UM
Um indivíduo precisa saber perambular por todos os campos que vive e precisa saber conversar com todas as pessoas que convive, mas o que acontece quando esse indivíduo presencia algo brutal?
Esse era o conflito que veio em mente, quando, ao andar por uma festa buscando por Mike, entrei bruscamente em um quarto, onde Brie Larsson estava sendo abusada por Lennon, o capitão do meu time de futebol americano escolar.
Meus olhos passearam pelas feições dela, que chorava copiosamente, enquanto Lennon segurava seus braços para trás. Seus cabelos escuros como ônix estavam em desordem, com alguns fios colados no suor da testa, enquanto outros estavam grudados em suas bochechas, encharcadas pelas lágrimas constantes que saíam de seus olhos. Seu desespero era palpável e eu compreendia o motivo, afinal Lennon era maior, mais forte e muito mais obstinado que ela a completar sua missão naquele momento.
Lennon estava por trás de Brie, segurando-a com força, enquanto os dois estavam sem as partes de baixo de suas roupas – e eu nem sequer consegui observar com precisão, por conta das vistas turvas de álcool que me acompanhavam, mas provavelmente ele já estava penetrando-a. Mesmo bêbado, no entanto, olhei em seus olhos com uma fúria, que ao me aproximar, a única atitude de Lennon foi soltá-la e permitir que ela viesse até mim. Assim ela fez, recolhendo sua saia, colocando-a e correndo em minha direção.
Brie e eu não somos amigos. Na realidade, o máximo de contato que tive com ela foi em minhas aulas de mandarim, já que ela era a única que gostava verdadeiramente e estava disposta a aprender, enquanto eu sempre tive um ímpeto interesse pelo idioma. Praticávamos juntos e naquele dia eu fui com ela no uber, deixá-la em casa – pois jamais colocaria uma moça em uma situação tão traumatizante em um carro, sozinha, com um homem que ela não conhecia. Seus olhos escuros como a noite pareciam tristes, Brie parecia estar desassociada durante todo o trajeto.
Ao retornar para a festa, fui informado que Lennon já tinha ido embora. No quarto ao lado, encontrei Mike, dormindo embrulhado em um cobertor no chão. Ele era assim: geralmente chegava cedo nas festas, bebia e quando dava por volta das 21h da noite, ia dormir em um quarto qualquer para me esperar. Sempre chegávamos e íamos embora juntos da festa, independente do horário.
O acordei e depois disso fomos embora, por certa das 2h da madrugada daquele dia. Como ele ainda estava arrumando sua moto, Mike sempre precisava da minha carona – mas ele sempre pilotava, porque geralmente eu estava relativamente bêbado demais para nos levar em segurança. Antes de irmos para a minha casa, ele parou em um fastfood e pediu alguns lanches. Ali permanecemos, por um tempo.
– Come devagar, mané. – ele me pede e eu sorrio, negando com a cabeça. Mike estava com seus dreads presos para trás e voltou a se concentrar em seu sanduíche depois disso. – Demorou pra me chamar hoje, pensei que fosse virar lá.
– Sabe que eu evito dormir fora de casa. – respondo. – Meu irmão não pode acordar e não me achar, ele fica preocupado. – observo ele pegando mais um sanduíche. – Cuidado pra não se abarrotar de comida.
– Um negão desse aqui precisa de muito mais que um sanduíche pra ficar de pé. – é o que ele responde, sorrindo sarcasticamente pra mim e eu levanto minhas sobrancelhas, dando mais uma mordida em meu lanche.
– Demorei, porque tive um imprevisto. – explico, enquanto mastigo.
– Alguém brigou? – questiona.
– Não é nada disso, mas não posso te contar ainda. – Mike estranha aquela conversa, não tínhamos segredos em nossa amizade.
Pra mim, no entanto, não se tratava de nós. Esse assunto certamente seria delicado para Brie durante toda a sua vida, então não tinha motivos para que eu tornasse tudo ainda mais traumático – embora o olhar dela, no momento em que tudo aconteceu, me dissesse que não tinha mais volta.
– O que não pode é se aproximar tanto do seu aniversário de 18 anos sem um plano, o que vamos fazer? – dou de ombros. Ainda faltavam meses significativos para meu aniversário.
– Ainda não decidi. Certamente o meu pai vai me dar o que sempre dá: um ano de treino grátis e um pacote com dinheiro. E aí o dinheiro eu vou te dar pra você mexer na sua moto. – a última parte falamos juntos e sorrimos.
– Pelo menos ele dá esse passe pra você e pra um acompanhante, ou seja... eu também não pago academia desde que começou com isso e agora vou poder finalizar a minha motoca. – Mike sorri e eu também. – Meu avô perguntou quando vai na oficina. Ele disse que é sempre bem-vindo e sente sua falta.
Desde que meu avô faleceu, eu nunca mais vi o de Mike. Eles eram melhores amigos e é por esse motivo que Mike e eu somos tão próximos – mas meu avô não falava sobre ser ex piloto com ninguém, pra mim era como se ele não aceitasse muito bem que aquela fase de sua vida acabou.
Para as pessoas ao nosso redor na cidade, meu avô era um mecânico e comerciante de motos, apenas – embora fosse suspeito que tantas pessoas ao redor do mundo inteiro viessem até nós para serem atendidas exclusivamente por ele.
No final das contas, os equipamentos do meu avô foram dados de presente para o de Mike. Já o pai dele tinha um ferro velho, então nossas famílias tinham interesses fortes em comum, mesmo que assuntos mais profundos não fossem tratados abertamente.
– Sinceramente, eu não sei. – meu peito aperta por alguns segundos e ele coloca a mão em meu ombro.
– Meu avô é seu também. – olho em seus olhos. – Se precisar de um abraço de um velhinho, ele sempre vai estar lá pra ti, como está para mim. – confirmo com a cabeça e Mike volta a comer. – Ganhou quanto hoje? – eu era muito bom no baralho, ganhava todas as vezes que apostava e era por esse motivo que ficava até mais tarde nas festas que ia.
– 500 dólares. – respondo e Mike me observa por alguns minutos, sem piscar.
– Eu acho inacreditável como esses caras ricos tem talento pra fazer dinheiro. – caímos na gargalhada.
Depois de algum tempo com Mike, eu já estava melhor e o levei para casa. Após isso fui até o parque, pensar um pouco. Não fazia ideia de qual seria a escolha de Brie e isso me desconcertava. Ela poderia denunciar Lennon, ou morrer engasgada com o que ele fez com ela, mas eu sabia que a pior parte de toda essa situação é ela ter que o ver todos os dias, enquanto as pessoas ao seu redor falam sobre o quanto ele é um homem bom e confiável.
Se eu estava com sentimentos conflitantes, ali, naquele parque vazio, imaginava o quanto ela também estava – eu sempre ia até aquele parque com o meu avô, quando era criança, para pensar. Ele fazia isso, para me mostrar que não éramos o centro do universo. Que por mais que existam pessoas que se importem com a nossa vida, para a maioria esmagadora do planeta a nossa existência era indiferente.
Todos estavam concentrados em suas próprias histórias... por incrível que pareça, no entanto, ali estava eu, concentrado e preocupado com a história de outra pessoa.
Mais tarde fui para casa e acabei dormindo até tarde no dia seguinte, por se tratar de um domingo. Quando acordei, percebi Tyler e Anista dormindo na mesma cama que eu. Provavelmente eles acordaram mais cedo e vieram para a minha cama. Isso era algo comum de acontecer, em especial, porque minha relação com meus irmãos era muito forte.
Levantei e fui até o meu banheiro, tomar um banho para conseguir despertar completamente. Após isso, desci e encontrei minha mãe lendo na sala. Me aproximei e lhe dei um beijo na testa.
– Como foi a festa ontem? Percebi que chegou tarde, o Mike certamente reclamou da sua demora. – ela comenta e eu dou de ombros, enquanto pego algumas coisas na mesa de café, que estava posta.
Ainda estava sem blusa, para aproveitar melhor o clima ameno que Milwaukee oferecia naquele final de manhã.
– Ele dorme me esperando, quando estou jogando. Sabe que é um investimento de tempo. – brinco e ela sorri, acenando positivamente com a cabeça. Meus ganhos com o baralho iam para Mike e Tyler, já que eu abastecia a barriga do meu amigo e comprava livros para o meu irmão.
– Suas aulas e as dos seus irmãos começam amanhã, pode me fazer um favor e conversar com o Tyler? – observo-a.
– O que aconteceu?
– No último dia de aula do ano passado ele fez uma piada desnecessária com uma colega de turma. – não compreendo muito bem o que minha mãe queria dizer. – Ela tem Síndrome de Down, seu irmão chamou ela de retardada. Ela guardou isso, só contou para os pais agora e disse que não quer ir à escola mais, por causa dele. Aparentemente todos riram dela e deram esse "apelido" oficialmente pra ela.
– Era com eles que estava conversando ontem, quando saí? – ela acena positivamente com a cabeça, séria.
Coço minha sobrancelha, pensativo.
– Tentei conversar com ele, mas o Tyler está entrando em uma fase que não me escuta mais, ele só grita. – observo minha mãe. – Por mim teria dado uma mãozada na cara dele, mas isso não é o tipo de coisa que fui ensinada a fazer. Pode conversar com ele?
– Claro, converso sim. Esse é um trabalho nosso, não é? – ela sorri, confirmando com a cabeça.
– Meu menino de ouro. – solto um pequeno sorriso, voltando a comer.
Terminei o meu café da manhã e fui treinar. Tinha muitas coisas na mente para debater comigo mesmo antes do primeiro dia de aula, o que era complexo de fazer – e agora eu tinha um novo assunto para tratar.
Isso, porque criar Tyler não era a coisa mais fácil do planeta. Ele era egocêntrico, tinha uma autoestima muito alta e por mais que ter autoestima seja algo importante, existe medida certa para tudo. Acreditar ser a pessoa mais bonita, inteligente e importante do mundo fazia com que o meu irmão às vezes não enxergasse um palmo diante do rosto – e quando enxergava, ele acreditava que as pessoas diante dele precisavam se curvar. Agora ele ainda era uma criança, seria fácil de contornar, mas se essa ramificação crescesse, ele seria um adulto como nosso pai – e isso não era nada bom.
– Pensei que não fosse treinar hoje. – Mike comenta, se aproximando com um rapaz.
O rapaz era mais baixo que Mike, cabelos escuros, olhos cor castanho claro, tom de pele claro, mas relativamente mais escuro que o meu. O rapaz vestia uma blusa de compressão cinza e shorts acima do joelho de cor preta.
– Pelo visto achou uma nova companhia, não deveria sentir minha falta. – me levanto, cumprimentando Mike. Após isso, estendo a mão para o rapaz. – Jensen.
– Dorian. – é o que ele responde, apertando minha mão.
– Conheci o Dorian hoje, estava perdido. Acabou de chegar na cidade, levou o Jeep dele pra fazer manutenção no meu avô ontem e dormiu lá esperando, acredita? – Mike comenta, rindo e Dorian parece ficar sem graça. – Meu avô fechou a oficina e esqueceu ele lá dentro.
– Como isso é possível? – nós três caímos na gargalhada. – Tem quantos anos? Vai estudar com a gente?
– Tenho 17, acredito que sim. Meus pais tem uma rede de lojas, vão abrir uma aqui e querem que seja a maior de todas, então... acho que vamos ficar algum tempo por aqui. – ele explica.
– Legal. Loja de que? Roupa?
– Joias. – ele responde, me observando fixamente e Mike e eu ficamos surpresos.
– Realmente interessante. Gosta de futebol americano? Nossa escola tem um time, você parece ter porte pra isso... – comento e Mike confirma com a cabeça.
– É, acho que sim. Talvez eu tente entrar, quem sabe... – é o que ele responde e Mike sorri.
– Vai fazer um sucesso danado com as meninas, Dorian. – Mike brinca, colocando a mão no ombro dele, que sorri e me observa em seguida.
Treinamos juntos naquela manhã de domingo. Na realidade passamos o dia juntos. Treinamos, almoçamos, depois disso combinamos de nos encontrar na casa de Cooper Jones, o dono da festa do dia anterior. Ele tinha comentado sobre querer fazer uma "festa" mais reservada, apenas para os mais próximos naquela tarde.
Quando chegamos, Mike saiu para apresentar Dorian para todas as pessoas que conhecia e eu fui até a mesa onde os rapazes estavam jogando baralho.
– Qual é a do cara? – Cooper questiona, assim que me sento com ele e os outros rapazes.
– Recém chegado, solitário, acho que vai ser uma boa se ele entrar pro time. Porte físico bom, treina pesado na academia, conseguiu acompanhar meu ritmo com o Mike. – explico, pegando minhas cartas.
– Isso é bom...
– Cooper, fala aí pro Jensen que hoje quase que a gente não tem pós.
– O que aconteceu? – pergunto.
– A irmã da minha mãe veio aqui, dizendo que a filha, a Beth, lembra? – confirmo com a cabeça. – Estava grávida de um jogador. A mulher é doente, a menina ainda é uma criança...
– E aí? – pergunto.
– Ela gritou, esperneou, minha mãe quase me diz pra cancelar nosso rolê de hoje, por causa disso. Eu tenho muita pena dessa menina, porque ela vai ficar com a cabeça deturpada quando ficar mais velha. A mãe dela é muito narcisista. – ele explica e eu fico surpreso por isso. Não conhecia Beth, mas esperava que pelo menos quando ela ficasse mais velha pudesse superar esses momentos de alienação de sua mãe.
Jogamos a tarde inteira praticamente. Quando encontrei Mike e Dorian, no final daquela tarde, eles estavam encostados um no outro, dormindo sentados, bêbados. Observei aquela cena por alguns segundos, tirei foto e respirei fundo, sorrindo sem acreditar. Chamei um uber e levei Mike nas costas, enquanto Cooper me ajudou carregando Dorian. Me despedi de todos e fomos embora.
Deixei os dois na casa de Mike, já que o Jeep de Dorian estava lá. Fui embora pouco tempo depois, voltando na festa para pegar minha moto e quando cheguei em casa, meu irmão estava lendo no meu quarto.
– Demorou hoje. – é o que Tyler comenta. – Pra quem são as flores? – ele observa algumas rosas postas em um jarro, em cima da minha escrivaninha e eu arranco minha blusa, indo até o banheiro, lavar meu rosto, antes de respondê-lo.
– Pra você. – meu irmão estranha. – Vai entregar para a Catarina, a menina da sua escola que fez piada antes das férias.
– Que isso, Jensen, ela não é importante, é só uma ret... – antes que ele termine eu nego com a cabeça, passando os dedos nas sobrancelhas, estressado, e ele para de falar.
– Você vai pedir desculpas pra ela. – reforço.
– Não vou, foi engraçado, todo mundo gostou. E nem foi tão importante assim, certamente ela já esqueceu. – ele rebate e eu fico verdadeiramente irritado, mas mantenho minha postura séria.
– Você vai e vou te dizer porque.
– Diga – ele me desafia.
– Em primeiro, ela lembra muito bem. Tão bem, que sequer quer voltar para a escola agora depois das férias. E em segundo, não criei um covarde.
– Mas o papai... – antes que ele termine eu levanto meu dedo indicador, ordenando silenciosamente que ele fique em silêncio. Tyler obedece.
– O papai não é quem te cria, o pai não é homem pra você se espelhar, eu sou. E eu não crio covarde, me ouviu? – olho profundamente nos olhos de Tyler. – Você vai pedir desculpa. Você vai levar essas rosas pra ela amanhã e pedir profundas desculpas por ter sido um babaca, porque é isso que você foi, é isso que está sendo. Ela não é retardada, ela tem Síndrome de Down, é um ser humano como qualquer outro, merece respeito e você vai começar a trabalhar hoje o homem que vai se tornar amanhã. Agora sai da porra da minha cama e vai pensar no que anda fazendo.
– Jensen...
– Sai. – ele hesita por alguns segundos, olhando em meus olhos como se quisesse se explicar, mas aquilo não tinha explicação. – Sai. – repito e Tyler confirma com a cabeça, se levantando da minha cama. Ele pega o jarro de rosas do meu quarto e sai em seguida.
Me sentei na cadeira da minha escrivaninha e apoiei o cotovelo na mesa. Ali permaneci por algum tempo, até me recompor do nervosismo que sentia. Decidi aproveitar para tirar todos os acolchoados dos meus capacetes, para lavá-los. Deixei apenas um, o que usaria no dia seguinte.
Enquanto fazia isso, meu pai entrou no meu quarto, me observando. Seus cabelos começaram a ficar grisalhos recentemente, contrastando levemente com seu tom de pele clara e olhos cor castanho claro. Meu pai era considerado alto, mas não tanto. Ele certamente era bem menor que eu e meu irmão já estava maior que ele também. Não sabia exatamente de quem tínhamos puxado todo esse tamanho.
– Como foi a festa? – é o que ele me pergunta e eu o observo.
De seu corpo, exalava um perfume que não era da minha mãe. Eles já não compartilhavam o mesmo quarto e eu tinha uma severa impressão que ele apenas mantinha aquele casamento, para mantê-la presa. Pra ele era uma sensação indescritivelmente boa ter em posse um pássaro tão lindo quanto ela.
– Mesma coisa de todas. Joguei, ganhei, voltei. – é o que respondo.
– Quando se interessar, quero que venha comigo em alguns jantares de negociação. Em breve as concessionárias serão suas, precisa se situar melhor. – meu avô tinha, além da oficina em que ele trabalhava pessoalmente, uma rede de concessionárias de moto pelo país que levavam seu nome.
Ele tinha, inicialmente, entregue para a minha mãe, já que ele gostava mesmo era de sujar a mão e trabalhar de verdade. Acontece que minha mãe, por conta da dependência emocional em meu pai – acredito eu – tinha deixado com ele. Meu avô aceitou, pelo meu pai ter experiência com os negócios e confiou que realmente seria a melhor decisão...
No final das contas eu não sabia se algum dia ela teria força de tomar a empresa para si novamente, mas torcia para isso.
– Não tenho interesse no tipo de jantar que gosta de frequentar, Davis. – é o que respondo. –Quando a verdadeira dona decidir assumir o negócio da família, eu vou.
– Claro. – é a resposta que ele se resume a dar, olhando ao redor e saindo do meu quarto em seguida. Meu pai nunca teve pulso de discutir comigo. Era como se ele tivesse algum tipo de receio sobre mim.
Passo meus olhos pela foto em família que eu mantinha em meu mural. Essa equação parecia errada de alguma forma, como uma mulher tão bonita, com cabelos cor fogo e olhos claros, sueca e bem estabelecida, conseguia se manter com um homem como Davis – que eu somente chamava de "pai" pela burocracia. Aquilo não parecia certo.
No final, após terminar de lavar o acolchoado de uma parte dos meus capacetes, jantei com minha família e fui dormir. Estava verdadeiramente exausto. Apaguei em uma velocidade tão alta que sequer consigo me lembrar quais foram meus passos após escovar meus dentes.
Tomei consciência de um novo dia com o despertador estridente ao meu lado. A cada dia que acordava, em um ciclo repetitivo, me lembro de parecer encarar um limbo cada vez maior, que me puxava ao seu encontro. E esse limbo era ainda mais complexo de lidar, por eu sentir a necessidade de esconder isso das pessoas.
Depois de colocar o terno uniforme da minha escola, desci para tomar café com a minha família. Tyler e Anista já estavam prontos, enquanto meu pai e minha mãe conversavam na cozinha. Cumprimentei Tyler, que assentiu com a cabeça discretamente – provavelmente constrangido pela nossa conversa do dia anterior – e dei um beijo na testa de Anista, que sorriu.
Depois do café, fui para a escola. Lá, encontrei Mike, que estava com Dorian.
– Nosso herói! – Mike brinca e Dorian sorri. – Onde estava, príncipe? Apenas largou suas donzelas e voltou para seu castelo?
– Vocês me irritaram, estavam podres, precisei voltar pra arrumar algumas coisas. Hoje tenho treino. – respondo.
– Claro. Inclusive a sua já está na pista, não quer mais mexer na Ducati, né? – confirmo com a cabeça, enquanto Dorian nos observa, sem entender muito bem. – Jensen corre de moto. Tem certificado de corredor profissional, já passou até temporadas na Espanha correndo, foi o 3° classificado na última Moto3.
– E voltou por quê? – ele pergunta.
– Meu irmão ainda é muito novo pra experimentar minha ausência, eu acho. Consegui alguns prêmios, tenho rotina de treino aqui, consigo equilibrar e ir pra competir, sem precisar ficar pra treinar. Depois dos 20 eu vejo melhor isso, acho. – explico.
– Que depois dos 20 o que, esse ano a gente termina a escola e você entra no Moto3 pra ficar em primeiro, finalmente. O Jensen é modesto, mas ano passado ele correu pra Red Bull Rookies Cup, que é um campeonato da Red Bull, onde todo mundo tem a mesma moto. Esse cara aqui ficou em 2° lugar, o que parece pouco, mas ele destroçou uma galera europeia que tem o rei na barriga. Fala aí... além disso, eu falo pra ele voltar pra Moto3 e buscar o primeiro lugar, porque 3° em uma competição tão grande não chega nem perto da sua capacidade. – Mike comenta.
– O Mike é meu maior fã no momento, como pode ver. – brinco e Dorian sorri.
– Sou mesmo, quero te ver voando, cara. Seus pais tem grana, era o sonho do seu avô, até onde sei, tem talento, nasceu pilotando. É seu legado.
– Meu avô tinha as particularidades dele com o MotoGP. – digo e Dorian parece me estudar por alguns segundos. – Mas não vou me jogar nisso, até meu irmão ficar mais velho... é perigoso, se eu vier a falecer em pista, quero me certificar que ele vai entender e seguir em frente. Acho que uma morte mal digerida pode destruir uma pessoa pra sempre.
– Eu te entendo, também tenho um irmão, o Erick. – Dorian conta e Mike o observa.
– Não falou sobre ele.
– É, ele estuda em colégio interno. Tá na idade de desafiar cada palavra que nossos pais falam, não consegui controlar ele em uma discussão que ele teve em casa e minha mãe decidiu colocar ele lá esse ano. Acho que ele vem quando for entrar em ensino médio, daqui alguns anos. – Dorian explica.
– Entendi. Qualquer coisa a gente coloca o Tyler pra amaciar ele. – rimos.
– É, com certeza. – observo Dorian por alguns segundos. Ele pareceu se distanciar um pouco de nós, o que me chamava atenção.
Na aula de mandarim naquele dia, Brie não foi. Assisti a aula com a cabeça em outro lugar, o que eu não esperava que me prejudicasse, já que ainda estávamos na primeira aula do ano. Não imaginava o quanto tudo o que aconteceu se refletiria no meu futuro, mas sabia que seria inevitável.
No treino de futebol americano, minhas expectativas se mostraram reais quando Lennon me viu e começou a andar em minha direção. Ele chegou de peito estufado, como se eu devesse temê-lo, mas aquilo não funcionava comigo.
– Muito acelerado, Lennon. – Mike adverte.
– Vai se foder, neguinho. – é o que ele responde e eu desvio meu olhar de Lennon por alguns segundos. – Você e eu vamos conversar.
– É uma ordem? – pergunto e ele confirma com a cabeça, enquanto eu mantenho meus olhos fixos nos dele. Mike estava de um lado e Dorian do outro, esperando o que sairia daquele momento. – Acho que você vai ter que me arrastar então, porque eu não sou chaveiro de racista, Lennon.
– Meninos... – o treinador Bill se aproxima, colocando cada uma de suas mãos em meus ombros e nos olhos de Lennon. – Não me interessa o que estão fazendo, porque não estão treinando. Saiam daqui! – ordena e todos começam a se dispersar para treinar.
Dorian fez o teste para entrar pro time e era visível o quanto Bill se interessou no rapaz. Ele até mesmo ofereceu ingressos para o jogo, para que Dorian trouxesse seu irmão – segundo Bill, se Dorian era bom, certamente o irmão seria também e quem sabe faria parte da próxima geração de jogadores.
Enquanto a maior parte dos meus colegas de time gostavam de Bill, eu tinha minhas ressalvas com ele. Sempre que o via eu sentia um arrepio estranho, como se meu avô me mandasse ficar de olho nesse cara. Isso era difícil, por ele ser o treinador do time que fazia parte, mas definitivamente não conseguia deixar de lado.
– Parece tenso. – Dorian comenta e eu o observo, enquanto me visto.
– É, ontem instrui meu irmão, só vou saber o resultado quando chegar. Se tudo tiver piorado, a culpa parcial disso é minha. – respondo e ele sorri.
– Entendo. Mesmo com nossos pais, é como se fôssemos o que eles querem ser. E a gente se cobra por isso, porque estamos ajudando a formar seres humanos. – sorrio e ele sorri comigo.
– Não falou tanto assim hoje. – reparo e ele solta um pequeno pigarro, arrumando sua bolsa.
– É, bem, é chato às vezes, porque não sei o que as pessoas esperam que eu diga. Fico apreensivo por não conhecer vocês... é tudo muito novo. – ele explica e eu concordo com a cabeça. – E você não parece curtir muito falar sobre ser piloto...
– Eu gosto do que faço, me orgulho. Mas fora o Mike e meu irmão, as pessoas não parecem se interessar muito, então não tem muito o que dizer.
– Eu quero saber. – Dorian rebate, mantendo seus olhos em minha direção. Seus cílios eram cumpridos e pelo seu rosto ele tinham muitas sardas espalhadas. Sua beleza era insolentemente prazerosa de observar.
– Tem bastante tempo pra descobrir então, fofoqueiro. – brinco, dando um tapinha em sua testa e ele sorri.
– Aguardo ansiosamente, senhor Jensen. – é o que ele responde eu pisco pra ele, saindo do vestiário em seguida.
Confesso que estava evitando de chegar em casa e saber o que se deu da situação envolvendo meu irmão. Por esse motivo, fui lanchar antes de tudo. Peguei comida e fiquei no parque, observando as pessoas viverem. Foi a melhor decisão que tomei, já que, quando voltei para casa, a primeira pessoa que encontrei foi Tyler. Ele não disse nada a primeiro momento, apenas me abraçou.
– Me desculpa por ter feito o que fiz. – suplica, enquanto chora copiosamente. – Nunca mais vou fazer alguém se sentir assim, irmão.
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