PARTE 2 / CAPÍTULO 1: O VIAJANTE



Os primeiros raios do sol escapavam por entre as colinas, derramando sobre a plantação um refrescante calor naquele úmido dia de outono. Uma camada de orvalho refletia o brilho tênue das copas alaranjadas e leques de uma luz pálida se abriam por entre as folhagens do bosque, iluminando a vegetação rasteira. Ao longe as aves cantavam, anunciando a chegada da manhã. Um caudaloso rio de águas negras se estendia ao longo do campo, seu rugido lentamente perdendo espaço para os demais sons da mata que despertava.

Caminhando numa trilha de terra batida entre as árvores que desfolhavam, vinha um homem com idade já avançada. Era um velho agricultor que seguia pesadamente, carregando nas costas uma haste em que se penduravam duas vasilhas de barro cheias de água. Tinha-a apoiada sobre os ombros, ofegava e tremulava a cada passo, o corpo franzino arriando pouco a pouco ante o excessivo peso do fardo. Parava constantemente para melhor equilibrar as vasilhas, as costas estalavam e o suor escorria frio.

E ele foi caminhando numa marcha vacilante, até que pisou em falso e um chacoalhar mais violento fez uma amarra se desprender de sua cintura. Um pequeno saco de pano deslizou de seu lado até o chão, fazendo o velho praguejar mentalmente o próprio infortúnio. Levou os olhos ao longe e visou a pequena cabana em que morava.

"Não vou fazer uma segunda viagem. Quem eles acham que sou? Riem de mim, os malditos, dizem que estou arruinado. Pois que vejam o que ainda consigo fazer."

Bufou impaciente, ajeitou as tinas de maneira a equilibrar a haste com uma das mãos e se preparou para apanhar o objeto. Pôs-se então a dobrar lentamente os joelhos, tentando alcançar o pacote com a mão livre.

Seus ossos estalavam e as pernas tremiam, ameaçando ceder. Se derrubasse a água, todo o trabalho do percurso teria sido em vão e seria obrigado a andar três quilômetros de volta à fonte. Ele hesitou, voltou a se erguer, procurou ajustar novamente o peso da água e foi à segunda tentativa de alcançar o embrulho. Seus dedos relaram a superfície áspera do pano gasto.

"Só mais um pouco..."

Esticou o braço ossudo ao máximo que pôde e conseguiu prender o pacote entre os dedos. Passou então a se erguer, tomando cuidado para que o tecido não escorregasse na pele úmida de suor. Os joelhos do velho rangiam com o esforço, mas um sorriso de vitória desabrochava em seus lábios:

- Há! Aí está! Quem disse que não tenho mais jeito pra coisa? Bando de desgraçados excomungados, sim eu mostrei a eles, a todos eles!

O céu se abriu em um clarão súbito e o piar matinal dos pássaros foi calado por uma estrondosa trovoada. O agricultor se assustou, sobressaltado, e o saco lhe fugiu dos dedos. Tentou apará-lo por puro reflexo, mas o peso mal distribuído da haste o desequilibrou. Ele foi ao chão e as tinas de barro caíram com um baque seco, partindo-se no solo pedregoso. Levantou-se de qualquer jeito e correu desesperado à água, mas só conseguiu salvar algumas porções de líquido enlameado. Ergueu-se furioso, pisoteando os cacos de barro das vasilhas quebradas.

- Maldição!! Excomungados infernais! Que a lepra carregue os filhos dos filhos dos seus filh...!

Suas pragas foram interrompidas por mais um clarão ofuscante. Descargas tempestuosas cruzaram o horizonte, não parecendo se importar com a completa ausência de nuvens. A atenção do velho se voltou para um ponto distante onde uma misteriosa e fulgurante luz pairava sobre as margens do rio. Um som alto, metálico e nefasto tomou os céus, como se a própria natureza gritasse por piedade, e, após um curto momento de espanto, o agricultor vislumbrou um pedaço do firmamento se rasgar e abrir como a pálbebra de um grande olho invisível.

O olho era disforme, indistinto, e dentre dele não se via nada a não ser um amontoado de cores e formas ininteligíveis. Ora parecia um defeito de sua visão, como uma imagem fantasma que se forma quando se olha diretamente para o sol, ora parecia palpável como um bicho vivo. Ele esticava as árvores e retorcia o horizonte, desafiando a própria noção de céu e terra, algo que o velho não imaginaria ser possível nem em suas mais obscuras alucinações.

O tempo então reduziu sua marcha. Tudo ficou mais lento, o velho agricultor contemplou aterrorizado as gotas de água barrenta que ainda pingavam de suas roupas acumularem-se preguiçosamente em glóbulos, para então se desprenderem e aos poucos perfazerem o caminho às quase estáticas ondulações de uma poça barrenta. Viu os pássaros que faziam sua fuga, alarmados, abanarem suas asas sem pressa, flutuando em pleno ar. Uma folha alaranjada que se desprendia de uma árvore valsou ao vento, exibindo suas cores e formas num suave ir e vir, e pousou vagarosamente junto ao seu braço.

Então veio aos seus ouvidos o som de uma explosão ao longe, e um corpo flamejante passou veloz logo acima de sua cabeça, cortando o céu numa longa cauda de fogo. O objeto aterrissou bruscamente junto à beira do rio, fazendo elevar uma gigantesca torre de água e cobrindo o ambiente numa espessa nuvem de vapor, poeira e fumaça.

O velho permaneceu deitado na lama por muito tempo, atônito e confuso, com a face pálida contraída em pavor absoluto. Sua mente abalada precisou de alguns instantes até concluir sinapses o suficiente para esboçar um novo pensamento:

- S-santo Deus! É o apocalipse!


                                                                     ***


O vilarejo estava em alvoroço. Todas as pessoas levavam no rosto uma expressão de ansiedade. Algumas alegres, outras assustadas, poucas realmente comprometidas com os seus afazeres. Passavam distraídas, comentando umas com as outras sobre algo em ânimo exaltado, mal notavam o viajante magro e maltrapilho que as evitava, confuso.

O homem andara observando o comportamento estranho dos aldeões há algum tempo. As mulheres que esticavam os pescoços para fora das janelas, curiosas; os transeuntes que invariavelmente o atropelavam, apressados; algumas crianças que passavam caçando um monstro imaginário, gritando e brandindo suas espadas invisíveis. Não pôde evitar um sorriso quando um grupo de mães preocupadas passou por ele, chamando pelos fugitivos mirins.

Andou por entre as ruelas, espremendo-se entre as paredes e as pessoas que passavam, aproximando-se aos poucos de uma pequena cabana de pedra. Uma comprida coluna de fumaça espiralava-se contra o céu límpido, tornando possível o reconhecimento da construção mesmo ao longe, solitária em meio a uma relva da altura dos joelhos. Ao chegar, ele parou na entrada.

O acesso consistia num arco também de pedra e uma porta de madeira que se encontrava escancarada. O interior era iluminado por apenas uma chama. Do dono da cabana ouviam-se as marteladas regulares que escapavam de um canto escuro; um silvo da ferramenta, uma trovoada metálica e um clarão de faíscas que revelavam momentaneamente suas costas largas.

Tocou um pequeno sino que descia do telhado de palhoça. O som das marteladas cessou e o viajante pôde ver a enorme silhueta se erguer ante a chama. Logo veio o eco de passos pesados e preguiçosos, seguidos de um longo bocejar e uma voz grave e possante:

- Já vai, já vai...

Veio à entrada um homem tão alto e robusto que precisou se curvar e torcer o pescoço para passar pelo arco de pedra. O tórax nu revelava um físico vigoroso. Carregava na face uma barba volumosa, e nas mãos úmidas um pedaço gasto de pano no qual as enxugava. Aparentava várias noites mal-dormidas, enormes bolsas lhe caíam dos olhos vermelhos de sono. Ao reconhecer o viajante, abriu um largo sorriso e o apertou num abraço.

- Mestre Ion! - exclamou ele. - Mas que surpresa! Quando você chegou, homem!?

- H-hoje, mais cedo - respondeu Ion, sufocando entre os braços musculosos do conhecido.

- Como foram os negócios? Encheram muitas mulas? - perguntou o outro, às gargalhadas.

Soltara Ion do aperto. Agora batia amigavelmente em seu ombro, o viajante empenava mais a cada novo golpe.

- Nove mulas - retrucou Ion, com uma ponta de orgulho. - Nada mal, hein?

- Nada mal? Ora, meus parabéns, garoto! A você e a seu irmão, honram o nome de seu pai! Deve estar cansado da viagem, sabe do que precisa, hum?

- Não, do quê? - perguntou, tentando disfarçar o ombro dolorido.

- De uma cerveja daquelas! Entre que já trago a Gloriosa!

Ion passou pelo arco de pedra e entrou sem mais rodeios na cabana. O ambiente era escuro, abafado pelo calor causticante da fornalha, e o ar era pesado, carregando consigo um odor peculiar de fumaça, suor e podridão. Tossiu algumas vezes até acostumar-se com a atmosfera. Pelos cantos só se viam toras de madeira e baldes contendo uma grande variedade de espadas, lanças e outros armamentos. Alguns deles ainda estavam quentes. O homem logo voltou com um enorme pote de barro repleto de um líquido suspeito.

- Mas, meu rapaz, você está ótimo! - comentou ele, acomodando-se num canto desocupado e oferecendo uma caneca metálica a Ion. - A viagem fez bem a você, sem dúvidas.

- Não posso dizer o mesmo de você aqui - retrucou Ion, recebendo a caneca das mãos do amigo. - O que aconteceu, Henri? Dimitrier andou abusando de sua boa vontade?

- Ah, isso? - disse Henri, passando os dedos nos olhos. - Trabalho demais, só isso. Parece que o chefão resolveu armar uns mercenários. Um mensageiro veio um dia desses, quatrocentas espadas e duzentas lanças até o mês que vem.

- Devíamos era usar isso contra ele - Ion franziu as sobrancelhas.

- Deixe disso, garoto, nada se ganha indo contra a nobreza. Aproveite sua liberdade e deixe-nos com a nossa.

- Isso não é liberdade... - disse o viajante, passando os olhos nas centenas de lâminas espalhadas pelo aposento.

- À nossa própria maneira, sim, é. Era melhor pra você se não se deixasse levar por essas ideias, sabe bem o que acontece com os revoltosos.

Henri não quis prosseguir no assunto e logo afogou sua caneca no pote, entornando-a em seguida na garganta. Ion conservou-se quieto, hesitando em beber da água meio esverdeada.

- É uma guerra, então? - perguntou após um tempo.

Henri deu de ombros.

- Duvido muito, mas quem sabe o que se passa na cabeça dele... Ah, esqueça isso, rapaz! Não o vi ainda beber sequer um gole da Gloriosa, vai, vira tudo!

O viajante engoliu em seco. A Gloriosa de Henri tinha a fama de derrubar até o mais resiliente dos homens. "Faz-Viúva" para os mais íntimos, um gole era o suficiente para transformar um guerreiro valente num peso morto. A expressão de expectativa do amigo o intimou a bebericar um pouco, fechou a cara numa careta ao sentir o líquido lhe queimando a garganta.

- E então, o que achou? Daquelas, não é?

Ion concordou vigorosamente, tentando recobrar o fôlego. Henri caiu numa gargalhada alta.

- Seu pai aguentava seis canecas dessa aí sem nem chiar, seja homem!

- Isso aqui é um convite para o inferno – resfolegou Ion, colocando de lado a caneca. - Se eu tomar mais, a próxima coisa que vai martelar vão ser os pregos do meu caixão.

Nesse momento, ouviu-se o som de mais um amontoado de pessoas que passava, seguindo a agitação crescente. Ion acompanhou o movimento através do portal de pedra na entrada da cabana. Virou-se para Henri, já alegre em sua segunda caneca:

- Escuta, vocês anteciparam algum festival, ou algo assim?

O amigo precisou de alguns instantes até processar a questão.

- Ah, não, não... Mais uma loucura do velho Marius, só isso – falou o ferreiro, concluindo com uma enfática gargalhada. – E pensar que ainda tem gente interessada no que ele fala.

- E o que seria agora? - indagou Ion, curioso.

- Um demônio na abadia, acho. Ele tá gritando em cima de uma caixa, lá na praça.

Ion permaneceu em silêncio, observando uma das mães voltar puxando o respectivo filho pelas orelhas. A criança se debatia em choro, tentando se libertar.

- Um demônio, é? Tenho mesmo de resolver umas coisas com o irmão Mihai, acho que posso passar para dar uma olhada.

Henri gargalhou alto, balançando a caneca no ar.

- Nem pensar, rapaz, ainda está sóbrio! Vamos! Um brinde a nós, nascidos de Deus, criados pelo diabo!

- Não, acho melhor eu ir andando - disse Ion, tentando segurar o riso. - E você deveria parar com essa bebedeira, como vai terminar seu serviço?

- Pro inferno com o serviço! – retrucou o ferreiro, afundando novamente a caneca.

O último gole pareceu subir direto à cabeça de Henri, seu semblante se abriu num sorriso abobalhado entre duas bochechas vermelhas. Agarrou Ion pelo pulso e o puxou para debaixo de seu braço:

- Então, rapaish... Como anda essa vida livre? Velejando sem rumo? Fazendo fortuna? Conquistando mulheres?

- Vai bem, eu acho. Não temos muito tempo para mulheres, mas...

- Ah, não, mas faish parte da juventude, sim, sim! Onde já se viu? Vá espalhar suas sementes, garoto! Faça isso, assim que sair daqui!

Ion tentou desvencilhar-se gentilmente do aperto do amigo.

- Sim, farei... Olha, pode afrouxar esse braço?

- Aquela garota bonitinha, criada da abadia... Err... Nicoleta, não é? Acho que ela gosta de você, por que não vai lá e...

Então ele fez com as mãos o gesto mais sujo, pervertido e impróprio que Ion já vira alguém fazer com um inocente sorriso no rosto.

O viajante ergueu as sobrancelhas.

- Acho que Petru não iria gostar nada disso.

Henri teve mais um acesso de riso.

- Ah, eles noivaram na primavera, não foi? Maish que pena pra você, quem sabe não apressa as coisas na próxima vez.

A expressão encabulada de Ion tirou temporariamente o ferreiro de sua indiscrição entorpecida.

- Ah, não faish essa cara! Estou brincando, rapaish, vai lá cuidar da sua vida! Mande lembranças minhas a Petru, sim?

- Está bem.

Essa seria a deixa para Henri soltá-lo do abraço, mas o amigo se recusou a libertar Ion que, ainda preso entre o ombro e os cabelos desgrenhados do homem, tentava de qualquer maneira encontrar uma saída daquela prisão sufocante.

- Ion, você é um grand'amigo, se vier depoish, posso te oferecer mais cerjev... Cerveja.

Ao ver os efeitos da bebida, Ion deu graças por não ter tomado mais. Deu tapinhas amigáveis nas costas largas de Henri, acalentado-o pelo bem de sua fuga.

- Sem problemas, sem problemas, eu volto mais tarde para conversarmos.

Henri o segurou pelos ombros, os olhos molhados de lágrimas, enxugou-os demoradamente com o pano velho que carregara a tiracolo.

- Lembrei do seu pai agora, um grand'homem, um grand'homem...

- Aposto que sim - retrucou Ion, aproveitando a brecha para se pôr finalmente em pé. - Até a próxima, e maneire nessa cerveja.

Divagou por um momento, encarando o líquido esverdeado e borbulhante.

- ...Ou o que quer que isso seja.

Henri acenou alegremente enquanto o viajante deixava a cabana. Mesmo após se afastar, dirigindo-se ao centro do vilarejo, entre os burburinhos da multidão, Ion ainda podia distinguir a sua poderosa voz cantarolar entre uma e outra martelada violenta no metal incandescente.

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