O 5º FRAGMENTO: O STIPFAN
Era uma tarde agradável em Venécia, capital de Manash, mas todas as tardes o eram. O exterior iluminado da escola militar estava agora abarrotado de crianças enérgicas em intervalo de aula. Suas idades variavam de sete a nove anos de idade e realizavam as mais diversas atividades. Havia brinquedos maiores, em que grupos revezavam seu uso numa grande algazarra; algumas garotas brincavam de pular corda a um canto, enquanto uma turma de garotos desenhava num quadro eletrônico; uma minoria comia um lanche preparado com antecedência, observando de longe o movimento; e uma minoria ainda menor conversava num círculo fechado.
O círculo era composto de três garotas que cochichavam entre si. Uma delas, loira e de cabelos curtos, comentava sobre algo muito animada e era recebida com risadas. A segunda, pequenina e com os cabelos escuros presos em duas marias-chiquinhas, ria alto, gesticulava e reagia sempre em demasia de tudo que a garota loira falava. A terceira tinha cabelos ruivos de uma cor muito forte, era calada e séria, vindo a sorrir apenas quando lhe dirigiam a palavra. Discutiam sobre um evento ocorrido alguns dias antes.
– E você viu a cara dele? Chorando e gritando pela mãe quando entrava na ambulância? Horrível, eu sei, mas não pude deixar de rir! Quer dizer, sempre todo metidão e querendo mandar na escola. Achei merecido.
A garota morena apoiou com fervor.
– Sim, sim! Ouvi dizer que um garoto da classe três filmou essa cena! "O todo-poderoso Rihem finalmente leva uma sova." – disse ela, gesticulando com os dedos à sua frente como se abrisse um letreiro. – E de uma menina mais nova! Quão humilhante é isso? Duvido que ele volte pra cá, duvido mesmo.
A garotinha ruiva não reagiu ao que foi dito pelas outras duas. Chegara a sorrir e comentar sobre o ocorrido, mas agora fechava a cara numa seriedade que beirava a irritação. A menina loira soltou uma gargalhada e a apertou no ombro:
– Ah, vamos lá, Vindres! Você é incrível, mal chegou na escola e já é uma lenda! É verdade que você é sobrinha do comandante Merrik?
Leina respondeu com um encolher de ombros.
– Ele é meu tutor. Não somos parentes.
A garota morena se curvou para frente, impressionada.
– É um homem muito importante, o comandante, é sim! Ouvi dizer que se acontece alguma coisa ao diretor, ele é quem assume a escola.
– E eu que se o atherim Brunet do Primeiro Corpo renuncia, ele é quem decide o sucessor! – disse a loira, vindo a refletir por um tempo. – Ele poderia escolher a si mesmo? – perguntou, curiosa.
– Claro que não! – riu alto a morena, fazendo barulho. – Tem uma votação primeiro, aí escolhem os candidatos e então... – hesitou por um instante, com o polegar entre os dentes. – E então o que acontece, Vindres? É ele quem decide o vencedor?
Leina bufou, impaciente. Aquela conversa sem sentido há muito vinha lhe trazendo náuseas. Além disso, seu pescoço pinicava muito. Haviam lhe inserido um pequeno aparelho na espinha alguns dias antes de seu primeiro dia na escola. A pequena incisão já tinha cicatrizado sem deixar vestígios, exceto por uma insuportável coçeira na nuca que a irritava e a distraía. O propósito do aparelho era carregar constantemente um backup de sua mente no banco de dados do Daerggel.
– Um dispositivo de suma importância – dissera-lhe Merrik. – Agora você faz parte de um seletíssimo grupo de pessoas, não são muitos os que conseguem pagar pela manuntenção desses dados. Caso decida ingressar de fato na carreira militar, você poderá fazer parte da Liga dos Perpétuos.
O que significava que um dia seria candidata a trabalhar pelo resto da vida para o Atherum, em troca de, por tabela, potencialmente viver para sempre. A proposta não lhe parecera tão tentadora no minuto em que lhe fora apresentada, mas depois de conversar com Merrik passou a entender o porquê de pessoas mais velhas se prenderem tanto à ela. Agora, a ideia de arrancar o aparelho à unha e cair morta ali mesmo parecia igualmente convidativa.
"Pelo menos me daria um motivo pra ficar sozinha."
Ao notar ser impossível prosseguir com a própria simpatia forçada, procurou na confusão de crianças que gritavam qualquer possibilidade de fuga daquelas duas garotas. Já tentara mudar de local diversas vezes, mas elas simplesmente a seguiam. Não encontrando qualquer distração melhor do que entreter as importunas colegas até o toque de recolher, resolveu ceder às perguntas:
– Não, não. Tem uma votação popular para o Conselho, e são os conselheiros que decidem os candidatos. Os comandantes de divisão não têm nada a ver com...
A garota foi interrompida por um grito estridente. Todas as crianças pararam o que estavam fazendo e se voltaram para além da cerca que separava a escola de uma avenida próxima. Dois guardas se aproximavam trazendo um garoto que se debatia.
– É o stipfan! Vamos lá olhar! – disse a garota loira, levantando-se rapidamente.
Os que estavam mais próximos logo lotaram toda a extensão da cerca, acotovelando-se para uma melhor vista do espetáculo. As colegas de Leina correram para garantir o seu lugar e passaram a acompanhar os gritos e lamentos do menino detido. Este era levantado pelos adultos e esperneava gritando o mais alto que podia, tentando golpear inutilmente os seus captores. A voz do garotinho prisioneiro transparecia um misto de horror, raiva e angústia que deixou Leina completamente desconcertada.
– Seu ridículo! Merece cada surra que leva! – gritou algum garoto em meio ao círculo de crianças que se formava junto à cerca, acompanhado de muitos risos dos outros.
Leina franziu as sobrancelhas. Eles achavam graça de tal humilhação pública. E não apenas riam, mas incentivavam o castigo, xingando e aumentando o sofrimento do pobre garoto. Naquele momento, a repulsa de Leina por todos eles atingiu seu ápice. Teve vontade de calar a boca de todos, ensiná-los a não rir da dor alheia.
Correu para o meio do círculo, à procura de quem havia gritado a ofensa. Afastou alguns curiosos que ainda se digladiavam e chegou à cerca pronta para socar quem estivesse rindo. Olhou em volta com raiva, mas não chegou a cumprir seu objetivo. Os guardas passavam agora bem à sua frente e Leina acabou também por se prender à cerca para tentar ter um vislumbre do cativo. Seguiu com os olhos o garoto que lutava por sua liberdade com uma curiosidade que não lhe era comum. Tinha nele algo que chamava sua atenção, mas não sabia dizer o quê.
O garoto era ainda menor do que Leina. Usava uma versão muito puída do uniforme padrão e seu corpo era franzino, talvez magro demais para ser seguro erguê-lo no ar como os guardas estavam fazendo. Tinha a cabeça completamente raspada e a pele tão clara que se via os nervos arroxeados em sua nuca. Dava pra ouvir claramente sua respiração convulsiva e nervosa, já devia estar lutando há algum tempo.
Enquanto Leina admirava aquele ser singular, um projétil passou rente ao seu rosto e atingiu o menino nas costas. Mirando por entre as grades da cerca e por trás dos guardas, alguém jogara uma pedra no garoto que se contorcia, marcando-lhe o uniforme com lama. Leina seguiu a fonte daquele tiro e rapidamente identificou um garoto loiro e rosado que preparava o segundo arremesso. Foi até ele e o empurrou com força ao chão. O colega caiu com um baque seco.
– Isso doeu! Quem foi que...!!
Ainda nem havia se levantado quando reconheceu a garota de cabelos vermelhos. Ela o encarava furiosa, com as mãos fechadas em punho. Sua fama já se espalhara, ele não ousou falar mais nada e se afastou hesitante. Ao ver a expressão de Leina, todas as outras crianças abriram espaço e fizeram silêncio. Na primeira semana que passara ela procurara manter sempre um sorriso afável e simpático, mas agora franzia as sobrancelhas e torcia os lábios, mostrando pela primeira vez o nojo e a raiva que sentia por todas aquelas pessoas. Passou os olhos por todas as crianças, encarando-as de uma por uma. Nem uma sequer a desafiou, nem mesmo as suas duas colegas de outrora tiveram coragem de quebrar o silêncio sepulcral. Não encontrando adversários, Leina fez seu caminho de volta às portas da escola e se enfiou em seu interior.
Do outro lado da cerca, o menino prisioneiro, tendo sua atenção atraída pela pedra em suas costas, pôde testemunhar por um instante o ato da colega de cabelos vermelhos. Não pôde compreender de imediato o que havia acontecido, alguns segundos foram necessários para perceber que havia sido linchado. Então, de toda a humilhação daquele momento, da dor que sentia do projétil contra sua pele, da rejeição que todo o mundo sentia por ele, apertou os olhos e cerrou os dentes com força. Voltou a berrar ainda mais alto que antes, balançava-se sem dar trégua aos guardas, tentou mordê-los, chutá-los, qualquer coisa que estivesse ao seu alcance. Não daria esse gostinho ao mundo, jamais se renderia a ele, viveria do jeito que quisesse e morreria assim como nascera: livre. Gritou, mordeu e chutou até que o jogaram num confinamento isolado e seus gritos abafaram-se num ruído rouco.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top