A garrafa e o garoto

NOTAS DA AUTORA:

Esse conto foi escrito para o concurso "Mentes Criativas" e o tema proposto foi "Ondas do oceano".

🥇 1° Lugar no concurso "Mentes Criativas".

Quantidade de palavras: 1910

🌊🌊🌊

Eu não gostava do mar. Ao menos não de perto. A impossibilidade de saber o que havia no fundo, o medo de pisar em algo que não devia e o receio que as ondas pudessem me levar para longe eram motivos suficientes para me manter apenas na areia da praia.

De longe, contudo, eu apreciava a vastidão do oceano.

Mas foi no verão de 89, aos meus quatorze anos, que eu me permiti entrar no mar sozinha pela primeira vez. Não porque ansiava sentir a sensação de estar à deriva com a água salgada ao redor do meu corpo, mas sim porque  algo me chamou a atenção.

Eu estava sentada na areia seca e observava o fim de tarde. O céu refletia uma miríade de cores que se transformavam em um alaranjado suave e a praia já estava quase deserta. Os únicos que pareciam ainda relutar em ir embora eram eu, meus pais e meus dois irmãos mais novos que desenterravam conchas na beira da água. Minha família e eu morávamos longe do litoral, mas mantínhamos uma casa de praia na Ilha de Itamaracá, em Pernambuco, a qual era nosso destino certeiro nas férias de verão.

Meu olhar  desviou momentaneamente do céu e pousou no oceano, o que foi tempo suficiente para ver um reflexo diferente que se balançava pouco acima das águas.  Curiosa, me levantei e andei um pouco mais para perto, o suficiente para que a água molhasse meus pés em um vai e vem.

Apertei meus olhos e consegui enxergar, não muitos metros à minha frente, uma garrafa de vidro, tampada com uma rolha. O seu conteúdo, porém, foi o que me chamou a atenção: Um pequeno papel, enrolado com uma corda de sisal fina, descansava dentro do recipiente. A garrafa se movimentava junto com as ondas e eu temia que se distanciasse cada vez mais, tornando-se impossível pegá-la.

Eu ponderei se deveria me arriscar a entrar naquelas águas desconhecidas, mas minha mãe sempre me falava que o meu maior defeito era minha curiosidade desmedida. Ela devia estar certa, porque reuni o máximo de coragem que consegui e forcei meus pés a se movimentarem, dando um passo de cada vez até a água estar na minha cintura.

Durante todo o meu pequeno trajeto eu manti os olhos fixos na garrafa, que para meu infortúnio parecia se afastar cada vez mais. Porém, eu já havia entrado de qualquer maneira, não valia a pena desistir naquele ponto. Além do mais, entrar no mar não havia sido tão horrível, afinal.

Manti os olhos fixos no pedaço de papel e continuei andando, um passo de cada vez. A garrafa, agora, estava próxima, mais um passo e eu a teria em minhas mãos. Me estiquei e senti o vidro resistente tocar a ponta dos meus dedos, dei mais um passo e fechei a mão ao seu redor, mas não antes de pisar em um buraco. A água, que estava um pouco acima dos meus seios, me cobriu completamente e devido a minha falta de habilidade no quesito natação, eu me debati em um esforço débil, sem conseguir voltar à margem. Senti meus longos cabelos encaracolados se enrolarem em meu rosto e me amaldiçoei mentalmente por não os prender antes de entrar no mar.

Naquele momento, eu tinha a certeza que minha curta vida havia chegado ao fim. Eu desisti de tentar me salvar e o ar que eu segurava já não era o suficiente. Eu achei que estava prestes a desmaiar quando senti um par de mãos me puxaram para cima, lutando contra o balanço do mar para me levar de volta a areia. Não demorou muito e finalmente senti meus pés tocarem a areia fofa de novo.

Foi só quando eu já estava fora da água que retornei aos meus sentidos. De início, eu achava que meu pai tinha me salvado, mas me surpreendi quando encontrei um garoto da minha altura, com cabelos dourados e olhos castanhos como os meus, parado na minha frente.

— Por que você entrou no mar se não sabe nadar? — O menino perguntou um pouco irritado, eu estava pronta para lhe agradecer quando percebi que a garrafa não estava em minhas mãos.

Consternada, desviei meus olhos para o mar, em busca do objeto, mas foi em vão, não estava em lugar nenhum. Foi então que percebi que o garoto segurava a garrafa de vidro em suas mãos.

— A garrafa! — Falei em animação e alívio. — Ah, muito obrigada. Obrigada por me salvar e por pegá-la também. — Agradeci e apontei para ela.

O garoto, então, me encarou. Suas sobrancelhas estavam franzidas e seus lábios finos se espremiam em um linha reta, revelando uma irritação a qual eu não conhecia o motivo.

— Você entrou por causa disso? — Ele balançou a garrafa na minha frente e eu assenti. — Por que você entrou para pegar algo que não é seu e quando você não sabe nem se quer nadar? Você é louca?

— Eu não sou louca! — Respondi irritada. Quem ele pensava que era para me acusar de tal forma? E não era como se eu estivesse roubando algo também, eu estava apenas indo buscar algo que tinham jogado no mar. Estava fazendo um favor para a natureza. — E quem disse que não é minha? — Adicionei com o mesmo tom de voz que ele havia me dirigido.

Eu estou dizendo que não é sua! — Ele cruzou os braços e me lançou uma cara feia. — Porque isso é meu!

— Tem seu nome por acaso? — Perguntei audaciosa e ele então abriu a garrafa em um supetão, tirando o papel de dentro e arrancando a corda sem ao menos desatar seu laço. O garoto  estendeu o papel bem na frente do meu rosto e eu o peguei de suas mãos, logo percebendo que o papel, na verdade, se tratava de uma fotografia.

Era o mesmo garoto, com um sorriso aberto, em pé na frente daquele mesmo mar e segurando a garrafa, que ainda estava vazia, em suas mãos. Atrás da foto estava escrito:

"Lucas Borges da Silva
20/01/1989
12 anos
Ilha de Itamaracá, Pernambuco, Brasil"

Respirei fundo, um pouco envergonhada de ter discutido com o verdadeiro dono da garrafa e que havia feito o favor de me salvar, mas não me deixei abater e voltei a encará-lo.

— Se você está tão preocupado com isso por que jogou no mar então? — Perguntei mais irritada do que pretendia.

— Porque era pra alguém encontrar, mas esse alguém não era você. — Ele disse como quem enuncia o óbvio. — Ela iria para bem longe se não fosse por você.

— Ah, sim,  porque eu sou uma vidente e iria adivinhar. — Falei em tom irônico. — Se não quer que alguém a pegue então jogue-a no meio do oceano, assim ninguém vai interromper seus planos!

O menino limitou-se a me olhar com raiva, seu rosto bronzeado atingindo um vermelho vivo.

— Me devolva. — Foi tudo o que ele disse, me estendendo a mão para que eu lhe desse a fotografia.

— Gabi, você está aqui! — Uma voz aliviada falou em minhas costas e me virei para encontrar minha mãe com olhos marejados. — Você não tem noção do quanto eu estava preocupada, como você pode sair sem nos dizer? — Ela reclamou.

Eu não havia percebido o quanto havia me deslocado na busca pela garrafa.

— Desculpe. — Murmurei envergonhada por estar tomando bronca na frente de um desconhecido.

— Vamos, seu pai e os meninos estão nos esperando. — Ela me puxou pela mão, sem nem perceber o garoto que estava na minha frente com a palma estendida, e me arrastou pela praia.

O menino me encarou, esperando que eu dissesse algo e que lhe devolvesse sua fotografia. Ele não disse nada quando me observou ficar cada vez mais distante e eu apenas me virei para lhe mostrar a língua e esbanjar um sorriso devasso em seguida.

Não voltamos para aquela praia no ano seguinte e nem no outro. Problemas financeiros atingiram nossa família e obrigaram meus pais a vender nossa casa de praia. Foi só no verão de 95 que eu retornei, dessa vez como uma mulher nos seus doces vinte anos.

Eu havia aguardado impacientemente pela oportunidade de retornar à praia em que havia conhecido aquele garoto excêntrico e, durante os seis anos que se passaram, eu guardei a fotografia com diligência.

Durante o tempo em que não retornei, eu me perguntei como o garoto estaria. O que ele faria agora com seus dezoito anos? Ele havia enviado outra foto? Será que uma outra pessoa, em outro continente, talvez, tivesse encontrado a garrafa?

Sentei-me na areia branca, em um mesmo fim de tarde de uma sexta-feira e busquei pela fotografia na bolsa que estava carregando. Eu a observei com cuidado, a caligrafia ainda impecável me lembrando mais uma vez daquele dia e da nossa discussão boba. Meus pensamentos foram interrompidos quando senti uma sombra no meu corpo e olhei para cima para encontrar um par de olhos conhecidos.

— Você ainda guardou isso mesmo após todos esse anos, Gabi? — O garoto, que agora já era muito mais alto e tinha alguns pelos no rosto, perguntou. Sua voz também estava mais grave e seu torso não era mais de uma criança, e sim de um homem, com um abdômen definido exposto.

— Me surpreende que ainda lembre de mim, Lucas. — Respondi em um tom amigável e não consegui conter a risada que se formava em minha garganta. Só havíamos nos visto uma vez, como ele conseguia se lembrar de mim? Como podíamos nos tratar como velhos amigos quando, na verdade, nossa rápida conversa foi uma discussão?

— Eu que me surpreendo por você ainda tê-la. — Ele falou com os olhos fixos na foto e se sentou ao meu lado.

— Como eu poderia jogar fora se eu quase morri afogada para consegui-la? — Rebati e ele riu.

— Acho que você tem razão. Por que decidiu voltar? Finalmente veio me devolver a foto?

— Nos seus sonhos. — Brinquei. — Você jogou a garrafa de novo? Com outra fotografia, no caso. — Perguntei ignorando sua pergunta prévia deliberadamente.  Eu não queria admitir que, em parte, o motivo por eu ter voltado havia sido ele.

— Nah, eu fiquei muito frustrado com a nossa discussão e acabei desistindo. — Ele sorriu com a memória e eu sorri de volta. Ele tinha o mesmo sorriso que eu observara diversas vezes durante os seis anos. — Eu achei que não a veria nunca mais. — Ele confessou e me encarou, fazendo minhas bochechas queimarem.

— Sim, eu também. — Falei em um quase sussurro.

— Fico feliz que você tenha voltado.

— Eu também fico.

— Você quer dar uma volta? — Ele perguntou e eu assenti. Lucas se levantou e me ajudou a me colocar de pé em seguida, entrelaçando seus dedos no meu em um ato repentino, o qual eu não reprovei.

Juntos, começamos a andar pela areia macia, algumas vezes molhando os pés na água salgada. Conversamos avidamente sobre tudo e falamos por horas sobre nossa vida durante esses seis anos que se passaram.

O nosso reencontro havia sido repentino e até estranho. Não nos conhecíamos, mas ao mesmo tempo era como se estivéssemos esperando um pelo outro há muito tempo e a conversa foi apenas fácil demais, quase como certa.

Enquanto caminhávamos pela praia e olhávamos as ondas que quebravam na areia, com um sorriso no rosto eu me permiti sentir grata, pela primeira vez, ao mar e imaginei que o verão de 95 seria ainda mais inesquecível.

As ondas do oceano haviam nos juntado, afinal.

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