SEIS

Naquele sábado passei cerca de 4 horas fazendo manutenções e algumas alterações na minha moto. Era importante, porque mesmo que fossem coisas que sequer necessitassem, naquele momento, de reparos, passar aquele tempo com Wallace me ajudou bastante a colocar a cabeça no lugar. 

Sentia como se viesse reprimindo meus sentimentos negativos para priorizar ser o homem da família. A partir dos 16, recebi um peso nas costas que já era presente, porém era muito menor. Conforme cresci, meus sonhos e anseios se tornaram cargas. 

Cargas essenciais para que eu me tornasse um homem, mas que me forçavam a sempre estar me esforçando para não errar. Acontece que, assim como todos os seres humanos, eu sempre errei muito. Ter um tempo para desabafar de verdade era bom, no final das contas. 

– Precisa encontrar uma forma de colocar Tyler no caminho certo. Ele parece um pouco perdido no mundo e as coisas na cidade já não são mais como eram quando você tinha a idade dele. Uma amizade errada pode estragar esse jovem para sempre. – Wallace comenta, preocupado. Eu sabia que ele a história em que eu estava envolvido já tinha chegado em seus ouvidos. 

– É, eu tento. Mas é difícil, porque ele é muito inteligente, mas não gosta de pensar e a maior questão é que ele precisa estar obstinado pra enxergar e valorizar isso. Acho que quando o pensamento dele mudar, é quando ele vai encontrar sua verdadeira vocação. Mas como faz pra ele ir contra tudo que gosta? A melhor amiga do meu irmão é a preguiça. 

– A vida vai se encarregar disso. – Wallace comenta. – Por bem ou mal, ele vai acabar seguindo o ritmo para o qual foi escolhido. Se torna inevitável, sou do tipo que acredita que nascemos por um motivo e esse motivo cobra juros de quem foge dele.

– E qual acha que foi o meu? 

– Iluminar a vida de quem te conhece. – sorrio, negando com a cabeça. – Não precisamos guardar segredos aqui. Seu avô ficou depressivo quando teve que parar de correr, é por esse motivo que ele não admitia que isso fosse dito para outras pessoas. É por isso que ele não autorizou que eu contasse, sequer, pro meu filho... ver você correr, fez com que ele se visse em pista mais uma vez. – me arrepio. – Ser obcecado por coisas com prazo de validade tem esse problema, mas você iluminou até o último dia dele. E ilumina não só o dele, você é a pedra preciosa de todos nós, como ele dizia, é nosso unicórnio.  

– Valeu, vô. Quando meu irmão nasceu, achei que poderia colocar para fora meus anseios e medos, mas a verdade é que eu apenas me cobro demais. Tento ser o mais reservado possível, para que ele veja que sua muralha segura está aqui, intacta e pronta para ajudá-lo... a verdade, no entanto, é que a cada dia que passa eu sinto que estou ruindo. – respondo, com voz trêmula enquanto ele me observa. – Eu... queria muito que entrasse para a minha equipe. Amanhã a parte espanhola vai estar presente no autódromo e eles ficam comigo até minha ida para o Moto3 ano que vem.

– Eu sou velho, Jensen. 

– É experiente. – corrijo. – Meu avô confiava muito no senhor e mesmo depois desses anos, nunca contou nem mesmo para Mike a verdade sobre ele. Veja bem, preciso de um olhar familiar comigo. Venho ignorando meus sentimentos sobre uma sequência de coisas ruins que aconteceram na minha vida e ao redor dela, buscando incessantemente quem era, mas a realidade é que diversas vezes me flagrei precisando de um abraço e não tive a quem recorrer. – ele coça a cabeça por alguns segundos. – Preciso do senhor. Não o chamaria se não fosse muito importante pra mim. 

– Me deixe pensar sobre isso, tudo bem? – confirmo com a cabeça, voltando a apertar algumas peças da moto. 

Não demorou muito até que Mike chegasse na oficina e começasse a nos ajudar. Ele não fez questionamentos ou encarou a situação como um grande momento e eu agradecia por isso. Tinha me afastado daquele lugar conscientemente, pelas memórias que me trazia e agora tinha voltado pelo mesmo motivo. Tratar isso de forma natural fazia com que eu me sentisse apenas confortável. 

Já o pai de Mike, quando chegou na oficina faltou fazer uma festa. Ele me abraçou de forma firme, disse o quanto estava feliz de me ver naquele lugar, com sua família novamente e contou seus futuros planos. Ao que tudo indicava, ele queria abrir um ferro velho, porque se identificava mais com a questão de lidar com sucata do que com manutenções em geral. No final das contas, toda a família de Mike tinha um indicativo forte para esse lado automobilístico.

Naquele sábado, quando cheguei em casa, brinquei com Tyler e Anista. Era bom passar um tempo com meus irmãos, em especial porque eu poderia viver sem usar totalmente meu cérebro o tempo inteiro. Estar com eles era simples, eles extraiam a versão mais pura de quem eu era e queria ser. Após algumas horas eles dois foram assistir filmes juntos e eu fui tomar banho, para me preparar para dormir. 

No meu celular, no entanto, uma chamada inesperada apareceu e atendi, marcando um encontro com uma figura na qual não tinha visto nas últimas semanas. Me vesti para sair, coloquei minha jaqueta, calça e botas, descendo as escadas de casa em seguida. 

Quando cheguei na sala, percebi que a "noite de maratona de filmes" dos meus irmãos tinha falhado totalmente, porque flagrei-os dormindo pesado, enquanto o filme passava – e eles juraram que conseguiriam maratonar todos os filmes de Scooby-Doo. Tive, então, que pegar cada um deles e colocá-los em suas camas antes de sair. 

Assim que cheguei no fast-food onde tinha marcado, me sentei na primeira mesa que vi, colocando meu capacete em cima da mesa e abrindo minha jaqueta. Ao olhar para cima, Jim estava diante de mim. Ele se apoiou por alguns segundos na cadeira, estendendo a mão pra mim. O observo, sentindo meus olhos marejarem e fico de pé, apertando a mão dele. Jim me puxa, me dando um abraço em seguida. 

– Soube o que aconteceu, mas tive muitas reuniões. Esse período de final de ano e eleições retém muito meu tempo. – ele comenta, chamando o garçom. – Dois dos maiores sanduíches que tiver, dois refrigerantes e fritas grandes, por favor. 

– Não sabia que gostava de comida gordurosa, governador. – o garçom responde. 

– Ainda não voltei a ser o governador. – é o que Jim responde, simpático e eu observo a interação dos dois. 

– Se depender de mim, voltará. Tem meu voto. 

– Muito obrigado. – Jim responde e o rapaz me observa. Forço uma expressão simpática e ele sai em seguida. 

– Às vezes esqueço que a cidade e o estado inteiro te conhece. – comento e Jim dá de ombros. 

– É, eu também. Pelo menos está tarde, não acho que vai encher. – é o que ele responde. – Como você está? Sinto muito, de verdade, pela sua amiga. 

– Sinta fazendo algo. – rebato. – Faz o Lennon pagar. Traz ele de volta, coloca esse bosta na cadeia. Faz cobranças públicas sobre a forma como as escolas lidam com escândalos e bullying virtual. Eu não posso mudar nada, mas você pode. – dou um soco na mesa, que atrai atenção dos atendentes por alguns segundos. Geralmente eu era controlado, mas dessa vez não consegui.

Jim não me responde de primeira. Ele fica em silêncio, pensando um pouco. Desde que descobri ter o sangue dele correndo em minhas veias, entendi o motivo pelo qual para o meu avô, me criar uma pessoa "política" seria tão fácil. Minha genética faria com que eu me tornasse a pessoa mais fácil de lidar do mundo, assim como ele era. 

– Eu estou. A maioridade penal em Milwaukee é de 18 anos, Jensen. Acontece que os pais dele o mandaram para o Mississipi, onde a maioridade é 21 e a única forma de trazê-lo de volta é com autorização. Mas sabe o quão difícil é dialogar com um estado majoritariamente conservador? – encaro Jim. – Emiti pessoalmente uma solicitação para que ele fosse devolvido, mas o estado me respondeu dizendo que por ele ser menor, a decisão dos pais deveria ser considerada. Além disso, pra eles se trata de um "erro adolescente". No geral, por causa da idade dele, o processo corre em segredo de justiça e pela minha proximidade pública com sua família, não posso me envolver. 

– Que merda. Então é isso? Ele fez o que fez, ela morreu e é isso? 

– A acusação vai continuar correndo, mas como não tem possibilidade da realização de um corpo de delito, o que vai acabar sendo tratado no processo é o espalhamento de pornografia infantil que ocorreu. – ele explica. – E eu queria te dizer isso pessoalmente, meu filho. 

– Senhor governador, aqui está o lanche de vocês. – o atendente se aproxima, nos servindo. – Se importa de tirar uma foto comigo? 

– Claro que não. – Jim responde, ficando de pé. 

– Você pode tirar pra gente? – ele me pergunta e eu os observo, ficando de pé. 

Tiro a foto para o rapaz que claramente estava verdadeiramente feliz de ter se encontrado com Jim e depois disso nos sentamos, começando a comer. Eu não estava com fome, mas não queria fazer desfeita com ele, por conta da gentileza. Legalmente Jim não tinha qualquer obrigação comigo, mas ele sempre se esforçava para me ligar, mandar mensagens e conversar comigo – desde antes de me contar suas verdadeiras motivações. 

– Mas posso fazer uma coisa e estou fazendo. – o observo. – Acusando a responsabilidade da sua escola nesse caso. Mais do que isso, implementei sim na minha campanha uma pauta sobre a responsabilidade da escola quando seus alunos estão sob sua autoridade e vigilância. Quando eleito, quero fazer com que essa responsabilidade seja assumida e considerada, sem que nenhuma das partes tenha que afirmar verbalmente ou legalmente, como o estado solicita que seja hoje. Isso precisa ser presumido.

– Isso é bom. Vai garantir que as pessoas parem de me encher o saco. – comento e ele me encara, enquanto mastigo. 

– Seus colegas ainda estão te perseguindo? – sorrio com a boca fechada, tirando meu celular do bolso, desbloqueando, abrindo minha galeria e colocando-o em cima da mesa, para que Jim veja. 

Na tela, diversos prints, notificações e ligações. Todos com mensagens de ódio, ameaças e xingamentos. Jim olhou cada uma das notificações do meu Instagram, lendo as mensagens que eu vinha recebendo sem parar. Ele também entrou no meu Snapchat e abriu algumas mensagens diretas, vendo fotos e vídeos de pessoas aleatórias me mostrando armas, facas e utensílios de tortura. Todos ordenando que eu retirasse minhas acusações contra Lennon. Para as pessoas, eu estava mentindo. 

Pra mim, suportar todas essas mensagens diárias era a pior parte. Esse aperto no peito me forçava a buscar, constantemente, uma fuga para qualquer prazer momentâneo que tivesse – nem que esse prazer fosse, na verdade, ficar treinando o dia inteiro longe do celular. De repente me vi apenas com meus amigos, família e equipe. Mesmo assim, meu sentimento era que estava boiando à deriva. 

Ter trocado de número, privado todas as minhas contas das redes sociais e ter aberto um novo Snapchat não adiantaram. Continuava constantemente sendo colocado contra a parede, levado ao extremo. As pessoas pareciam sentir prazer ao me deixar chateado e essa pressão somada a todas as outras me fazia questionar se eu seria "forte" o suficiente pra lidar com isso. Mesmo que esse fato fosse constantemente esquecido, eu ainda tinha apenas 18 anos. 

– Contou para sua mãe? – ele pergunta e eu nego com a cabeça. 

– Não tenho medo de morrer, Jim. Mas tenho medo de deixar transparecer que não sou de ferro. – respondo, comendo. – A polícia não fala nada sobre o caso, eu saio como o mentiroso que ficou com a namorada do meu "amigo", ele permanece livre e ela, morta. E é isso. Se eu tremer, quer dizer que a narrativa inteira está correta.  

– Eu vou fazer uma nota sobre isso no próximo debate e nas próximas entrevistas. – ele comenta, olhando em meus olhos. – E vou deixar um recado claro para todos esses que acham que podem te dizer o que quiserem. 

– Valeu, pai. – respondo, vendo os olhos dele marejarem. 

Jim volta a comer em seguida, sem dizer mais nada. Terminei de comer e em seguida voltei para casa, dormindo rapidamente. Domingo acordei cedo para ir treinar e quando cheguei, toda a minha equipe estava me aguardando. Esperava treinar melhor que das últimas vezes, já que agora pelo menos tinha colocado para fora parte do que estava sentindo e passando. 

– Bom dia, equipe. – afirmo, me aproximando e eles sorriem. Por conta do escândalo, a vinda de toda a minha equipe espanhola foi remarcada, fazendo com que eles finalmente chegassem ontem. 

– Bom dia só vale pra quem dormiu, Jensen. – Catriel se aproxima, com o celular na mão. – Passei a madrugada vendo seus treinos e é inacreditável sua capacidade de controlar shimadas. Seu avô que te ensinou isso? – sorrio. 

– Tive uma ótima base. – respondo. – Quero vencer, Catriel. Preciso vencer, quero conseguir o primeiro lugar e faço qualquer coisa por isso. 

– Mas é verdade, ele teve uma base muito boa pra ser assim. – ouço Wallace comentar e me viro, olhando-o e sorrindo imediatamente. – Esse menino foi esculpido pelo melhor escultor da história. 

– E você, quem é? – Catriel pergunta e Wallace sorri. 

– Um velho amigo. Vamos trabalhar severamente nesse desenvolvimento. – é o que Wallace responde e eu confirmo com a cabeça. 

Treinei domingo o dia inteiro. Foram incontáveis voltas naquele autódromo, todas cronometradas e com manutenções regulares em minha moto. Acredito ter parado 5 vezes durante o dia inteiro para ir ao banheiro e beber água. Até mesmo quando todos pararam para almoçar, naquele domingo eu não parei.

Isso, porque pela primeira vez em semanas eu estava realmente sentindo como se minha moto respondesse meus comandos. Nas pausas, ter Wallace comigo, me direcionando juntamente com Steve e Catriel foi crucial. Ele realmente tinha um olhar ainda mais afiado, justamente por entender o funcionamento histórico de todas as motos. Tê-lo comigo era como ter uma parte do meu avô novamente. 

Ao fim do dia, senti meu pulso doer levemente, por todo o esforço que fiz. Me despedi e agradeci a toda a minha equipe pela presença, indo para casa em seguida. Dali em diante todos os dias eu teria treino de pelo menos 3h – ou seja, treinaria de domingo a domingo. Pensei que estava tudo certo, já que agora não precisava mais me preocupar com o futebol americano.

Segunda-feira, no entanto, acabei sendo chamado pelo treinador para comparecer ao campo. Eu sabia o que ele queria, mas não daria o prazer a ele de deixar claro isso. 

– Me chamou? – pergunto, entrando na sala de Bill e ele aponta para a cadeira diante de sua mesa. Me sento ali, olhando-o. 

– Eu não fazia ideia. – ele diz e eu mantenho meu olhar fixo nele. 

Nunca confiei muito em Bill. Bem, os caras do time falam que ele é tranquilo, são bem próximos, frequentam sua casa, mas eu não. Acreditava que ele tinha algo no olhar, tanto ele quanto sua esposa, Abigail. O respeitava, por ele ser meu treinador e nunca ter falhado comigo, mas se algo estava acontecendo, eu sabia que era questão de tempo até que eu descobrisse. 

– Tudo bem, olha... vamos deixar algumas coisas claras aqui. Primeiro: eu não gosto de futebol americano. Jogo, porque gosto de ficar próximo dos meus amigos, gosto da energia dessas pessoas durante os jogos, me deixa animado. Nunca, em hipótese alguma, vou passar por cima dos meus princípios, por medo de ser expulso do time. Se acha que pode me controlar com o medo, quero que saiba que não pode. Não tenho medo de nada e o máximo que vou usar isso aqui na minha vida vai ser pra fazer uma faculdade bem longe daqui, e olha que essa possibilidade está casa vez mais distante no momento. 

– Claro que eu não acho que posso te controlar, Jensen. Um rapaz que corre em uma moto a 180 milhas não tem medo de nada. 

– Minha Ducati faz 195 milhas. – corrijo-o e ele sorri. 

– Me desculpe. Eu cometi um erro, Jensen. – me levanto. 

– Dois erros. – fico de pé. – No terceiro, as coisas mudam. Hoje apareço no jogo. – afirmo e ele confirma com a cabeça. 

Se eu pudesse mapear, afirmaria que nesse dia um alvo se formou em minhas costas, enquanto eu caminhava até a saída da sala de Bill. Eu ainda não sabia, mas a partir daquele momento o treinador descobriu de verdade quem eu era e passou a ter a curiosidade de descobrir se eu realmente não tinha medo de nada – e a pior coisa que pode acontecer com quem tem alguma vulnerabilidade, é ser investigado. Bem, é de conhecimento de todos que minha afirmativa não era totalmente verdadeira. Eu tinha sim medo de muitas coisas, a questão é que nenhuma delas me envolvia diretamente. 

Após a morte de Brie, saí das aulas de mandarim. Não tinha estômago para frequentar o local sem ela, e após uma ligação de seus pais me convidando para almoçar com eles, comecei a ir até a casa dela, conviver com seus pais. Eles tinham previsão de voltar para a China antes, mas depois da minha aproximação eles decidiram apenas mudar de cidade. Dessa forma, pelo menos uma vez a cada duas semanas eu ia até Chicago para fazermos alguma coisa juntos.

Meus sentimentos sobre todas essas situações era misto. Tinha raiva por estar passando o que estava passando, enquanto o culpado era progressivamente esquecido. Estava verdadeiramente triste pela morte de Brie, não por ela ser minha amiga – até porque não éramos próximos –, mas sim pelo falecimento injusto de uma pessoa inocente. Em certo momento percebi que caminhava em um limbo, como se tivesse perdido o sentido dentro de mim. Dessa forma, passou a ser mais fácil me agarrar em detalhes luminosos que demonstravam querer minha atenção. Seus pais eram um desses detalhes. 

Era como se eles também precisassem de mim, por isso faziam tanta questão da minha presença. Na próxima semana, por exemplo, tinha previsão de ir para que fizéssemos bolo. Conversávamos sobre tudo, como um afago mútuo no peito de todos que estavam machucados naquele ambiente. Além disso, eles me ajudavam a praticar meu mandarim, o que fazia com que eles se sentirem acolhidos, como me acolheram desde a primeira vez que os vi –  eu confiava neles. Diariamente trocávamos mensagens e vídeos também, como se eu fosse o filho que estava estudando relativamente longe. Queria poder expressar que os apoiaria, independente de tudo. 

Minha rotina com Mike também se intensificou bastante depois que voltei a frequentar a oficina. Mesmo que nos víssemos todos os dias na escola e nos treinos, quando fazíamos manutenção na minha moto era nosso momento de conversar sobre coisas que mais ninguém entenderia. Da mesma forma, passei a conviver bastante com Dorian, depois que começamos a ficar – ainda não tínhamos comentado com ninguém, mas a cada dia nossa relação parecia ficar ainda mais sólida. Embora às vezes fosse cansativo me manter presente na vida de todas as pessoas, eu estava grato por não estar sozinho. 

– O Erick vem passar o Natal com a gente e eu tô surtando. – Dorian conta, sentando-se a mesa com Mike. Estávamos no intervalo. 

– Por quê? – pergunto, guardando o celular para prestar atenção neles. 

– Sempre fico ansioso. Não sei qual vai ser a reação dele comigo ao me encontrar... meu irmão é meio mente fraca, tenho medo que ele sei lá, se envolva com drogas caso se decepcione comigo em algum momento da vida. – ele comenta. 

– Ele te usa como inspiração e você é todo certinho, acho que não vai fazer o feitio dele se envolver com drogas. – Mike expõe seu ponto de vista e Dorian crava seus olhos em mim. 

– É, provavelmente ele vai ficar é ranzinza, isso sim. – completo e nós três começamos a rir. – Mas pode conversar com ele, ameacei o Tyler de morte sobre isso e acho que deu certo. – pisco pra ele, que sorri pra mim.  

Conversamos no intervalo, mas o que me chamou atenção foi ver um garoto, Kyle, do segundo ano, seguindo Bill e a professora Abigail. Era estranha aquela movimentação. Por qual motivo um garoto de 16 anos estaria os seguindo, enquanto deveria estar almoçando? Bem, embora para todos ali ele parecesse invisível, por alguns segundos Kyle me observou, percebendo que eu o fitava. Logo eles viraram em direção ao corredor e sumiram do meu campo de visão. 

Tive treino com o time, depois dos meus horários de aula. Os novos jogos da temporada já vinham se aproximando, então a cada minuto nossa dedicação precisava ficar mais afiada. Minha semana continuou como começou: muito treino em diversos aspectos. Tive treino de futebol, musculação – que precisei intensificar as cargas, para poder aguentar a pressão física que era pilotar todos os dias –, luta e pilotagem. O tempo que me restava, passava com Tyler, Dorian e Mike. 

Tyler, em específico, vinha necessitando de mais atenção. Por esse motivo tentava dar prioridade a ele:

– Tenho medo de ficar sozinho, sabia? – ele pergunta, enquanto montamos um LEGO juntos.  

– Ficar sozinho precisa ser libertador, porque no final você mesmo vai ser sua única companhia. Isso te assusta ou conforta?

– No momento, certamente me assusta. – é o que ele responde. 

– Então já encontramos algo para melhorar em você. O problema não é ficar sozinho, Tyler, é não se reconhecer. – ele me observa.

– Não sei, vejo a mamãe conversando com as amigas sobre os problemas que os filhos se metem e me pergunto se vou fazer isso algum dia. – penso um pouco. 

– Não vai se você não se perder, já te disse isso. Mas tem que evitar se perder de todas as formas. Um dia vai perceber que está chamando atenção, então não pode desenvolver traços narcisistas por isso... depois, vai entender que tem bastante dinheiro, logo precisa compreender a diferença de preço e valor, se não esse dinheiro vai te corromper. Por último, vai compreender que você tem uma estatura e força relativamente maiores que a média das pessoas, então não pode usar para diminuir ninguém, muito pelo contrário. – explico. – Porque se não se ligar, eu te corrijo. – ele sorri.

Mesmo que muitos dos meus defeitos eu tentasse mitigar em meu irmão, sabia que a chance de erro era maior que a de acerto. 

 – Pensei que não quisesse envolver violência nesse processo. – dou de ombros. 

– Não quero, mas se usar quer dizer que falhei no primeiro plano. Esse é o de emergência. – rimos. – Sei que é novo demais pra entender metade das coisas que te falo... mas um dia você terá minha idade e vai se lembrar das nossas conversas. Nesse momento eu torço para que, mesmo que esteja em uma sala onde todos estejam usando drogas, bebendo bastante ou maltratando pessoas, você seja consciente o suficiente para não fazer o mesmo. 

– Assim como espera que eu defenda minha irmã de tudo e todos, como faz comigo? 

– Claro. Já te disse... se algum dia alguém ameaçar colocar a mão em Anista, arranque.  – ele confirma com a cabeça, me ajudando a terminar de montar o LEGO. – Vê, foi difícil? 

– Certamente. – rimos compulsivamente. 

Era um dia de quinta-feira, quando recebi uma mensagem de Dorian. Na sexta não teríamos aula e ele me mandou mensagem informando que seus pais dormiriam fora. Foi um convite relativamente de última hora, mas com um piscar de olhos ali estava eu, em sua porta. Ele me tinha em suas mãos e sabia disso. 

Vínhamos ficando há alguns meses e preciso confessar que era ótimo. Nunca tínhamos conversado sobre tornar isso sério ou contar para alguém – nem mesmo Mike sabia –, em especial, porque ele nunca tinha se assumido para seus pais – eu também não. Essa possibilidade nos apavorava. Mesmo sem assumir, no entanto, não ficávamos com outras pessoas. Eu o respeitava de verdade, não tinha intenção alguma de destruir seu coração. 

Algo nele me intrigava. Esse costume de se interessar pelos meus interesses, de gostar de ouvir eu falar sobre a pilotagem era novo pra mim. Dorian tinha sonhos completamente opostos aos meus, priorizava conforto e segurança, mas mesmo assim queria que eu lhe contasse meus objetivos. Isso me viciava. 

Ouvir e ser ouvido fazia com que meu subconsciente implorasse cada vez por mais dele. Passávamos horas conversando, rindo e brincando. Mesmo assim, no entanto, ambos pareciam caminhar com cuidado por essa mata fechada que chamamos de "sentimento".

Quando ele abriu a porta, me agarrou de imediato. Dorian gostava de cheirar meu pescoço e passar a mão em meu peito por baixo da blusa todas as vezes que eu chegava. Quando isso acontecia, sentia como se ele me necessitasse por perto. Me sentia desejado – e gostava muito disso. 

Acho que esse pode ser o resumo claro sobre meu "relacionamento" com Dorian. Eu me sentia requisitado e desejado – mental e fisicamente. Todas as vezes que eu pisava em sua casa, ele tinha preparado algo especial pra mim e enquanto nos beijávamos era como se eu estivesse conhecendo um pedaço do céu. 

Se pudesse, congelaria meus momentos com ele, para poder revisitá-los quando me sentisse deslocado no mundo – mas da forma mais egoísta do mundo, nunca escrevi uma palavra sobre ele em meus diários. Queria que todos os nossos momentos fossem apenas nossos.

– Qual foi o motivo que fez o Erick surtar? – pergunto, deitado apenas de cueca em sua cama, enquanto Dorian faz massagem pelo meu peito, sentado em minha virilha. 

– Ele sabe que sou gay. Não aprova isso... pra ele, é uma forma de me revoltar contra o que nossos pais acham. Ele surtou comigo, tentei controlá-lo, mas não deu certo e ele surtou com nossos pais quando foram perguntar pra ele o que estava acontecendo. 

– Ele chegou a tentar contar pra eles? 

– Ele não teve coragem, meus pais não fazem ideia. O Erick é difícil, é um menino muito bom, mas o temperamento... quando ele ameaçou nossa mãe, pra ela foi o fim. O limite que precisava ser atingido para que ele fosse jogado em um colégio interno. – ele explica e eu acaricio seus braços. 

– Há algum tempo tive uma conversa com Tyler sobre isso... ele tem um coleguinha que é perseguido pelos amigos. Tive que colocar os pés dele no chão, espero que conforme ele fique mais velho, fique mais consciente. 

– Eu deveria ter preparado o terreno pra isso. Sabe... tabus somos nós que criamos. Quando eles são crianças, são folhas em branco. Eles acham errado ou estranho o que nós dizemos que é. Se eu tivesse moldado o Erick da forma correta... – Dorian respira fundo e eu me levanto ainda com ele por cima de mim, puxando-o e abraçando-o. 

– Você não tem culpa de nada e ainda pode contornar isso. Acontece. Ele tem muito tempo para se adaptar a essa realidade, mas precisa se esforçar e parar de ignorar o que aconteceu.

– E seu irmão? 

– Tem muitas coisas que o Tyler não sabe sobre mim, então fica aí pra vida decidir como vai ser. – respondo e Dorian sorri. 

– Como por exemplo?

– Que meu esporte favorito além do motociclismo é o baseball, que meus filmes favoritos são Clube da Luta, Constantine e Batman - O Cavaleiro das Trevas e O Silêncio dos Inocentes... – Dorian acaricia meu rosto, enquanto falo. – Ele não faz ideia que minhas séries favoritas são Sons Of Anarchy, Sobrenatural e Dexter. E o principal, ele não imagina que eu saio de casa pra beijar a boca de um cara que me viciou nisso. 

– Por que não conta seus gostos a ele? 

– Porque ele precisa descobrir quem é e o que gosta sozinho também. Prefiro tentar esculpir as partes difíceis. O gosto pela leitura, pelas atividades com exercício mental... se eu apresentar essas coisas, tenho certeza que ele vai gostar muito e pode acabar se tornando minha imagem e semelhança. – olho nos olhos de Dorian. – Mas se algum dia ele souber que eu namoro o irmão do cara que talvez ele até estude junto no futuro, ele pira. – rimos. 

– Será que vão? Já pensou, Erick e Tyler na mesma escola... os dois têm rei na barriga, ou eles seriam bem amigos, ou inimigos. Não tem meio termo. – sorrio, concordando com a cabeça. 

– Espero que sejam bem amigos, como somos. – brinco. 

– No nosso caso você quer é me comer, não ser meu amigo. – sorrio. 

– Isso faz parte de ser amigo também. – ele me observa, desconfiado. – Imagina, pra te tratar com carinho na hora de te devorar, preciso ser seu amigo.

– Eu também sou bem apaixonado por você, Jensen. – é o que ele responde e eu o beijo.

– E você, tem algo te perturbando por esses dias? 

– Quero conseguir realizar meu projeto pessoal que consiste em mostrar aos meus pais que sou útil. Assim, quando sair do armário eles vão ponderar meu valor e talvez não me chutem de casa como um verme. – ele comenta e eu mantenho meus olhos em Dorian. 

– Você é inteligente, centrado, carismático e carinhoso. Não gosto que se coloque como um verme nem de brincadeira. 

– Na minha casa, Jensen, se você não dá lucro, é verme. Certa vez o meu pai me bateu, porque brinquei de boneca com uma prima. Eu tinha 6 anos e ela também. Estava na casa dela, não tinha outros brinquedos... e ele me bateu, até ficar roxo. – seus olhos marejam. – Lembro da plateia olhando, vários adultos e ninguém fez nada. Ele disse que se eu fizesse isso de novo, nem acordaria no dia seguinte, porque pra ele eu não tinha valor, então nem tinha motivo para permanecer vivo. Esse tipo de coisa demarca alguém pro resto da vida. 

– Você tem muito valor. – respondo, segurando o rosto de Dorian, que me olha nos olhos. Seus olhos cor castanho claro estavam levemente vermelhos, com gotas de lágrimas presas em alguns cílios. – Não é descartável, tem um caráter imenso, é a pessoa mais prestativa que conheço. Se for um desejo genuíno batalhar pelos seus pais, respeito. Mas não precisa disso pra provar nada. 

– No final das contas eu só quero me sentir amado. Não espero exclusividade, quem sou eu para esperar isso de alguém... mas espero sinceridade. – ele fala, enquanto as lágrimas descem de seus olhos e eu o abraço com força. Era inacreditável como Dorian não fazia ideia do quanto era especial. 

Quando o soltei, ele passeou com a ponta dos dedos pelo meu rosto, como se me lesse com eles. A forma hipnotizante como me estudou fez com que meu coração batesse mais rápido e percebendo isso, Dorian me beijou. 

Nos beijamos intensamente por alguns segundos e logo ele se deitou na cama, me puxando para si. Lentamente, enquanto eu passeava minha boca pelo seu pescoço e peito, Dorian tirou sua cueca, o que chamou minha atenção. Sem dizer nada, apenas acenou timidamente com a cabeça. Tirei a minha em seguida. 

Seu corpo era macio, como tocar algodão Pima. Minhas mãos percorriam sua pele com uma sutil mistura de desejo e delicadeza. Nosso beijo se intensificava cada vez mais e com o passar do tempo, até mesmo sua respiração me fazia arrepiar. De repente, minha mente se desligou por completo. Dorian agora estava de frente para o meu instinto carnal, que além de querê-lo há bastante tempo, não tinha previsão de se sentir satisfeito. 

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