ah, é, eu tinha esquecido de alguns detalhes.
— Vem aqui. — peguei ela pela cintura e meio que enfiei a cabeça dela embaixo da torneira.
Em trinta minutos eu tinha conseguido colocar uma roupa descente em Molly, penteado seu cabelo (na verdade eu puxei para trás, depois para cima e prendi com um elástico) amarrei seus cadarços, a fiz comer e a levei para a escola.
Cheguei no Eureka atrasado. A srt. Davis acreditou quando eu disse que precisei cuidar da minha irmãzinha. Aquilo me surpreendeu, mas talvez a roupa amassada e suja de marcas de dedo, o cabelo bagunçado e a cara de alguém que acordou as três da manhã para preparar o jantar e voltou a acordar três horas depois lhe convenceram que era verdade.
Na hora do almoço, enquanto me aproximava do meu lugar de sempre, precisei parar para ter certeza que a mesa era aquela. Por dois anos inteiros sempre haviam duas pessoas me esperando lá, mas naquele dia estranho haviam três: Ravi, Willow e Eloise.
— Você já perdeu metade do almoço. — Willow comentou quando sentei ao lado dela.
— Precisei terminar uns exercícios para a próxima aula.
— Oi, York. — a menina ao lado de Ravi cumprimentou.
— Oi, Eloise. Bom ver você aqui. — soou estranho, pois não estava acostumado com aquela situação.
— Ravi insistiu que eu sentasse com vocês hoje.
Percebi que não fazia a menor ideia de onde ela sentava antes. Meu celular vibrou com uma mensagem. Eu a abri.
Eles ficam colocando comida na boca um do outro. Ravi sempre erra o alvo porque fica olhando pra ela feito um bobo e ela acaba suja de molho. E Eloise fica chamando ele de Lalal desde que Ravi falou que seu sobrenome era Lal.
Olhei disfarçadamente para Willow, a mensagem era dela. Ela revirou os olhos dramaticamente. Pensei que talvez aquilo fosse um pouco de exagero, mas não levou muito tempo para ver que estava errado.
Cinco minutos antes do sinal tocar para o fim do almoço, Rhonda entrou de mãos dadas com Parker. Como se as mãos não fossem o suficiente, o ar conquistador que rondava Parker deixava claro que estavam juntos. Todos os olhares estavam nos dois. Rhonda parou a caminhada bem no centro do refeitório, virou-se para Parker, ajeitou seu uniforme do time e o beijou como se a boca dele fosse feita de Nutella.
Eu sabia que era encenação, que era parte do plano, mas não consegui olhar por muito tempo. Me concentrei em minha coca como se fosse algo muito interessante.
— Rhonda está com Parker? — Ravi me perguntou, descrente.
— Parece que sim. — eu poderia ter contado que era apenas um plano, mas não estava muito afim de explicar aquilo tudo quando minha visão periférica continuava a captar os dois se agarrando. Apertei meu hambúrguer. E pensar que poderia ser eu ali, ela só precisava ter dito sim.
Como se a apresentação de Rhonda os tivesse contaminado, Ravi e Eloise começaram a se agarrar também. Ravi parecia um peixe a procura de ar na boca da garota.
— Que tal procurarmos um lugar sem adolescentes enfiando a língua na boca uns dos outros? — perguntei para Willow, mas ela ainda estava olhando para Rhonda.
Ela gostava do Parker agora? E eu? Parecia que a paixonite dela havia passado bem rápido.
E para somar mais dez pontos no dia que estava concorrendo como o mais maluco, eu percebi que estava com ciúmes de Willow também.
— Você é amiguinho dela, deve saber de algo.
Willow e eu estávamos voltando para casa no RR. Ravi havia pegado carona com Eloise.
— Eu não sou amiguinho da Rhonda. Nosso relacionamento é meio... profissional.
— É, certo.
Percebi que era o momento perfeito para ver se a história que havia inventado colaria ou não. Se Willow acreditasse, todo mundo também acreditaria.
— Ok, eu sei de uma coisa. Rhonda está com Parker para esconder seu verdadeiro namoro.
— Ela está saindo com dois caras?
— Parece que sim.
— Quem é o outro?
— Não sei, mas eu encontrei uma camiseta do clube de xadrez do Eureka no quarto dela outro dia. Ela me fez jurar que não contaria pra ninguém e disse que arranjaria um jogador idiota para ninguém desconfiar.
Ela parecia chocada.
— Do clube de xadrez? Mas são todos... esquisitos.
— Eu sei. — dei de ombros.
Willow ficou em silêncio e eu tive certeza que ela havia engolido. Sorri satisfeito e relaxei no banco. O próximo passo era espalhar a fofoca.
Ao que parecia, Amy Sophie Rhonda Green não pararia de me surpreender. Eu meio que já estava acostumado de entrar em meu quarto e me deparar com ela ali, como se fosse parte da mobília, e Rhonda pareceu notar isso também e resolveu inovar.
Eu entrei pela porta da frente, larguei a mochila no sofá e quase corri até a cozinha tamanha era minha fome. Quase gritei de susto quando meus olhos captaram seus cachos vermelhos na bancada e minha mãe ao lado.
— Filho, Amy Green veio visitar você. — mamãe disse ao me ver parado ali. Ela cortava tomates e Rhonda separava algumas massas de tacos.
Tratei de desfazer minha surpresa e sentei na banqueta ao lado dela.
— Está ajudando minha mãe a fazer o jantar? — aquilo soava tão estranho que me perguntei se não estaria sonhando.
— Na verdade só estou brincando com as casquinhas dos tacos. — ela ergueu dois, me mostrando.
— Amy é tão amável, York. — minha mãe comentou.
Amy era amável, Rhonda não. E aquela sentada bem ali era Rhonda, eu podia ver.
— Então, o que você veio fazer aqui? — perguntei, desconfiado.
— Falar sobre o teste.
— Vocês já vão fazer provas? — minha mãe estava procurando algo na geladeira.
— Uma pequena mudança na programação escolar, mãe. — pulei para o chão. — Porque não falamos sobre isso em outro lugar?
— Certo. — Rhonda deu um tchauzinho para mamãe e saiu da cozinha.
Eu comecei a segui-la mas fui parado pela mão da minha mãe. Ela apontou para a porta por onde Rhonda havia acabado de sair, depois em direção ao meu quarto e fez o sinal de estou-de-olho-em-vocês.
— Mãe, relaxa. — sussurrei.
Rhonda estava animada em meu quarto, seus olhos verdes brilhavam como o fogo dos deuses.
— Pronto para o Teste Três Ponto Um?
— Você os divide em subgrupos agora?
— Veja só, York, eu tomei o ataque contra você como pessoal, ficaria muito feliz em ser o carrasco do Terceiro Olho, mas vi nisso tudo uma oportunidade melhor. — Rhonda passou os olhos pelo quarto até encontrar o exemplar de O Morro dos Ventos Uivantes da escola e o pegou. — Você estava na pele de Heathcliff quando o Terceiro Olho mexeu com você. O que o Heachcliff fez com todos que foram babacas com ele? Vingança. — a última palavra saiu junto com um sorriso sinistro e um igualmente maligno surgiu no meu rosto.
— Então, eu vou ter as honras? — perguntei.
— Completamente.
O pensamento de ser eu a revelar para todo Eureka a identidade de quem perseguiu, bisbilhotou e divulgou segredos íntimos de quase todo mundo me deu vontade de me jogar em uma dança irlandesa.
Os planos de Rhonda prometiam fechar aquele dia estranho com alguma normalidade, mas como se os deuses não permitissem, Ravi pulou minha janela, parou no meio do quarto e soltou a frase que levou o primeiro lugar de Coisas Estranhas que Aconteceram Hoje.
— Por Brahma, eu vou me casar com a Eloise.
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