O 9º FRAGMENTO: UM ENCONTRO DE DOIS MUNDOS

No dia seguinte, todo o primeiro período da manhã se repetiu como no dia anterior. Leina fingia ouvir a leitura lenta e monótona do "Fundamentos da Biologia" pelo professor Francis, enquanto este arrastava sua figura imponente pela sala. Os olhos da garota se detinham na janela que dava para o exterior da escola e sua mente viajava em devaneios.

Pensava em Reiwan e no quanto desejava em breve poder ter uma conversa de verdade com ele, sem uma grade de ferro a separar os dois. Mas pensava, principalmente, na recepção de Merrik ao chegar tarde da noite em casa. Ela o flagrara de casaco e telefone em punho, gritando com alguém sobre o desaparecimento de sua protegida. Seu rosto estava vermelho e e ele gritava com tanto fôlego que as veias de sua têmpora pareciam a ponto de explodir.

Ao vê-la entrar na sala, sua expressão passou de alívio a fúria quase instantaneamente. Correu em sua direção e a segurou pelos braços, fazendo-a olhar em seus olhos.

– Por Megerash, eu estava a ponto de sair atrás de você – exclamou ele, rouco. – O que eu disse sobre atrasos? Nunca mais faça isso!

Ele não escondera seus olhos mareados ou os lábios trêmulos. Leina não soube o que falar e não deu nenhuma uma explicação, apenas o fitou atônita por alguns momentos até que ele a soltasse. Ele se voltou, então, ao armário superior para encher um copo de sua bebida marrom, enquanto ela se dirigiu furtivamente para o quarto sem se preocupar com o jantar. Depois eles não se falaram mais.

Leina ficara estarrecida com a preocupação de seu tutor. Ele sempre fora tão estrito e impessoal, nunca imaginara que um simples atraso poderia afetá-lo daquela forma. Ao levantar-se naquela manhã, não o viu em casa. Havia apenas um sucinto bilhete escrito de forma apressada pregado na geladeira:

Surgiu um compromisso urgente. Seu café está na geladeira e o jantar será entregue na recepção por volta das vinte horas, não me espere acordada.

Com uma ponta de culpa, Leina vira-se contente por não precisar ter de se preocupar com o horário em que voltaria naquela noite.

Enquanto o professor Francis discursava sobre a osmose no funcionamento celular, Leina cerrava os lábios acometida por um intenso e repentino remorso. Embora ela morasse com Merrik já há algum tempo, sempre procurara manter uma distância segura de suas inúmeras regras e imposições. Não havia sido muito difícil, o tutor era um homem naturalmente lacônico e sempre muito liberal quanto às escolhas de Leina.

Mesmo sendo tão rígido, ele nunca a forçara a fazer nada. Não precisava. Sua presença e ar de autoridade garantiam, na maioria das vezes, a sua obediência. A garota se arrependia das vezes em que Merrik não conseguira, das vezes em que ela agira como um bebê implicante. Ele nunca a repreendia com palavras duras, era sempre o olhar frio de desapontamento que a fazia se morder por dentro. Durante uma troca de argumentos, ela podia se dar conta do quão ridícula estava sendo, mas nunca, jamais, dava o braço a torcer.

No que estaria pensando? A desobediência não a faria ganhar uma discussão, ele era Merrik Noash, comandante da décima segunda divisão do 2º Corpo do Atherum, e respondia apenas ao atherim Carlos Brunet e ao shifir. Ele poderia ter o que quisesse, não forçava Leina a cumprir suas regras não porque não podia controlá-la, mas porque queria deixá-la manter o comportamento independente com que fora criada.

"Eu sou tão tola."

O tutor deixara transparecer na noite anterior a importância que dava à sua segurança. Era um pai disfarçado sob a rispidez de um general, o mais próximo que Leina iria encontrar de uma família. E isso a aqueceu por dentro.

– Então, caros alunos, estudem bem essa matéria. Em especial o concernente ao quinto tópico, "organelas e funcionamento celular", podem esperar uma questão sobre isso na prova da semana que vem – anunciou o professor após o toque que anunciava o fim da aula.

Leina foi pega de surpresa. Não havia guardado suas coisas ainda e logo o corredor estaria abarrotado de crianças, o que retardaria sua saída. Precisava estar do lado de fora o mais rápido possível para esperar Reiwan. Se ele não a encontrasse lá, não tinha dúvidas de que iria embora sem pensar duas vezes.

Ela jogou suas coisas na bolsa sem qualquer cuidado e se preparou para se enfiar entre os colegas que se aglomeravam na saída para o corredor, mas o professor interveio.

– Você não, Vindres. Quero falar com você em particular – disse ele, em sua habitual voz hipnótica. – Espere seus colegas saírem e venha à minha mesa, sim?

– Sim, senhor – respondeu, xingando o professor em pensamentos. Aquilo era a última coisa que precisava.

Após todos saírem e somente restarem Leina, timidamente recolhida em sua cadeira, e o professor que terminava de salvar suas anotações no quadro eletrônico, a garotinha desceu a escada central da sala de aula e se dirigiu à mesa opressivamente espaçosa do professor Francis Rahd.

O professor era um homem grande e robusto. Um intelectual de quase dois metros e meio com cabelos já grisalhos e sábios olhos distorcidos pelas lentes grossíssimas dos óculos de grau. Quase ninguém mais usava óculos como aqueles, uma cirurgia corretiva era muito mais eficiente e produtiva. Mas o professor era um homem famoso por tratar seu corpo como um templo incompurscável. Ele usava um sobretudo xadrez escondendo um terno de fino corte e, de costas para as cadeiras da sala, terminava de transferir as informações do quadro para um dispositivo de armazenamento digital que levava sempre com ele.

Leina esperou pacientemente e em silêncio até que ele se virasse.

– Estou aqui, professor.

– Eu ando notando a senhorita distraída – disse ele, guardando seu dispositivo em uma pasta. – Algo a preocupa ultimamente? Esse período de avaliações é crucial para os que desejam ganhar bônus de desempenho para o próximo semestre, e em especial para você, que ingressou tardiamente.

Ela não soube o que dizer. O professor a intimidava e ela não queria mentir, mas não conseguiria explicar de forma racional o que estava fazendo. Dizer que estava perseguindo um colega era um tanto quanto assustador demais para usar como desculpa.

– Está tudo bem, professor. Eu sei que as provas são importantes, eu estudarei em casa. Vou encontrar um amigo daqui a pouco, é por isso que eu estava distraída. Compensarei nas próximas aulas, eu prometo.

– Ora, mas é verdade isso? Eu sei que a senhorita não tem se esforçado muito em se enturmar, eu nunca a vejo conversando com ninguém.

– Está tudo bem – repetiu a garota, desejando que o ele a liberasse logo. – Farei amigos com o tempo, professor.

– Espero que sim. Tenho uma grande estima pelo seu padrinho, se tiver qualquer problema pode vir falar comigo. Ficarei muito feliz em ajudá-la nessa fase de adaptação.

Ao ouvir essas palavras, Leina sentiu um ligeiro comichão. Por que não tentar?

– Qualquer problema, professor?

– Absolutamente – respondeu ele, com um sorriso.

– O senhor poderia me falar sobre a diferença entre shuras e stipfans? – falou ela meio que pra si mesma, sentindo-se envergonhada.

– Nos aspectos biológicos, quer dizer?

O professor firmou os pesados óculos de volta ao seu nariz, parecendo confuso com a questão. De repente, Leina se deu conta que era algo que já deveria saber há muito tempo, mas por algum motivo a informação fora mantida além de seu alcance. Todos agiam como se ela perguntasse algo fundamental demais para ser respondido, como "qual a diferença entre uma laranja e uma maçã?".

Ela fez que sim com a cabeça.

– Shuras são pessoas que tiveram qualquer porção de seus códigos genéticos manipulados antes da concepção. São pessoas que nascem com características micro e macrocóspicas pré-definidas, como que "sob encomenda", podemos dizer. Alguns possuem o genoma completamente planejado, outros apenas algumas porções referentes à doenças cromossômicas, inteligência e pequenas alterações do fenótipo, como cor de pele e tamanho do nariz. Stipfans são as pessoas que não possuem alterações, que nasceram de acordo com a Lei da Aleatoriedade, com a concepção no útero ou in vitro. Muitos shuras possuem porções aleatórias do código genético, mas não obedecem à Lei da Aleatoriedade, porque se filtra aspectos indesejados ou se adiciona outros desejados ao genoma, é o que alguns físicos chamam de "caos do artifício". Entende?

Ela não entendera absolutamente nada.

– Como se diferencia um shura de um stipfan só de olhar pra alguém? O senhor é um shura?

– Eu sou. E posso ver que a senhorita também é.

– Como você sabe? – ela perguntou, impressionada.

– Foi você quem acabou de me dizer, eu apenas sugeri. É muito difícil encontrar uma stipfan com as cores do seu cabelo ou seus traços delicados hoje em dia, não só por causa da baixa probabilidade de se encontrar características extremas em crianças sujeitas à Lei da Aleatoriedade, mas porque não há muitos pais que se arriscam a ter um bebê com problemas genéticos fatais. Mesmo que os parentes queiram apagar somente a possibilidade de desenvolvimento de certas doenças, a central de maternidade em Lauren obriga a quem queira passar pelo planejamento genético a apagar qualquer possibilidade de surgimento de característica biológica que leve a alguma oxidação a longo prazo. E, claro, a inserção da porção genética padrão do IXYA-22, que garante um quosciente exato à capacidade de processamento lógico do cérebro. Isso foi imposto pelo conselho científico há algumas décadas, para promover o nascimento de pessoas capazes de gerenciar e desenvolver novas tecnologias.

Ao notar a expressão de confusão da garotinha, o professor Francis deu uma leve risada e completou:

– Shuras parecem jovens mesmo na velhice. São, em sua esmagadora maioria, inteligentes e de boa aparência. São capazes de melhor observação lógica e imunes a quase todas as doenças. Os stipfans, quando filhos de shuras, normalmente exibem claros sinais de irregularidades cromossômicas, devido à disposição não-natural, muitas vezes semelhante entre si, do DNA de seus pais. Olhe para mim, por exemplo. Quantos anos acha que eu tenho?

– O professor parecia ter mais ou menos a mesma idade de Merrik, embora faltasse à Leina um pouco de material para fazer a comparação.

– Eu não sei. Cinquenta?

– Ele riu.

– Assim eu fico lisonjeado. Eu vivi bons noventa e sete anos, e algumas pessoas me dizem que ando fora de forma. Também é difícil ver um stipfan que passe de um metro e noventa, a aleatoriedade não os deixa se tornarem baixos ou altos demais. Seria assim que você me distinguiria de um stipfan, em maior parte.

– Meu amigo tem cabelos brancos!

Leina deixou essa informação escapar em um ataque de pura excitação infantil. Ao ouvir isso, o professor deixou os óculos escorregarem do topo do nariz, mirando a garota por cima das lentes grossas.

– Eu sei de quem fala. Ele é quem você ia encontrar?

Ela balançou a cabeça afirmativamente.

– Eu não aconselharia a companhia daquele garoto, Leina. Se a sua origem lhe faz jus, então você é uma senhorita de grande potencial. Ele é uma má influência para você.

A garota sentiu o rosto ficar quente. Não queria ouvir aquilo, mas estava verdadeiramente intrigada.

– Má influência? O que ele fez?

– Ele... Veja, lembra quando eu disse que todos os shuras têm um nível similar de capacidade cerebral? Bem, os stipfans não estão sujeitos a isso, então é possível de alguns poucos se igualarem aos shuras em potencial físico e superá-los em inteligência. Não foram muitos os stipfans que me recordo de terem passado na prova de aptidão desta escola, ainda mais tão bem colocados quanto o senhor Gaishir. Ele é um aluno de capacidades excepcionais, mas não é e nunca será capaz de chegar ao mesmo patamar que você ou os demais alunos dessa escola.

– Por que não? Ele é inteligente, não é? O senhor mesmo disse.

– Ele sofre de transmelanísie, um tipo exótico de albinismo. É raro mesmo entre os stipfans, dizem... – começou ele, hesitando um pouco antes de golpear sua aluna com uma série de informações desconcertantes. – dizem que surgiu quando alguém aplicou em humanos uma característica genética de outros animais. Experiências assim foram uma realidade até há pouco tempo. Seu organismo é capaz de produzir melanina, mas de forma bizarra. Os pigmentos de sua pele e a queratina de seus cabelos produzem aquela coloração branca por causa de uma mutação em seu código genético. Os remédios que ele toma irão retardar os efeitos por alguns anos, mas ele está fadado à demência.

– Isso não parece justo.

– E não é.

Nesse momento, o professor retirou do rosto os seus pesados óculos e passou a polir suas lentes com um lencinho branco que levava no bolso do sobretudo.

– Sabe, eu já ensinei a uma classe em que ele fazia parte. É um garoto com uma personalidade forte. Um pouco ambicioso, por assim dizer, mas ele tem uma característica que o afasta ainda mais de seus colegas do que sua excentricidade física. Eu não sou especialista, mas sei que ele tem problemas psicológicos sérios. Seu padrinho, excelentíssimo comandante, é um ferrenho defensor dos direitos dos stipfans, mas acho que ele concordaria comigo se eu dissesse que a companhia de Gaishir faria mal à você.

– Ele... Eu... – Leina gaguejou, desnorteada, tentando recuperar o controle da situação. – Que característica é essa, professor? Que problemas ele tem?

– Ele tem tendências manipuladoras. E uma sede de poder que não condiz com os graduandos da escola militar. Mas o que o destruirá no fim não é isso, mas a forma como ele se porta diante de seus colegas, o exato oposto do modo como ele deveria ser, se desejasse obter algum sucesso na carreira.

– O exato oposto?

– Sim, enquanto ele conseguiria cativar alguns colegas a partir de uma personalidade serena, amigável e compassiva, ele age de forma diferente. Ele ama apenas a si mesmo e a mais ninguém. Talvez tenha a ver com o modo em que a família dele ou os seus antigos amigos o trataram, mas é uma atitude estúpida. A última coisa com o que ele deveria se preocupar é a sua própria vida, não só porque será mais curta que a vida de seus colegas, mas porque, para eles, ela é menos valiosa e digna de atenção.

Essa afirmação parecia errada de tantos modos que fez Leina se perder em seu raciocínio. O próprio professor preferia lidar com o fato dos stipfans serem odiados, ao invés de elevar sua voz contra esse ódio mal orientado ou reprovar as pessoas que perpetravam esse tipo de pensamento. Para eles, esse comportamento repelente entre shuras e stipfans era natural e até esperado, e qualquer um que não preenchesse os requisitos de "bom stipfan" estaria agindo errado de acordo com os costumes sociais, justificando assim a sua rejeição.

Fora isso que Leina entendera. Um shura que se portasse da mesma forma ganharia o mesmo tratamento? Mesmo que ganhasse, isso não tornaria o banimento menos injusto. Ele era só uma criança, por que todos o tratavam como um adulto criminoso? Não concordava, mas não seria capaz de desafiar o professor com seus próprios argumentos, não conseguia formular ideias tão bem quanto ele.

– Eu preciso ir, professor, estou atrasada para o jantar – afirmou, sem levantar os olhos para o professor Francis.

– Vá com segurança, senhorita. Pode vir a mim se tiver qualquer outra questão.

Ela não iria nunca mais. O professor provavelmente achava que dera uma explicação perfeitamente crítica e não tendenciosa, mas Leina sabia que ele pensava como um shura. Como todos os seus outros colegas.

A escuridão prevalecia no lado de fora. A luz das calçadas luminosas e as janelas dos prédios encurvados era o que ajudava a clarear as ruas vazias. Um segurança que aguardava do lado de fora a cumprimentou quando saiu. Não seria possível se esconder no canto do jardim aquela noite com ele lá vigiando, então deu uma volta no quarteirão e esperou cerca de vinte minutos antes de voltar e se deparar com a escola fechada. O portão da grade que cercava a escola não tinha tranca, ela apenas se adiantou e sentou no banquinho como na noite anterior.

Deixou o tempo passar. As palavras do professor Francis Rahd a ajudaram a se distrair enquanto esperava o stipfan, teve a impressão de ter demorado bem menos antes que ela o visse tentando se esconder entre as sombras da escola. Ela sabia onde procurá-lo agora, então ficou de ouvidos atentos ao farfalhar das moitas que rodeavam o jardim e o crepitar de passos sobre folhas secas. Ele podia ser pequeno e magro, mas não era silencioso. Um pequeno barulho, algo como um soluço, o denunciou. Leina se voltou para a cerca atrás de si e pôde ver facilmente seu semblante branco oculto atrás de uma árvore.

– Pode sair, Lizwan! Eu sei que você está aí!

Ele deixou escapar um gemido e se encolheu um pouco mais em seu esconderijo, como se não acreditasse que alguém o tivesse visto através de seu disfarce perfeito. A cena era tão divertida que Leina não conseguiu segurar a risada. O garoto tinha um lado ingênuo, apesar de tudo.

– Se você não sair, eu vou aí te pegar!

Ele não se moveu. Leina firmou sua bolsa debaixo do braço e se preparou para escalar as grades, quando ele finalmente se revelou.

– Está bem, estou aqui.

– Venha para cá, não quero conversar com essa cerca no meio.

– Você não manda em mim.

Aquilo foi demais. A garota explodiu por sobre a cerca e se atirou numa queda de quase dois metros, enquanto Reiwan disparava numa corrida para o outro lado da rua. Ela o caçou por dois quarteirões, antes do garoto cair ofegante ao lado de um prédio comercial perto dali.

– Te peguei! – gritou ela rindo, no momento em que o alcançou.

– Bom trabalho – afirmou ele, exausto.

– Eu sabia que você viria.

Ela deu um sorriso e se sentou ao lado dele. Ao longe, um bebê chorava e um cheiro delicioso de assado lhe chegava às narinas. As ruas estavam completamente vazias, mas não era assim em toda Venécia durante a noite. A escola e o prédio onde morava estavam localizados perto do centro da cidade, que hibernava a partir do momento em que a cúpula entrava no modo noturno. Os carros não tinham motivo para ir até ali, área povoada majoritariamente por executivos e composta em maior parte por instituições públicas. Aqui e ali um luxuoso veículo quebrava a solidão absoluta, provavelmente em direção à Rua Grouche, ou Lumia Anglia, regiões de intensa atividade noturna da cidade.

– Quem é você, shura? Por que está me perseguindo? – perguntou o garoto, depois de recuperar o fôlego.

– Meu nome é Leina. Não me chame de shura, eu não gosto.

– O que você quer?

– Eu já falei ontem, quero conversar. Onde você mora?

– Não é da sua conta.

– Eu sei que você é do primeiro ano! Eu também sou, a minha turma é a dois, de qual turma você é?

– O que você faria com essa informação? Me esperaria do lado de fora da sala todos os dias?

– Talvez – confirmou Leina com um sorriso brilhante.

– Eu não sou seu amigo.

– Mas poderia ser, Lizwan. Por que você é tão mau?

– Eu não sou mau, só não sou esquisito que nem você. Vai pra casa, menina. Esqueça que eu existo, é melhor pra nós dois.

Leina franziu o cenho. Estava ficando impaciente com o descaso de Reiwan.

– Não.

– Está bem, faça o que quiser. Mas me deixe ir embora, estou cansado.

– Eu só estou tentando conversar com você! Sei que os outros shuras são implicantes contigo, mas não somos todos iguais.

– Parece que não. Alguns têm o bom senso de me ignorar.

Ele se levantou e tentou deixá-la para trás, mas Leina segurou o seu pulso.

– Me solta! – gritou o garoto, fazendo força até ficar vermelho.

Leina o encarou com curiosidade. O esforço de Reiwan mal era o suficiente para ela precisar puxá-lo de volta, era como segurar uma folha de papel contra o vento. Ele era mais frágil do que pensava.

– Você é um fracote.

– Meus parabéns, ganhar de um stipfan em uma disputa de força não é pra qualquer um – falou ele, com um esgar de irritação. – Deveriam dar um troféu pra você e todos os seus amigos estúpidos.

– NÃO somos amigos!!

Ela o puxou e o jogou de volta à parede do prédio. Suas costas estalaram quando ele se chocou contra o concreto e de sua boca escapou um gemido fraco de dor. Mais tarde, ela se sentiu péssima por ter feito isso. Ela queria protegê-lo dos shuras maldosos, mas ela própria o machucava. Soava meio hipócrita.

– Tá bom, tá bom! Eu estou na sala 1-D, ok? Na turma quatro.

– Ótimo, onde você mora? – perguntou, fuzilando-o com seus olhos esverdeados. As sobrancelhas franzidas em descontentamento.

– O que é isso, um interrogatório? – protestou o garoto, suando frio. – Achei que você quisesse ser minha amiga!

– E eu quero – retrucou Leina, um pouco mais suavemente. Seu ânimo murchou, se dera conta de que o que estava fazendo não fazia o menor sentido. – Mas não é tão fácil se tornar sua amiga quanto eu achava.

Uma família em algum lugar começava uma refeição. Podia-se ouvir o tilintar de talheres e o som de risos. Um súbito movimento em seu estômago fez Leina se lembrar de que não havia jantado no dia anterior. Estava faminta. Era tarde e precisava voltar pra casa.

Ela soltou o braço do garoto.

– Me desculpe, está bem? Eu... eu não sei o que estava fazendo. Vai pra casa, eu não o perseguirei mais.

Reiwan se ergueu do chão em silêncio e passou a massagear os pulsos. Leina permaneceu sentada na calçada, abraçando os próprios joelhos. O que faria agora? Voltaria à rotina dos primeiros dias, em que tentava fazer amizade com pessoas que claramente não tinham nada em comum com ela?

De repente, Leina se viu pensando que odiava Venécia. Era a cidade de cristal, a cidade dos sonhos, a ilha paradisíaca no meio de um mar de neve que lhe oferecera um infinito material para divagações de menina. A cidade mais linda do planeta, iluminada, moderna, abrigava os homens e mulheres mais influentes, o refúgio ideal para qualquer pessoa, desde idosos até crianças.

E ela a odiava.

Odiava aquelas calçadas fosforecentes, achava a coisa mais cafona que já havia visto na vida. Odiava aqueles prédios altos demais, que a faziam sentir vertigem toda vez que olhava para o céu. Odiava o fato de na verdade não haver céu, mas um domo de ligamentos nevrálgicos semi-transparente que dava vista para a tela laranja sem graça que era a vista do céu exterior. Aquele tempo sempre perfeito e a temperatura sempre estável também a incomodavam mais do que imaginaria ser possível. Odiava aquelas pessoas muito cheias de si, que não conheciam nada sobre o mundo, mas adoravam falar sobre programas de TV sem sentido, sempre tão cheias de fofoquinhas e opiniões negativas. Por que tudo tinha de ser tão artificial? Por que tudo era tão frio?

"Cidade idiota."

– Eu vi o que você fez no outro dia.

Leina teve um leve sobressalto ao ouvir a voz de Reiwan.

– Você empurrou aquele garoto que me jogou uma pedra. Isso foi... notável. Eu nunca a agradeci por isso.

– Não há de quê – respondeu Leina, desanimada. – Mas não foi nada, sério. Eu iria bater nele cedo ou tarde, mesmo que ele não tivesse te machucado.

Ele riu. Mas não foi um riso comum, foi um curioso bafejar de satisfação, como se tivesse tentado rir sem mover sequer um músculo da face.

– E a palavra da semana foi que você deu uma surra em Rihem Bells no seu primeiro dia de aula. Eu também tive de passar pela "seleção" do quarto ano. Não fui tão bem sucedido quanto você, no entanto. Fico feliz que alguém tenha dado um jeito nessa situação.

– O prazer foi meu – disse Leina, se empertigando. O garoto sabia conversar, afinal de contas. Mirou seus brilhantes olhos azuis e notou que era a primeira vez em que ele não parecia a ponto de fugir.

– Então, o que você é? Uma espécie de defensora dos stipfans?

– Eu sou só uma defensora. As pessoas aqui te tratam diferente por um motivo que ainda não sei. Shura ou stipfan, pra mim você é só um garoto. Não tenho porque te defender ou atacar por ser uma coisa ou outra.

Ele ergueu as sobrancelhas, parecendo ligeiramente impressionado. Leina conseguiu manter as feições sérias, mas sentiu um orgulho flamejar no peito por ser capaz de dizer algo tão heroico.

– Eu pesquisei sobre a sua cidade natal. Roche der Briocci, "Pedras do Vale" em kalariano. O seu manashvan é muito bom. Quanto tempo demorou pra aprender?

– Mais ou menos um ano. Meu tutor que me ensinou.

– Merrik. As pessoas falam bem dele. É um homem importante.

– Ele é legal – disse Leina, lembrando do bilhete e sentindo novamente a pontada de remorso que sentira mais cedo. – Então é assim que as pessoas me veem? Como a protegida do comandante?

– Também te veem como a garota que derrubou um veterano cinco vezes maior que ela e comeu sua orelha. E a garota que foi transferida de uma escola fundamental em Lauren porque matou dois colegas em um ataque de fúria. E a garota que precisa beber sangue humano regularmente ou se transforma num monstro descontrolado.

Leina riu com gosto.

– Eu não sou assim!

– Mas é o que dizem sobre você.

– E o que acha que eu sou?

– Eu acho que é uma esquisitona que gosta de espreitar stipfans.

Ela sorriu, mas Reiwan permaneceu impassível. A expressão do colega não mudara desde que eles haviam começado a conversar. Era difícil saber se alguém estava brincando ou não quando a pessoa parecia não gostar de sorrir.

– Onde você mora? – tentou ela pela terceira vez. Aquela parecia ser uma pergunta difícil para Reiwan responder.

Como esperado, ele continuou com a sua expressão vazia de contemplamento.

– Onde você mora?

Ela bufou, impaciente.

– Eu quero fazer um acordo contigo. Eu espero por você amanhã no mesmo local, está bem? Tudo que eu quero é que você me diga alguma coisa que eu não sei sobre você. Todos os dias. Hoje você me disse a sua classe, amanhã eu quero saber onde você mora.

– E o que eu ganho com esse acordo? – perguntou ele, cruzando os braços.

– A honra de conversar com um monstro descontrolado – respondeu ela, mostrando os dentes. – E a minha proteção. Avise-me se alguém incomodar você de novo, eu dou um jeito nisso.

Ele não respondeu, mas dirigiu à Leina um sincero olhar de aprovação. Ela estendeu a mão e ele lhe entregou a sua. Balançar a pequena e frágil mãozinha de Reiwan foi o selo de um acordo, um compromisso, o símbolo da primeira vitória verdadeira de Leina naquela cidade, e nada até então havia sido tão gratificante.

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