v i n t e e o i t o
Estavam em Water Mist.
Após dias suados de viagem ao lado da tripulante incompetente dos Alligator, bastou ser raptada para alcançar seu irmão.
Seria o desfecho ideal, se não estivesse fedendo a fruta azeda, se decompondo em contato com o Sol. O lado positivo é que não chegava perto do odor embriagado e estragado de Kai em seu estado de pinguça.
Ramires fez questão de levantar o capuz de Uyara, cobrindo as orelhas.
– Está com medo que ela pegue uma hipotermia? – indagou Raniela, disfarçando o incômodo na voz com um sorrisinho dócil.
Tão doce que chegava a enjoar.
O gatuno deu de ombros, como se aquele gesto fosse auto explicativo. Não pretendia emendar nada, mas o fuzilar da amada queimou seu rosto, exigindo mais.
– Elfos são proibidos em águas douradas. Pretende que a gente passe como? Esfregando a pobre criatura na cara dos engomadinhos de metal? – emitiu um sonido, gesticulando para frente – Não vai apertar?
Ramires arqueou a sobrancelha, sabendo exatamente o que se passava na mente luxuriosa e soberba de Raniela. A latina sequer disfarçava o súbito rubor raivoso.
Aproximou-se a contragosto, inclinando-se propositalmente perto da elfa.
– Sabe como perco o foco quando se trata de você, meu bem – soprou, batendo os cílios. Apesar de manter o contato visual com o Ramires, nitidamente não pretendia que Uyara ignorasse – Sou possessiva quando se trata dos meus brinquedinhos.
– Sabe que adoro isso em você – o gatuno piscou, incapaz de desviar do olhar azul estrelado que tanto o prendia.
Ambos congelaram naquela posição. Tudo que a elfa fazia para não intrometer-se, era fixar-se num pedregulho com disfarçado interesse em seu formato comum e tonalidade genérica.
As faíscas eram palpáveis no ar, compartilhavam como uma melodia harmoniosa melosa. Davam a impressão de que se beijariam ali mesmo, mesmo com plateia.
Quem ama de verdade não pensa antes de demonstrar seu afeto em público, pelo menos foi isso que Uyara escutou.
Raniela enfim pressiona a campainha, retornando pacificamente para o lugar.
Os ladrões mantinham-se um de cada lado da elfa, naquela posição seriam facilmente confundidos com guarda-costas. Contudo, existia uma clara diferença.
Primeiro, eram especialistas em roubar, mentirosos natos e, segundo, não a protegem. Foram pagos para servirem sua cabeça de bandeja para alguma entidade.
A sinfonia aguda retirou Uyara de seus pensamentos.
De repente, encarando a porta orvalho claro, de mais de dois metros de altura, sente ter encolhido e perdido preciosos centímetros de altura.
Atravessou uma extensa ponte, longe de qualquer solo ou segurança. Flutuava no ar, dando a vaga sensação de magia, servindo de fronteira entre Far Mystics e Water Mist.
O coração da elfa batia tão forte nos ouvidos que mal conseguia escutar ao redor. Caso se concentrasse, poderia discernir a brisa dos passos do outro lado do muro.
Aquele ambiente não tinha nada de mágico. De acordo com Raniela – se, por um acaso do destino, ela não estiver enrolando – o rio de águas claras está manchado por gerações de sangue inocente.
Uyara só consegue pensar na criatura injustamente envolvida na história. Seu nome fora usado como justificar atrocidades, taxada de abominação,
As trincas do portão se mexeram.
– O que querem comigo? – sussurrou, enrijecendo os músculos. Uma sensação desagradável se alojou em seu interior.
– Muito tarde para isso, não acha? – Raniela respondeu entredentes, sorrindo exageradamente – Talvez cortarem as pontas das orelhas e construírem um protetor personalizado bonitinho de inverno.
Uyara a sondou mortalmente por cima do tecido verde. Desejava ter o poder de enforcá-la com a força da mente.
Ramires tossiu seco.
– Sem papo, meninas...
O grande portão foi aberto, revelando um homem imponente de dois metros. O brilho prateado da armadura sensibilizou sua visão, refletido nos baixos feixes lunares.
Não enxergava o rosto. De qualquer jeito não o reconheceria, aparentava estar oculto, não só pela luz natural, como também pelo capacete.
– Vieram a mando de quem? – a voz cavernosa arrepiou os cabelinhos de Ramires. Parecia estar dentro de uma concha espinhosa.
Raniela espera o amado dar as informações, contudo foi recebida pelo silêncio. O gatuno demonstrava estar concentrado demais na proporção dos ombros e do tronco tonificado do homem.
A ladra sorriu amarelo, ignorando a situação desconcertante.
– Temos uma encomenda para Vossa Alteza – simulou uma pequena reverência, evitando o sondar ardente lhe inspecionando.
Os olhos atentos percorreram um por um, examinando as roupas exóticas e sentindo o cheiro engraçado. Os sujeitos na extremidade da coisinha encapuzada usavam itens chamativos combinando, de um couro legítimo, mas de muito mal gosto.
Deixá-los entrar seria implorar para perder o emprego.
– A encomenda, qual seria?
– Está aqui, muito bem embalada – Raniela empurrou Uyara, a oferecendo como um tributo ou um simples sacrifício mesmo.
Ela andou para frente contra sua vontade, desequilibrando-se por uma fração de segundos. Fechou a expressão.
– Eu não sou uma encomenda – retrucou, unindo as mãos no colo e as apertando, abafando a irritação.
– Shh.
O guarda encurvou-se, reduzindo sua altura para olhar a encapuzada devidamente. Dava para sentir a desconfiança através da lataria.
– Então o que você seria? – apertou a lança, pressionando contra o solo áspero – Uma assassina, por acaso?
A elfa engoliu.
Um pontinho dourado atiçou a curiosidade da elfa. Aquele ângulo não favoreceu, mas, ao que tudo indica, tratava-se de um broche.
Uyara inclinou-se, praticamente tombando a cabeça para trás.
Por reflexo, Ramires empurrou o capuz de volta, ainda vidrado na estrutura invejável do homem coberto de metal. Definitivamente não é qualquer engomadinho que entra pra guarda.
– Ah, eu sou uma encomenda! – declarou, dando-se por vencida. Prendeu um suspirar pesado, mal conseguindo respirar.
– Viu? Notifique Vossa Alteza, por obséquio – Raniela utilizou um tom eloquente rebuscado, as bochechas doendo de tanto sorrir – E não esqueça de comentar sobre o pagamento.
O guarda fez que sim, levando os dedos para o pequeno buraco do capacete. Um assobio agudo irrompeu os ares, arrancando um sobressalto de Ramires.
Raniela o observou, compelida ao constrangimento.
– Desculpe, eu me assustei com a... – fez gestos imprecisos, arranhando a garganta e afugentando o tom desafinado – Foi uma surpresa. Coisa besta.
Uyara riu baixinho, contrastando com Raniela que, impulsivamente, bateu na própria testa.
O homem de metal sussurrou no ouvido do colega, demorando um pouco na conversa, antes de dispensá-lo, a mão na lateral da cabeça em saudação.
– Vossa Alteza confirmou – deu um passo para o lado, analisando com certa graça oculta a maneira que o gatuno estufou o peito – Estão liberados.
Raniela comprimentou silenciosamente, puxando a elfa pelo braço e ela, por sua vez, levou um Ramires hipnotizado para dentro.
O guarda marchava na frente deles, abrindo a passagem e os guiando. O interior tinha a estrutura semelhante à de uma vila, com exceção das pilastras marmorizadas na parte externa e um jardim ornamental.
Plantas simulavam movimentos corporais, alternando entre humanos e animais majestosos. O tom de verde fugia do ordinário, entrando no fantástico.
Uyara passou por certas flores que, gerações de Wild Blows, não testemunharam. Cores vívidas, representando uma rica aquarela.
Ramires tremulava por nenhuma razão aparente, alternando entre o homenzarrão que os guiava e o restante dos guardas que os seguiam.
– Atenção com Vossa Majestade – alertou ríspido, recebendo confirmares firmes e sem palavras.
Raniela admirava os arredores, tão impressionada quanto a própria elfa.
– Uma pintura legítima de Dom Peregrino dos Lêmures – apontou para a obra, em que um campo de girassóis se espalhava pela paisagem. No lugar das pétalas, bananas donas de um amarelo claro – Preciso pegá-lo para mim antes de sairmos.
Murmurou a última parte, o azul cintilante fascinado.
– Aqui não é um brechó – retrucou Uyara num sussurrar delicado, porém repreensivo – Não pode simplesmente sair pegando o que lhe agrada.
– Meus impostos estão em dia, perita – subiu um ombro, jogando um beijo para a elfa desacreditada – Não só posso, como vou.
Uyara abre a boca, tentada a explicar que não é assim que funciona.
– Não é um homem, é uma máquina mortal – Ramires cochichou petrificado, escancarando a boca.
– É só o que tem a dizer? – a elfa pisca, enrugando a testa. Alternou entre o casal, uma cleptomaníaca incurável e o outro...
Analisou o gatuno, vidrado no guarda como se fosse um reflexo seu.
O outro tinha questões pendentes consigo mesmo, necessitava de uma dose extra de autoconfiança e amor próprio.
– A colônia dele é gostosa. Onde posso achar? – ponderou, puxando o frescor mentolado com um leve toque de chuvisco.
Raniela conteve um salto, inclinando-se para falar com o amado.
– Podemos roubá-la também – sugeriu, sorrindo de orelha a orelha – Mas daremos preferência pro quadro.
Ramires assentiu, nitidamente empolgado com o futuro produto.
~~~~ ⎈ ~~~~
Levou o punho prateado à porta.
Abriu passagem para os entregadores e o pacote, todos arfando, tomados pela exaustão de uma luta de espadas.
Uyara sentia as coxas pulsarem devido ao esforço. Subir lances de escada e dar voltas em alas de chão aveludado, desgastaram seus músculos adormecidos.
Raniela e Ramires se prontificaram em sua frente, espalmando as mãos na porta branca. Seu entorno era coberto de entalhes, simulando ondulações e sopros de ventania.
As orelhas da elfa se contorcem, sentindo o peso do guarda.
Sondava os três, estranhamente focando na encapuzada. Na outra parede, havia outro oficial encostado, contribuindo na cobertura da área.
– Trate de se comportar – Ramires mandou, lançando-lhe uma olhadela cortante por cima do ombro – Depois que recebermos pode morder, gritar, bater...O show completo.
– Desde que eu morda vocês, acho válido.
Apertou os punhos, contentando-se em sorrir sem mostrar os dentes.
Raniela bufou e, simples assim, a porta do cômodo já encontrava-se aberta. Uma fraca iluminação ardia em pontos específicos, não pegando o quarto todo.
Espaçoso, o tamanho equivalia a sua casa inteira na aldeia. O canto direito unia uma sequência de armários num tom de creme, dispondo de travesseiros espalhados de uma maneira organizada.
No teto desenhos brancos texturizados seguiam em direções variadas, transmitindo a sensação de pinceladas. Bem no centro estava um círculo, logo abaixo dele uma cama de casal rosada, coberta por uma camada fina de tecido transparente.
Uyara percorreu o violino, traçando sua textura com os dedos. Somente de tocá-lo pôde sentir uma breve melodia se formando.
O instrumento mantinha-se exposto num tripé, há um degrau de diferença da cama, das duas cômodas e do ursinho pimpão.
A elfa tinha conhecimento sobre materiais e reconheceu traços de madeira maciça em sua construção. Diferente de outros sintéticos, aquele exalava qualidade.
– Vejo que se apaixonou por Amélie.
Raniela largou o botão de ouro de imediato.
Ramires congelou o dedo no ar, ameaçando encostar no focinho da pelúcia.
Uyara parou, seguindo a voz solene. Deparou-se com uma silhueta na varanda, movimentando-se tão leve ao seu encontro que praticamente deslizava com graça.
O cabelo castanho claro adotou uma tonalidade loira, ao passar pelas chamas do candelabro. Eram presos numa trança envolvida por fios rosé, descendo até a cintura.
– Diferente de outras, ela não é uma amante delicada – parou em frente a elfa, mostrando a ponta dos dedos repleta de riscos e feridas superficiais – Mas não seria divertido se fosse fácil demais, não acha?
Uyara assentiu, hesitante.
Da mesma forma que a examinou, ela também estudou a elfa de cima a baixo. Não dava a impressão de reduzi-la a uma posição inferior ou a um mero pacote.
– O que estou fazendo aqui? – sentiu o mínimo de segurança para perguntar, deixando o violino de lado.
– Fico contente que tenha perguntado – uniu as mãos no colo, encolhendo os ombros – Gosto de responder perguntas. Às vezes fico tão sozinha que não tenho com quem conversar, sabe?
Uyara não soube o que dizer na hora.
– Sinto muito – comprimiu os lábios numa linha incerta – Solidão é uma das piores coisas que alguém pode sentir.
A desconhecia sorriu, exibindo o brilho genuíno dos dentes brancos. Uyara quase teve os sentidos ofuscados.
Aquele simples sorriso valia um milhão de barras de ouro.
– Não sinta, não é culpa sua – abanou a mão, dando a entender que aquilo não era relevante no momento – É o peso da coroa.
A elfa entreabre os lábios, passando a entender o que aquilo significava.
Estar ali, naquele ambiente novo com perfume de rosas frescas e chiclete, denunciava estar na presença de uma herdeira real. Uma verdadeira nobre.
Um pigarreio interrompe a troca amistosa entre ambas.
Raniela reduziu a distância, limitando-se a manter seis passos seguros da alteza. Conduziu o corpo para frente, reverenciando.
– Falando em peso, essa é a maneira que nos referimos ao dinheiro na minha amada Espanha – insinuou, arqueando as sobrancelhas bastante sugestiva.
Ramires balançou a cabeça como um cachorrinho eufórico. Se tivesse um rabinho, estaria o agitando animadamente.
A princesa suspirou, retrucando subitamente.
– Ninguém se importa.
– Comme?
– ¿Como?
Indagaram em uníssono, demonstrando parte de sua incompreensão.
Uma pequena linha marcou a testa de Uyara. Soou um tanto suspeito a maneira que rapidamente perdera a postura com o casal.
Talvez seja porque os ladrões tiram qualquer um do sério, até o mais são e de aspecto angelical.
– Golfinhos saltitantes... – coçou a garganta, unindo as mãos e as pondo embaixo do rosto – Irei acertar com vocês mais tarde. Enquanto isso, Cedric vai dar um adiantamento pelo serviço impecável.
A elfa segurou uma careta, sabendo bem que impecável era um termo exagerado para definir o seu rapto.
Ramires, assim como Uyara, pareceu não acreditar, ao contrário da amada que recebeu a notícia com um sorriso amplo.
– Onde está esse bom homem? – fingiu vasculhar a área, apertando os olhos azuis.
– Cedric – bateu as mãos levemente, seguido do arrastar da porta no chão gélido – Acompanhe nossos trabalhadores, dê um vislumbre de seus merecidos ganhos.
O homem de estatura mediana com um monóculo surgiu batendo os pezinhos. Parou em frente da dupla dinâmica, indicando para a saída.
Ramires conteve um sorrisinho travesso.
– Ele é de verdade? – esticou o indicador, pretendendo tocar a ponta do nariz gordinho quando foi recebido por um tapa – Merde! Porquoi a agressividade?
– De verdade o bastante para você? – a princesa zombou, sugerindo que os acompanhasse – Basta não perdê-lo de vista.
O casal seguiu Cedric. Raniela praticamente saltitava em seus saltos, perdendo a compostura, tratando-se do próprio pagamento.
Uyara acompanhou as costas bem vestidas se distanciando, de repente, Ramires parou. Girou os calcanhares e virou para as garotas.
– Espero que não guarde rancor deste francês, manquer – tirou um chapéu imaginário da cabeça, inclinando-se charmosamente para frente – Espero que encontre o que procura.
Ou quem, balbuciou, enfim.
Disparou uma piscada.
O tipo de gesto genérico, vindo de um charlatão galanteador. Contudo, no fundo, a elfa sentiu que ele sabia mais do que quis demonstrar para si.
A porta se fechou, deixando as donzelas sozinhas dentro do cômodo grandioso. De repente, o silêncio reinou sem aqueles dois.
– Está escutando isso? – indagou a princesa, cobrindo o ouvido com a mão em busca de qualquer som.
– Não... – demorou um pouco, concentrando-se no ambiente ao redor – Nada.
Ela fez que sim, brilhando de alegria.
– Exatamente! – agitou as mãos, passando por Uyara e a convidando para juntar-se a ela no canto do quarto – Isso merece um chá em comemoração. Lhe agrada?
– Não seria de todo ruim nesse momento – confessou, sentindo o peso desses dias cair com tudo sobre seus ombros.
Uyara a seguiu, procurando alguma mesa ou talheres chiques. No meio do amplo quarto, não existia nada do tipo.
Ela aproximou-se de um dos armários, rodopiando sua saia leve como um conjunto de notas musicais. Cada gesto da princesa era uma melodia agradável de se ver.
Os dois polegares apertaram a maçaneta de metal. O móvel cor de creme se desmontou gradualmente, revelando uma mesa redonda e entalhada pelos mesmos símbolos do teto.
– Voilà!
Mostrou o móvel fantasioso, com um ar de mágica. Um conjunto de xícaras fumegantes se dispôs, combinando com a tonalidade clara da parede.
Surpreendida, Uyara pega uma almofada, incapaz de disfarçar o encanto.
– Não sabia que o Sul escondia essas coisas – sentou-se primeiro sob os joelhos, depositando as mãos cuidadosamente nas coxas – Bem versátil a criatividade local.
A princesa fez o mesmo, afofando a almofada com algumas pisadas antes de, finalmente, sentar-se com a leveza de uma pena.
– E econômico também! Te garanto – a boca torceu num sorriso discreto. Envolveu a alça do bule, despejando o conteúdo em sua xícara – Hortelã?
– Por favor – Uyara estendeu sua xícara, sentindo os dedos formigarem conforme o conteúdo quente preenchia o vazio – Um frescor é sempre bem-vindo. Ainda mais para disfarçar esse...
Interrompeu a si mesma, percebendo os olhos atentos da princesa.
Demonstrava estar dedicada a escutar, fazendo uma parte adormecida da elfa se sentir especial. Nem se comparava com a forma que a tripulante a olhava, mas já era alguma coisa.
Não estava sozinha.
– Concordo plenamente – disse, rindo baixinho – Não a parte do fedor, porque meu nariz não funciona. Tudo tem o perfume do nada absoluto.
Uyara soprou a xícara, analisando a feição através da fumaça.
A pele branca e os contornos levemente rosados davam a vaga impressão de admirar uma boneca de porcelana. No entanto, Uyara não sentia que a princesa tinha a fragilidade de uma.
– Nasceu assim?
Ela fez que não.
– Acidente – pegou um cubo de açúcar, jogando de qualquer jeito e fazendo o líquido espirrar – Nem sempre minha casa foi essa fortaleza, com guardas à disposição e muros que quase chegam aos céus. Há alguns anos, sofremos um ataque.
– Vieram atrás de você?
Levou os dedos atrás da nuca, subindo até o pontinho. Toda vez que o tocava antes de dormir voltava para a fatídica tarde.
– Atingiram minha cabeça com força – fixou-se na xicara, sua presença ali, mas a cabeça longe de tudo aquilo – Mas antes tive o infortúnio de quebrarem meu nariz.
Comentou com a suavidade de um tapa enluvado.
Os olhos de Uyara saltaram, precisou conter um engasgo. Havia recebido muita informação em poucos minutos de conversa.
Mal pôde imaginar o choque de ter seu lar invadido.
Em contrapartida, pode descrever com exatidão a sensação da fumaça se entranhando em seus pulmões e invadindo cada cavidade de seu corpo. Bastava apertar as pálpebras para se aprofundar na lembrança dos gritos desesperados.
A princesa aguardou o açúcar se dissolver, focando na maneira que os cristais se desprendem e afundam tragicamente.
Uyara passou os olhos pelo quarto digno de contos românticos. Cada vez que encarava os candelabros e a varanda, se perdia em páginas de livros.
– Reparei que simpatizou com Amélie. Gosta de música?
A elfa assentiu com um sorriso sincero.
Música era uma das maneiras do povo de Wild Blows manifestar sua gratidão pela vida. Todos os finais de semana, após uma árdua semana de trabalho, uniam-se nos jardins principais e cantavam.
Tim era especialista em batucar em troncos. Dependendo de seu humor, até acompanhava, cantarolando uma canção que só ele sabia.
Um sonido de garganta afugentou suas memórias.
– Você deve ter conhecido outra amante minha – limpou a boca levemente com o guardanapo, dobrando o papel usado antes de botá-lo na mesa – Amélie não é a única que me feriu.
Apertou a região do peito, pressionando o decote.
– Acredito que eu não possa ajudá-la – respondeu abertamente, movendo-se desconcertada pela maneira que era analisada – Não conheço ninguém porque não sou daqui.
A princesa riu.
Um sopro fresco e adocicado. É a definição de princesa dos contos de fada, a rainha branca, a fada boa do mágico de Oz.
– Sejamos francas, cadela – manteve a postura impecável e o sorrisinho cortês, diminuindo o tom sereno a um sussurrar – Sou boa em responder perguntas, mas não trabalho com mentiras. Caso insista em recorrer a este meio, posso perder o gosto por respondê-la, assim.
Estalou os dedos.
Uyara franziu o cenho, de longe não sendo o que esperava de uma princesa. Ela não fazia jus a essência de bala que usava.
– Agora, seja uma boa encomenda e me conte sobre aquela que partiu meu coração.
Conteve a ira, apertando a porcelana refinada até os nós ficarem brancos. Seria um crime arremessar um conteúdo fervendo na cara da futura herdeira do trono?
– E quem seria a infeliz? – indagou, abafando o tom passivo agressivo com a xícara de chá.
– Ora, mas não é óbvio? A essa altura pensei que já soubesse – pendeu a cabeça para o lado, semicerrando os olhos – Talvez seja menos astuta do que imaginei.
– Desembuche – ralhou, recebendo um arquear faminto da queridinha do reino – Vossa Alteza.
A elfa completou a contragosto, transformando as linhas contraídas da boca num sorriso afável.
Ela brincou um pouco com o conteúdo quente, balançando com a colherzinha de um lado para o outro.
– Rosa dos Ventos ou, melhor dizendo, Kai – inclinou-se para frente, algo distinto oscilando nas íris furta cor – Conte-me tudo o que sabe.
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