PARTE 3 / CAPÍTULO 5: A SANTA COMPANHIA DE TAYY

Barna de Lorderak retornou de Forte Dragoi logo antes do raiar do sol, com uma nuvem de poeira espessa marcando o galope de seu corcel cinza. À medida que o mercenário se aproximava, os guardas que Katia havia deixado de guarda despertaram o acampamento improvisado com o badalar de uma sineta e gritos de ordem.

Ion acordou de mal gosto, sentindo como se precisasse dormir por mais três dias, enquanto Katia pulou de seus lençóis como se não tivesse fechado os olhos sequer por um minuto. Barna ignorou a presença do abade e guiou seu cavalo a passo curto diretamente para a Dama de Altorrio, com quem conversou por alguns poucos minutos antes de voltar à trilha que levava ao castelo.

Katia retornou ao viajante com o cenho franzido, as notícias que Barna trouxera obviamente não eram o que esperava.

– O que houve? – perguntou, coçando os olhos, enquanto a observava recolher os seus lençóis.

– Arrume suas coisas, estamos indo.

Ion dormira de armadura, apenas aguardando o retorno do emissário, assim como Katia e todos que se voluntariaram a vestir os itens que haviam sobrado do arsenal da Confraria. O encontro com a Companhia de Ibrahim possuía grandes chances de acabar em tumulto e um exército equipado, por menor que fosse, aumentava as chances de um diálogo pacífico. Ao contrário de Katia, Mihai e a maior parte do vilarejo, no entanto, Ion estava confiante no sucesso do plano.

"Eles não conhecem o poder do ouro."

Alexandre já havia excluído Ibrahim do cerco a Altorrio, os mercenários já haviam sido pagos e não possuíam mais qualquer ligação, militar ou honorífica, com Razguvda e seus aliados. Embora ainda ocupassem Forte Dragoi, para todos os propósitos a companhia estava sem contrato, e companhias sem contrato costumavam aceitar propostas de emprego.

O viajante passou a mão em sua bolsa e sentiu a joia de Petru com as pontas de seus dedos.

"Ainda mais quando a oferta é tão tentadora."

– Eles aceitaram conversar – falou Katia a ele, enquanto punham suas roupas de cama sobre a traseira de uma carroça. – Mas exigiram a presença do "demônio do rio", você sabe do que se trata?

– Carmine – respondeu Ion de pronto. – Esse era o nome dela quando chegou ao vilarejo.

– Quem é aquela moça, Ion? Por que ela é popular a ponto de não-juramentados pedirem para que ela compareça a reuniões de negócios?

– É... complicado. Acho que ninguém sabe, não realmente. Os monges a acharam desmaiada perto no rio há alguns meses, alguns a viram cair em uma bola de fogo, falavam todo o tipo de coisas naquela época. Desde então, eu diria que ela se enturmou muito bem.

– Bem demais – respondeu ela, lançando-lhe um olhar inquisidor.

– Que foi?

– Eu vi você olhando as pernas dela.

Ion bufou, em sinal de escárnio.

– Contigo do meu lado? Nem em sonho.

– Não minta. Alguém com menos classe do que eu lhe socaria a cara agora.

– Por favor, não se contenha – brincou, pegando-a pela cintura. – E, em minha defesa, irmão Mihai também pareceu bastante distraído enquanto falava com você. Me vê reclamando?

Ela gargalhou com gosto.

– Minha nossa, você viu a cara dele!? Se eu soubesse que a reação seria aquela, teria desabotoado um pouco mais a blusa.

– Mas aí quem não ia conseguir se concentrar era eu.

Katia deu uma risadela e o beijou, aproveitando a falta de olhares curiosos. O viajante se perguntou se algum dia ia ter sentido o suficiente de seus lábios, ou amar outra pessoa tão pura e verdadeiramente quanto a amava.

– Não podemos demorar muito – sussurrou ela ao seu ouvido. – Os outros virão procurar por mim.

Não tomaram muito mais tempo organizando os seus pertences, Katia trouxera apenas algumas mudas de roupa consigo de Razguvda, enquanto Ion amarrara em um pedaço de tecido as vestes que ganhara de Mihai, caso precisasse vestir algo mais leve, e trazia em sua bolsa algumas maçãs e um frasco de água fresca, além, é claro, da joia de Petru. Não precisariam de muito mais para a viagem.

Ao retornarem ao átrio do templo, não demorou mais do que trinta minutos para o resto da comitiva ficar pronta, após o que Mihai bradou em sua voz estridente a ordem de marcha e, em poucos segundos, as sessentas e três pessoas que compunham os antigos habitantes de Anghila e Nentidava, assim como todo o restante da Confraria de Dórdolo, puseram-se em marcha em direção a Forte Dragoi, deixando para trás a abadia e o vilarejo abandonados ao tempo.

Barna seguiu na frente, ditando o ritmo da caminhada em seu cavalo, sucedido logo atrás por Ion, guiando a mula responsável por puxar a carroça com os mantimentos recuperados da cozinha e alguns dos pertences dos monges e funcionários da abadia. Ao seu lado caminhavam Katia, Carmine e Mihai, seguidos atrás pelos executivos da Confraria, Orson e Gilliam, este levando Nicoleta mais uma vez sobre seus ombros. Atrás da vanguarda caminhavam os demais, camponeses, mercenários e membros do clero misturados em um rebanho cansado e maltrapilho, em sua maior parte descalço e desprovido de agasalho.

Em condições normais, uma viagem em passo ligeiro até Forte Dragoi não costumava demorar mais do que uma hora. A neve e a fadiga, no entanto, forçaram a caravana a reduzir a velocidade de marcha a um ritmo vagaroso e agonizante. Demoraram duas horas para chegar sequer aos portões do burgo, que, iluminado pelo sol que já despontara, aparentava estar desguarnecido. Não havia viva alma nas ameias da muralha ou no interior da alfândega, a neve se acumulara até quase a metade da altura do muro e afiados sincelos pendiam da parte superior dos portões gradeados.

– Ninguém vem aqui faz um tempo – comentou Ion a Katia, enquanto se aproximava da grade metálica. Passou os olhos pelo interior do muro e não viu sequer sinal de movimento. – Barna, tem certeza que estavam esperando a gente?

– Absoluta – grunhiu o mercenário, saltando de sua montaria. – EI, TEM ALGUÉM AÍ!?

Foram necessários vários minutos antes que um homem de aparência sonolenta, e, espantosamente, de peito nu, aparecesse por sobre as ameias, com um sorriso no rosto negro como ébano. O homem era musculoso e barbado, de nariz largo e sobrancelhas peludas; na orelha esquerda trazia uma pesada argola dourada e a tatuagem de uma lua crescente em um dos ombros.

"Esse homem era um escravo." – pensou Ion, lembrando como alguns senhores do médio oriente costumavam marcar aqueles que consideravam propriedade sua.

– Heh, trouxeram todo mundo? – ele perguntou, levando uma garrafa à boca. – Não sabia que tinham sobrado tantos.

O homem tinha traços estrangeiros, mas falava o idioma comum com perfeição. Ion se perguntou se ele tinha crescido na região, e imaginou quantos de seus companheiros iriam compreender o que tinham para falar.

– Nós viemos discutir o combinado – gritou Katia para cima, ignorando a provocação. – Abra o portão para que possamos falar com seu chefe.

– Onde está o demônio?

Carmine se adiantou e abriu os braços. Ela era a integrante mais alta de todos os presentes, difícil não tê-la notado entre a multidão de camponeses exaustos e famintos. Aquele comentário deixou óbvio que ninguém na Companhia de Ibrahim tinha qualquer ideia de como ela deveria parecer.

Ion passou instintivamente a mão na adaga que Henri havia lhe dado.

"Eu estava errado, isso pode acabar mal."

– Você é só uma vadia qualquer – rosnou ele. – Que porra é essa, alguma brincadeira?

Meu nome é Carmine, capitã da Confraria de Dórdolo – a voz dela reverberava com intensidade pelos muros de pedra crua. – Os aldeões me chamavam de "demônio do Rio Negro", pois fui achada em sua orla.

– Carmine? Aquele que derrotou 'O Incólume' em combate singular? Você!?

Ele gargalhou até ficar sem ar, como se alguém invisível tivesse começado a cutucá-lo nas costelas e não parado mais. Ele persistiu por um tempo considerável em tal troça, apesar da clara irritação por parte de Carmine, a ponto de inflamar o orgulho de outros membros da Confraria.

– Você teria achado muito mais engraçado quando ele mijou nas calças – Gilliam o interrompeu, fazendo uma concha com as mãos à frente da boca. – Acho que ele não contou essa parte. Ou quando ele fugiu da luta, se cagando de medo!

– Ele falou que não perdeu uma, mas duas vezes? – completou Orson, com um ronco de chacota. – Precisei me juntar a esse cara aqui para que nós três conseguíssemos dominar Carmine, ela é forte como a porra de um touro e rápida como... – ele coçou a cabeça, procurando algum tipo de comparação. – Ela é rápida pra caralho. Não há homem capaz de derrotá-la em combate singular, você não seria.

O homem sorriu por baixo da barba e lambeu os lábios, revelando o brilho de um dente de ouro.

– Não há homem, hm? Veremos.

Ele então se voltou para trás e gritou ordens em seu próprio idioma. Alguns segundos se passaram antes que o portão começasse a se erguer lentamente, sob rangidos de metal e trincar de gelo. Quando o caminho se desobstruiu completamente, Barna reiniciou a marcha e a comitiva adentrou as cercanias de Forte Dragoi.

– Eles pilharam até a última gota – comentou Katia, mordendo os lábios, enquanto faziam a caminhada até a muralha interna do castelo.

– É o que eles fazem...

Ion observou a desolação a que a Companhia de Ibrahim havia reduzido o outrora próspero burgo de Dimitrier. Janelas e portas haviam sido arrancadas das dobradiças, enquanto corpos de homens, mulheres e animais jaziam aos ratos em becos escuros e malcheirosos. O viajante notou, com repulsa, que vários cadáveres femininos não vestiam qualquer roupa, o que falava muito sobre o tipo de ataque perpetrado pelos homens de Ibrahim.

O grupo passou por uma ruela onde presenciaram dois cães lutando por uma perna desmembrada. Barna afugentou os animais, mas não antes de Katia se encolher sobre o próprio corpo, tremendo em desespero. Ion se aproximou para acalentá-la e ela afundou o rosto em seu peito, soluçante.

– Meu Deus, estamos fazendo a coisa certa? Se nos associarmos a esse tipo de gente, o que nos tornamos?

– Vivos – tentou, receoso de não ter soado convincente. – De qualquer forma, já viemos longe demais, seria pior desistir agora. Vamos.

Seguiram pela trilha de horror e destruição até não verem mais nenhuma casa. À frente da ponte retrátil que funcionava como único acesso à fortaleza contornada por um fosso, deram de cara com a segunda muralha e última defesa de Forte Dragoi. O portão já se encontrava aberto, e o que seria o grosso dos homens de Ibrahim já os aguardava do lado de dentro.

Barna foi o primeiro a passar pelo portão e, quando ele o fez, o tom do encontro se tornou óbvio. Dezenas de seus antigos companheiros começaram a assobiar e bombardeá-lo com comentários jocosos, alguns outros o bombardearam mais literalmente, com garrafas vazias e dejetos.

– Ei, o docinho voltou pra casa! – gritou um deles, no dialeto comum, com uma voz arrastada e afetada. – Sentiu falta da mamãe?

Ion não pôde ver o que se passava na expressão de Barna naquele momento, o viajante apenas assistiu por trás enquanto o mercenário desfilava em seu cavalo, as costas retesadas e os braços contraídos enquanto guiava os arreios. As risadas tornaram quase impossível escutar Mihai quando ele lhe tocou o ombro, com as pupilas contraídas em alerta.

– Senhor Martinescu, estaremos cercados aqui dentro. Tu sabes mesmo o que estamos fazendo? Conheces alguma rota de fuga?

"Homem, eu não tenho certeza de mais nada." – pensou, sentindo o estômago revirar ao ver a quantidade de contratados presentes no pátio do castelo.

Cerca de duzentos membros da companhia se espalhavam pelo vasto vão que se estendia à frente da entrada principal de Forte Dragoi, reservado a estábulos, uma arena de treinamento para os cavaleiros, forja e espaço comum. Um alpendre de madeira havia sido construído na parte interna da muralha, originalmente para servir de suporte a arqueiros, mas agora ocupada quase inteiramente por guerreiros em cota de malha e couro cozido, encostados no parapeito em direção ao portão e seguindo a entrada da comitiva com olhares curiosos e sorrisos de zombaria.

Os mercenários haviam aberto o caminho para que o grupo passasse através do pátio, organizados em um meio círculo, e se fechavam mais à frente, onde uma liteira sustentada por oito homens fortes carregava o homem mais gordo que Ion já tinha visto na vida. Ibrahim al Samin não era apenas grande, era uma massa disforme de gordura, tecidos extravagantes e adereços metálicos, organizados de uma forma que apenas vagamente lembrava um ser humano.

Seu rosto, encoberto pelas sombras de sua própria liteira e barriga enorme, só se revelou após os homens que carregavam a parte da frente de seu assento se ajoelharem, de uma maneira que reclinou a sua cadeira e o permitiu ficar em uma posição quase erguida. A face do capitão era robusta e apenas parcialmente encoberta por pelos, uma enorme e profunda cicatriz no lado direito de seu rosto o deixava liso como uma criança, e seus lábios, muito vermelhos e protuberantes, mantinham-se em constante movimento, como se ele estivesse em um estado permanente de ponderação ou mascasse algo especialmente difícil de mastigar.

Ele ergueu a mão e fez um sinal para que um de seus homens se aproximasse. Um rapazote magro e de olhos fundos pulou da multidão e correu até Ibrahim, ao que recebeu algumas ordens em voz baixa, empertigou-se e gritou para que todos o ouvissem:

– Bem-vindos ao nosso domínio, valáquios! Eu falo por Ibrahim Hassamid, O Benévolo, capitão da Santa Companhia de Tayy e regente desta fortaleza.

Katia se adiantou e elevou a voz para se fazer ouvir ante a cacofonia de gritos e risadas.

– Capitão Ibrahim, meu nome é Katia Irgalmas, filha de seu antigo contratante e venho diante de ti solicitar formalmente que...

O homem mostrou-lhe a palma da mão, bufando com fastio. Após algumas palavras curtas, o seu tradutor voltou novamente a falar:

– Ibrahim Hassamid, O Benévolo, não deseja falar com nenhuma meretriz, tragam alguém digno de seus ouvidos antes de lhe dirigir a palavra.

Uma risadaria geral tomou conta dos soldados da companhia e Ion sentiu a fúria de Katia ao ouvir essas ofensas, então pôs a sua mão sobre a dela para que o silêncio se tornasse menos humilhante. Mihai pigarreou e deu três passos a frente, ocupando o lugar da dama.

– Meu nome é Mihai de Vicina, sou o abade da congregação sulina dos Filhos de São Simão e falo pelos habitantes deste principado. Gostaríamos de pagar pelos teus serviços para que se juntem a nós contra Alexandre Irgalmas em sua guerra de conquista pelas províncias do norte.

Houve um breve momento de rebuliço, em que os que haviam compreendido o que o abade teria dito traduziam aos companheiros que não falavam o idioma. Ibrahim cedeu o ouvido a seu tradutor e franziu o cenho ao escutar as palavras do sacerdote.

– Qual seria o pagamento? – gritou alguém da arquibancada, apoiado por assobios e exclamações de aprovação.

Essa foi a deixa para que Ion se revelasse. O viajante tirou o embrulho da bolsa e começou a caminhar em direção à liteira do capitão, sob os olhares indiscretos de centenas de seus subordinados. Mal havia chegado à metade do caminho, no entanto, quando alguém tirou o pacote de suas mãos.

– Ei! – protestou para o mercenário que lhe tomara a joia de Petru. O viajante esticou o braço para pegá-la de volta, mas foi empurrado ao chão antes que conseguisse alcançá-la. Ao olhar para cima, viu o rosto do homem e o coração de Ion parou de bater por um segundo.

Ele era ainda mais alto que Carmine, musculoso e intimidador. O rosto bronzeado agora estava coberto por uma barba rala, enquanto antes o mantinha limpo, mas, fora isso, era o mesmo homem que vira no dia em que conhecera a mercenária de cabelos vermelhos. O colar que havia dado a Barna decorava o seu pescoço, e Ion sentiu a raiva se apossar de si quando percebeu que Petru havia ajudado a pagar por aquilo.

– Ralf – chamou o seu nome, sem saber exatamente o porquê. Seu sangue fervilhou e as palavras saíram sem pensar. – Você matou meu irmão.

– Seu irmão? Quem caralhos é você?

Ele desembrulhou a joia, avaliou-a por alguns instantes e então a ergueu no ar para que todos pudessem vê-la. Os homens de Ibrahim gritaram e vaiaram, e continuaram vaiando enquanto a preciosidade passava de mão em mão até chegar a Ibrahim. O capitão virou o objeto na mão algumas vezes e a jogou de volta aos pés de Ion.

– É um brinquedo bonito, mas só um brinquedo – falou o tradutor em seu lugar. – A Santa Companhia de Tayy aceita pagamentos em ouro, mulheres e armamentos.

"Merda." – pensou, recolhendo a herança de Petru e se afastando da liteira o mais discretamente que podia. Não sabia o que aconteceria dali pra frente, não tivera tempo de pensar em um outro plano.

– Contemplem, amigos! – Ion escutou alguém gritar perto dele, voltou-se para trás e se deparou novamente com Ralf, os braços abertos ao vento e um sorriso sarcástico no rosto. – Contemplem o rosto da traição! Gilliam, Orson, como vão vocês? Já deu tempo de destruírem a minha companhia?

– Vá se foder, Ralf – Gilliam grunhiu e pôs Nicoleta no chão. – A Confraria nunca esteve melhor do que agora. Estamos unidos, fortes.

– Tenho certeza que sim – ele lambeu os beiços e acariciou o próprio ombro, onde quatro cicatrizes horizontais o cortavam do peito à escápula. A última, mais inferior, ainda estava rosada. – Unidos em torno de uma boceta. Onde está Carmine?

Estou aqui.

Ion conseguiu notar o quão alterado Ralf se tornou ao pôr seus olhos em Carmine. As pupilas do mercenário se contraíram em seu rosto vermelho, e a mandíbula travou com tanta força que seria possível afiar facas nela. Ela se aproximou até quase tocarem narizes e seu aspecto era calmo e contemplativo, muito diferente do de seu adversário.

– Eu fico contente que consiga me entender – o homem lhe falou entre os dentes, soltando uma risada hostil. – Desse jeito, terei muito mais prazer quando te ouvir guinchar como uma porca.

Ao dizer isso, Ralf se voltou à liteira de seu capitão e gritou ao garoto magro que lhe servia de tradutor.

– Diga a seu mestre que chegou a hora de cumprir o prometido! – latiu, erguendo as mãos ao ar em busca do apoio de seus semelhantes. – Eu cheguei aqui há pouco tempo, mas acho que já provei a minha lealdade! Quem aqui matou mais putos da Confraria quando estivemos lá fora!? Quem foi que lhes falou onde achar as cortesãs mais belas, as camponesas mais suculentas!?

Gritos de apoio nasceram entre os que eram fluentes no dialeto, para então se espalharem pelas arquibancadas e logo toda a Companhia de Ibrahim conclamava o seu nome. Centenas de braços se erguiam ao céu em ovação, e ainda mais pernas esmagavam o solo de terra batida, fazendo o chão tremer e as construções sacudirem em suas fundações.

– RALF! RALF! RALF!

– É isso, seus filhos de uma rameira! Esse é o nome que vocês deveriam lembrar! – ele deixou escapar uma gargalhada histérica e golpeou o ar junto de seus companheiros. – Ibrahim, olhe o que seus homens pedem! Lembre o combinado!

Em meio à balbúrdia, o tradutor teve dificuldades para se fazer ouvir, mesmo que sua boca estivesse a apenas alguns centímetros do ouvido de seu capitão. Após compreender o que estava se passando, Ibrahim estendeu as mãos e bateu palmas. Esse gesto fez os seus homens se acalmarem pouco a pouco, até que em algum tempo tudo o que Ion ouvia eram as batidas de seu próprio peito.

– Em respeito ao nosso mais novo companheiro, que já se fez coroar como um de nossos melhores guerreiros – começou o rapazinho, com sua voz alta e monótona. – Nosso líder decidiu nos agraciar com uma demonstração de força. Hoje, Dedos-de-Aço será solto de suas correntes e poderemos ter um vislumbre da Santa Companhia de Tayy em toda a sua glória.

O grito que seguiu esse anúncio foi algo digno dos grandes torneios de tiro ao alvo da capital, no qual milhares de espectadores de todo o mundo gritavam em uníssono ao ruído da mais silenciosa flecha acertando a sua marca. Ion sentiu calafrios ao ver aqueles homens pulando sem sair do lugar, festejando como se tivessem acabado de pilhar todo o ouro do mundo.

– Aquele conhecido como Demônio do Rio Negro, favor se apresentar.

Carmine se voltou à liteira imediatamente, apesar dos protestos de Mihai. Ion viu o abade segurar o braço dela, trazendo na face uma expressão aflita.

– Não – suplicou ele. – Isso é uma armadilha.

A mercenária se desvencilhou de seu aperto e não desacelerou o passo até estar visível para todos.

Cá estou, Ibrahim! Carmine de Anghila, o demônio do Rio Negro, o que quer de mim?

Um ruído de perplexidade se espalhou pela multidão. Ion foi capaz de discernir um ou outro comentário da plateia, invariavelmente confusos com a situação: "Uma mulher? Esse é o demônio?", "Ela derrotou Ralf em combate singular?", "Não é possível, Ralf humilhou Barna", "Ele venceu Torgrid, Hanal e Rashid, isso é alguma brincadeira". Os murmúrios prosseguiram até que o próprio Ralf confirmou sua identidade, sob resmungos de incredulidade dos seus companheiros.

– É ela mesma – falou, tão tenso que uma veia saltava de sua têmpora. – Não se deixe levar por sua aparência, eu perdi por causa disso.

O tradutor de Ibrahim levou algum tempo explicando a situação a seu chefe, que riu jocosamente ao descobrir quem era aquela figura misteriosa. Ele cuspiu as suas ordens em um tom estrídulo e baboso, após o que o homem magro limpou a garganta e voltou a anunciar para todos os presentes:

– Carmine de Anghila, você foi selecionada para disputar um combate singular contra o campeão da Santa Companhia de Tayy, sob a glória de Deus e Ibrahim Hassamid, O Benévolo. Aceite, e terão o seu acordo, recuse, e escolheremos algum de seus acompanhantes para tomar o seu lugar.

– Tomar o seu lugar!? – protestou Katia. – O que significa isso, nós somos prisioneiros!?

Carmine preferiu ignorar a última parte e elevou a voz para retrucar, voltando-se aos observadores em geral.

Vocês têm algo que pertence a mim. Uma caixa negra e rígida, com várias inscrições em seu entorno. Mostre-me o objeto e eu terei prazer em esmagar o seu campeão.

– Mostra o que você tem embaixo dessa armadura e eu te dou o que quiser! – gritou alguém da multidão, seguido por gritos, risadas e assobios.

Ralf foi o que gargalhou mais alto, tão pesadamente que levou a mão à barriga e dobrou os joelhos, sem ar. A figura daquele homem se divertindo retorceu o estômago de Ion, a ponto de as palavras escaparem facilmente de sua boca, tal qual tivessem sido pronunciadas por outra pessoa:

– O tanto que você fala, achei que você fosse o campeão.

Ele parou de rir imediatamente.

– O que você falou, porra?

Gilliam riu da sua observação.

– Ele tem razão, você faz todo esse espetáculo pra Carmine lutar contra outro cara? O que aconteceu com a sua dignidade?

– E que merda é essa de combate singular? – perguntou o homem largo e moreno chamado Orson, sentindo o cabo de sua machadinha. – Viemos aqui pra negociar, não pra brigar.

O rosto de Ralf se tornou vermelho como uma beterraba. O homem olhou para os lados, viu que estava sendo observado pelos novos companheiros e voltou a forçar um sorriso, urrando para os céus em sua voz grave:

– Muito bem, vocês querem que eu mostre porque me chamam de Incólume!? Vocês querem que eu mostre ainda mais uma vez que não há um filho da puta aqui melhor do que eu!? Soltem Salamael! Deixem que o demônio do rio prove seu valor contra nosso campeão! Eu lutarei contra o vencedor e me banharei com seu sangue!

Gritos de aprovação e vivas voaram de todos os lados da arena improvisada. Garrafas vazias, facas e pedaços de comida foram jogados em direção a Ralf, Carmine e os demais membros da comitiva, enquanto o nome de Ralf era gritado em um coro ensurdecedor.

– RALF! RALF! RALF! RALF!

– Eu sei onde está a sua caixa de merda... – Ion o ouviu falar entre os dentes para Carmine. – Vença Dedos-de-Aço e eu te direi onde está. Perca, e eu te foderei como a puta que você é, na frente dos seus amigos e dos meus, e não pararei até que eu te ouça gemer. Entendeu?

Perfeitamente – ela respondeu, logo antes de Ralf se voltar à multidão, sob uma ovação estrondosa da Companhia de Ibrahim.

– O que... O que vamos fazer!? – perguntou Mihai, suando frio.

Eu consigo.

– Tu não escutaste!? Ele disse que vai... Eles vão...!

Carmine pôs gentilmente o seu dedo indicador sobre os lábios de Mihai, lançando-lhe o olhar mais determinado que Ion já vira brotar nos olhos de alguém.

Eu disse que consigo.

Ela então caminhou calmamente até a carroça de suprimentos e escolheu a dedo uma espada curta para cavalaria, em acabamento simples e um pomo em formato de diamante. Virou a espada na mão algumas vezes, testou o seu peso e, dando-se por satisfeita, repousou a lâmina no ombro.

E esperou.

– Você tem certeza disso? – perguntou-lhe Gilliam, enquanto aguardavam o primeiro oponente de Carmine. Os espectadores gritavam canções obscenas e batiam os pés, envolvendo o átrio em um ruído enérgico. – Ele pareceu um palerma qualquer na última vez que brigou com você, mas Ralf é um adversário perigoso, e ainda nem sabemos o quão bom é esse Dedos-de-Aço. Al-Rhabad era nosso antigo chefe, um dos guerreiros mais competentes que eu já conheci, e ele o matou sem ser ao menos tocado. Dessa vez, estará mais preparado, mais feroz e lutará sério.

O tradutor de Ibrahim novamente elevou a sua voz, anunciando a chegada de seu campeão, e um coro de gritos e palmas ecoou pela arena.

É. Eu também.

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