PARTE 2 / CAPÍTULO 19: A VIGÍLIA DE ALTORRIO

A viagem de Ion a Altorrio demorou quase dois dias. Tomou muito mais tempo do que o planejado, pois foi surpreendido por uma tempestade quando ainda sequer havia deixado o território de Dimitrier, o chão lamacento atrasou Catarina em um dia inteiro. Quando enfim pôde ver o castelo se erguendo majestoso na colina, fez um breve desvio em direção à orla do rio Siret, onde se preparou para entrar nos portões em grande estilo. Banhou-se, fez a barba e pôs as roupas novas, sentindo-se especialmente poderoso ao vestir o colorido chapéu que Mihai lhe dera.

"Veremos agora a diferença que o vestuário pode fazer em uma negociação." – pensou com um sorriso, ao checar seu trépido reflexo nas águas do rio.

O caminho para a colina passava por uma cidadela habitada de forma similar ao burgo de Forte Dragoi, porém fechada para os aldeões, que se concentravam em uma próspera cidade além da colina, Rosufort. Ion já passara pela cidade algumas vezes, quando precisou contornar o mar oriental, e pôde ver que não era em nada parecida com Anghila; era muito mais urbana, com estradas pavimentadas e até mesmo uma prefeitura que respondia a Lorde Stefan. Tinha ainda seu próprio exército e, à sua maneira, sua própria corte de homens importantes.

Ion seguiria rio acima e cortaria a cidade, onde deixaria Catarina em um estábulo e alugaria uma carruagem para deixá-lo às portas de Altorrio, transporte que certamente causaria um impacto mais positivo do que a mula de aparência magra e simplória. O trajeto final de sua viagem, porém, não ocorreu sem maiores problemas, alugar uma carruagem mostrou-se mais difícil do que imaginava.

– Como assim fechado!?

O cocheiro coçou uma bochecha verrugosa e queimada de sol, parecendo entediado.

– Fechado, amigo. Ninguém entra ou sai do castelo, está fechado.

Ion cerrou os dentes, procurando manter a paciência.

– Eu sei o que fechado significa. Por quê? Sob as ordens de quem?

– Senhor castelão Friedrich. Parece que estão fazendo algum tipo de assembleia, carro nenhum passa pela cidadela já faz dois dias. Desculpe, amigo, não posso fazer nada.

Ion já detinha experiência o bastante para saber que não poder fazer algo significava apenas que o ouro oferecido para a tarefa não era o suficiente.

– Eu pago.

– Naturalmente. Ninguém trabalha de graça.

– Eu pago bem – o pequeno saco de couro que Ion trouxera consigo deveria ser somente para emergências, mas não poderia apenas voltar por onde veio sem ao menos falar com Lorde Stefan. – Não quero me esgueirar no castelo, só me leve à entrada e eu falo com quem estiver lá.

O cocheiro tomou o pacote e sentiu o peso com um sorriso no rosto.

– Então parece que não teremos problema, pode se sentar – disse, apontando a carruagem acortinada de dois cavalos que aguardava ao lado. – Segurar-se pode ser uma boa ideia. O passeio deve ser curto, mas a estrada está acidentada.

– Por causa da chuva? – perguntou Ion, acomodando-se no veículo. Uma leve fragrância de perfume havia sido espalhada pelo interior e tentava disfarçar o cheiro de mofo, mas quem quer que tenha feito isso não tinha sido bem-sucedido. O ambiente tinha um odor de mil bundas não lavadas em um campo de lilás.

O homem estalou o chicote e pôs a carruagem em movimento.

– Isso, e também por causa dos cavalos que vão e vem da cidadela. Temos tido muito movimento por aqui nas últimas semanas.

– Preparativos de guerra, imagino.

– Boatos não são raros, mas ninguém parece ter todas as informações. O senhor deve saber mais do que eu.

– Eu? Por que acha isso?

– Ora, pelas roupas. E pelo saco de ouro, um fazendeiro não tem tantas posses assim pra sair desperdiçando dinheiro.

Ion não desperdiçava, ele investia. Mas o comentário arrancou um sorriso dele de qualquer modo.

O homem não estava mentindo. Todo o trajeto colina acima foi tortuoso e turbulento, em um determinado momento a carruagem caiu em um buraco com tal impacto que Ion jurou que tinha arrancado uma das rodas. Os cavalos relincharam e o homem gargalhou, estalando o chicote.

– Está tudo bem aí, amigo!? Não vamos cair e quebrar o pescoço agora, estamos quase chegando!

– Tudo ótimo! – gritou Ion, segurando-se para não vomitar. – Chegando em quanto tempo, exatamente? Mera curiosidade, claro.

– Estamos praticamente lá!

De fato, alguns minutos depois o veículo desacelerou e Ion espiou pelas cortinas o grande portão de aço da cidadela que guarnecia Altorrio. O brasão dos Dragoi flamulava entre seteiras e torres de guarda coroadas de arqueiros em reluzentes cotas de malha. O veículo parou e um homem de grande porte se aproximou, a mão apoiada na bainha e uma carranca malvada sob o rosto barbado.

– Dê meia volta, cidadão. O castelo está fechado.

– Com prazer, é só que o meu amigo aqui insistiu muito em vir – falou o cocheiro, voltando–se para o interior da carruagem. – Daqui pra frente é com o senhor, não está com cara de que vão me deixar passar.

Ion pôs a cabeça para fora e encarou o porteiro com ar de autoridade. Procurou se manter o mais calmo possível, se sua aparência enganara o cocheiro não tinha porque não funcionar também com aquele homem. Já viajara muito e havia lidado com nobres o suficiente para saber como se passar por um.

– O que está acontecendo aqui? – falou, apertando os lábios. – Estou atrasado para a assembleia, homem! Abra caminho, por seu favor.

– Senhor – retrucou ele, fazendo uma breve reverência. – A assembleia já está em curso há alguns dias, a entrada ao castelo está suspensa sob ordens diretas de Lorde Stefan.

– É claro que está! Com toda essa chuva, como poderiam esperar que qualquer um seja pontual? Fiquei horas atolado na lama, horas! Sanctus Deus, disseram-me que os cavalheiros aqui eram cordiais mas, francamente, tu não estás sendo um bom representante. Chame Friedrich, eu mesmo falo com ele!

– Eu seria Friedrich, senhor.

"Merda."

– É mesmo? – Ion limpou a garganta. – Bom, sir, sinto muito pela falta de diplomacia, a viagem até aqui foi longa e encontro-me fatigado como não achei que fosse possível. Sou o representante da província sulina, venho em nome de Grigore Dragoi discutir termos com o lorde.

Friedrich apertou os olhos, não parecia muito convencido.

– Grigore, o abade? Poderia saber o seu nome, senhor?

"Um nome forte. Um nome forte."

– Maximiliano Irgalmas IV de Kalarash, sir. Se quiser nos poupar tempo e paciência, pede a um mensageiro para trazer Katia aqui, ela poderá comprovar minha identidade.

– Katia Irgalmas?

A expressão do homem assinalou a vitória de Ion, ele usara o nome certo. Se tivesse pedido por Stefan, teria entrado sob escolta. Katia era importante o bastante para persuadir, mas não o suficiente para levantar suspeitas.

– Sim. Há algo errado?

– Não, senhor, ela está com o senhor seu esposo e família. Haverá um banquete à noite e todos estão descansando. Pedirei por uma carruagem mais apropriada, ela poderá deixá-lo às portas do saguão.

– Prefiro entrar com meu cocheiro, se não te importas. Minhas pernas estão me matando em cãibras, mal posso esperar para descansar também.

– Como quiser – disse, fazendo um sinal para que erguessem o portão. A estrutura metálica rangeu enquanto os operadores giravam uma pesada roldana de madeira.

Ion observou que a corrente de aço que preenchia seus sulcos era grossa o suficiente para que passasse o braço por entre os elos. Seu coração batia com tanta força no peito que o viajante temeu que seu semblante o entregasse, então evitou correr maiores riscos e fechou as cortinas, retirando-se à reclusão de sua cabine. Após alguns momentos, o cocheiro estalou o chicote e pôs o carro novamente em movimento.

O caminho até os portões de Altorrio foi muito mais tranquilo do que a subida até a cidadela, muito mais silencioso também.

– Está tudo bem, homem? Você está bastante quieto aí na frente.

– Me desculpe, senhor – disse ele, com uma voz apologética. – Meu linguajar anterior não foi apropriado. Vi logo que o senhor era nobre, mas não desconfiei que também tivesse sangue azul. Peço perdão.

Ion quase riu na cara dele.

"Queria que Petru estivesse aqui para ver isso."

– Não tem por que se desculpar. Estamos perto?

– Na verdade, já chegamos.

Ao sair da carruagem, Ion prendeu a respiração. Apesar das exóticas terras por quais já passara, tinha pouca experiência com castelos. Havia Forte Dragoi, claro, mas o viajante conhecia apenas o seu exterior, nunca havia pisado em seus salões. Conhecia muitas histórias de palácios gigantescos construídos em mármore e ouro onde habitavam os sultões, marajás e outros grandes príncipes de ricas tribos do oriente, mas também nunca chegara a pôr os olhos sobre um deles.

Altorrio era, no mínimo, duas vezes mais imponente que Forte Dragoi. Ele era visível em pontos mais baixos da colina, mas a majestade de sua construção praticamente se extinguia ao ser visto de longe, já que não havia outros edifícios em seu entorno para que se pudesse ter uma ideia de seu tamanho. A própria pedra que alicerçava suas torres parecia brandir um brilho que o distinguia das muradas sem vida da fortaleza de Dimitrier.

– Aqui está bom, acho – falou o cocheiro, nervoso. – Gostaria que eu esperasse, senhor?

– Só se pretende ficar aqui por alguns dias. Pode ir, você cumpriu bem sua parte.

O homem não se fez de rogado, logo estalou novamente seu chicote e a carruagem desapareceu estrada abaixo, desviando das sebes que decoravam o pátio frontal de Altorrio. Ion voltou-se ao portão fechado, inflou o peito e endireitou seu chapéu o máximo que pôde, tomando especial cuidado com a delicada pena negra, então bateu três vezes a gigantesca aldrava metálica que se prendia à superfície.

Não demorou muito a uma das portas se abrir levemente. Pela fresta, Ion pôde distinguir um homem idoso de aparência requintada, ostentando o mais hirsuto bigode que o viajante já vira em sua vida.

– Sim? – sua voz era rouca e grave, em sintonia com um porte aparentemente avantajado.

– Meu bom senhor, meu nome é Ion Martinescu. Se possível, gostaria de uma audiência com lorde Stefan, trago notícias do abade Grigore e Vila Anghila. Creio que sejam assuntos que interessem a milorde.

– Ion, tu dizes? Não esperávamos visita a essa altura, tua vinda estava programada?

– Posso dizer que sim. Certos acontecimentos me impediram de enviar um arauto... Venho em nome do santo irmão Mihai, a serviço do reverendíssimo Grigore de Forte Dragoi. Ele não pôde vir em pessoa, então pediu para que eu viesse em seu lugar.

– Grigore, irmão de milorde?

Ion anuiu e o homem desapareceu no corredor sombrio atrás de si. O viajante resistiu ao impulso de espiar porta adentro e aguardou imóvel em seu lugar até que ele retornasse.

– Entre – ele abriu a porta e fez um sinal com a mão, indicando que o caminho estava livre. – Milorde está descansando em seus aposentos, mas creio que estará disponível para uma audiência breve antes do banquete.




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Ele era chamado, mas tinha medo de ir em frente. Já experimentara isso antes: enquanto estivesse afastado daquele mundo poderia observá-lo de fora, mas teria dificuldades em fazer o caminho contrário. Ousara se mostrar a ela uma vez, e por muito pouco não ficara preso para sempre. A experiência ativara nele um instinto que antes não existia, ele percebera que podia morrer.

Observando à distância, não tinha muitas maneiras de se comunicar com os habitantes daquele mundo, mas poderia, contudo, se mover através dele e observar outros mundos semelhantes. Sempre fizera isso, era tudo o que conhecia. Mas agora era chamado ali, e apenas ali.

Encontrava-se agora em um dilema para o qual não estava preparado. Teria de decidir entre continuar a busca por sua germinadora em uma miríade de telas rasgadas, cuja probabilidade de sucesso em cada uma era incrivelmente baixa, ou arriscar sua própria existência naquela única tela, de onde nunca mais poderia sair.

Em outra fase de sua consciência, não existia dilema, existia apenas a sobrevivência. Mas à medida que se alimentava, Ele ficava mais consciente, mais inteligente, mais finito; percebeu que, às vezes, decisões ilógicas poderiam trazer consequências positivas.

– Está ouvindo, maldito!? Não adianta se esconder, eu sei que você está aqui! –ouviu-a gritar através das infinitas camadas de existência entre ela e si.

"EU TE ESCUTO. TAMBÉM SEI QUE ESTÁ AÍ."

Ela não o escutava, teria de se aproximar. Mas ele temia.

– Você apareceu momentos antes do monstro acordar, falou comigo. E eu já o vi diversas vezes nos meus sonhos, então por que a timidez agora?

"ESTOU AQUI. TE ESCUTO. ESCUTA-ME. ESCUTA-ME."

Ela era a única em sua teia capaz de perceber sua presença. Nenhuma outra versão dela própria era capaz de fazer o mesmo, e ele acompanhara todas. Sem ela, ele não conseguiria achar sua germinadora.

– Foi você quem matou meu prometido? Ou será que só facilitou sua morte? O que você ganha com isso, o quer de mim!?

"SEU PROMETIDO VIVE. EU NÃO MATO, ELE VIVE."

Nos mundos onde sua germinadora não havia pousado, ele era capaz de acompanhar aquela garota até o fim de sua vida. Na maior parte das vezes ela estava junta do mesmo homem, mas naquele mundo ele era incapaz de ver à frente, pois a presença da germinadora rasgava a tela e a tornava opaca. Mesmo assim, sabia qual homem era o seu prometido, pois ele estava em todas as outras telas. O homem vivia naquele mundo e também o acompanhara por um tempo, mas não se alimentara fazendo isso, então se pusera a seguir outra pessoa.

Ela seria grata pela informação, ajudaria-o na sua busca.

Chegara a hora de tomar uma decisão, mas antes precisava decidir por uma forma. Descobrira que uma forma era essencial ao se aproximar, não fizera isso da primeira vez e acabara prejudicando seu contato com aquele mundo. Procurou em outras telas, procurou incansavelmente todas as formas que poderia utilizar, tudo que pudesse ajudá-lo a encontrar sua germinadora.

Quando viu-se satisfeito, avançou. Desta vez, foi até o fim e não olhou para trás.

"ESCUTA-ME. ESCUTA-ME."

– P-Petru?

Foi quando soube que havia obtido sucesso. E que não haveria mais volta.


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