v i n t e e n o v e

Uyara tinha sumido.

A ideia consumiu a tripulante, levando mil e uma situações diferentes dentro de sua mente. Em sua maioria, coisas envolvendo lâminas cegas e vigílias entediados.

Acredite, pior do que um guarda seguindo ordens, era um com tempo livre de sobra e, de quebra, uma vontade repentina de acrescentar orelhas pontudas na sua coleção.

Desejou ardentemente que Rosa dos Mares estivesse brincando com seus sentimentos. Contudo, sabia que a jogada bem elaborada não combinava com o estilo intenso da ruiva.

Suas jogadas focam em ser diretas e precisas, não parte de um drama psicológico de mais de vinte capítulos desnecessários.

Teria que ter muita paciência para realizar tal coisa e, definitivamente, aquela mulher que mal aguentou nove meses de gestação, estava longe de ser o exemplo de mansidão.

– Onde está Uyara? – repetiu entredentes, alcançando o cabo da espada, perdido no chão.

A estranha conhecida faz um som de desdém.

– Então a coisa tem nome? Quem diria, vindo de você...

– Diga-me antes que eu arranque sua língua e dê para os tubarões – cortou, estendendo a arma e ameaçando com a ponta. A míseros centímetros de distância da feição presunçosa.

Os cabeças de salamandra em volta, enfim pareceram notar o alto risco de segurança que sua capitã enfrentava. Se dispuseram ao redor, cuspindo e rosnando.

Um sinal nítido de que aqueciam-se para avançar e interromper o conflito.

– Calma, rapazes – tranquilizou ela, levando as mãos ao lado da cabeça com um sorrisinho – Ela saiu de mim, não vai arrancar nada.

Desdenhou com um fraco aceno, como se a ideia de sua filha – mesmo que não oficialmente assumida – lhe atacar pra valer, fosse inacreditável.

Killian riu consigo mesmo, apoiando-se casualmente na amurada.

– Essa daí é cheia de surpresas – espremeu o olhar gélido, disfarçando o canto malicioso que erguia-se conforme analisava a tripulante – Totalmente imprevisível.

– Obrigada! É uma verdadeira honra! Esse é, de longe, o melhor elogio que já me direcionaram – simulou uma fraca reverência, durando segundos antes de retornar para a ruiva – Agora, deixe-me esclarecer. Genevieve veio de você, até Rosa dos Ventos, mas não Kai.

A mulher deu um passo à frente, arqueando a sobrancelha.

– Imagino que Kai tenha sido entregue por um barco a vela ou um crocodilo – zombou, tentada a comprar o desafio de tirar a outra do sério.

– É uma órfã. Sem pai, nem mãe – enfatizou, por fim, tomando o pulso da mais velha para si. Apoiou a lâmina contra a jugular, notando o ritmo da pulsação desacelerar – Me conte onde ela está.

Exigiu, uma última vez.

Rosa dos Mares estudou o semblante mergulhado em algo inquietante. Existia certo amargor nos contornos da feição debochada e, ousava dizer, algo atormentado preso no olhar castanho.

Bastava uma ordem para, pelo menos, dez de seus dezenove homens se prontificaram e darem um fim ao showzinho.

Mesmo assim, foi isso que saiu de seus lábios carnudos:

– Vamos até meu escritório, teremos mais privacidade – sugeriu, lidando muito bem com a posição entre a vida e a morte que se encontrava – Poderá se sentar. Confie em mim quando digo que vai precisar de um lugar pra cair quando receber a notícia.

Kai apertou a mandíbula, suavizando o aperto até quase libertá-la.

– Confiar em você? Nunca.

– Então espere até sua fadinha do bosque ser condenada eternamente a vagar no vazio – concluiu, cochichando como se fosse um segredo tórrido.

Contudo, sem perder a praga do sorriso convencido.

Ela reconheceu que a tripulante cederia. Seja lá o que cultivou com a criatura, criaram uma proximidade incomum e esquisita.

A tripulante finalmente a soltou, demorando-se um tanto na maneira que Rosa dos Mares se portava. Não sabia explicar, mas os gestos davam a impressão de serem ensaiados.

Rosalinda nunca se importou o suficiente para fingir, mas aquela situação em especial, ocultava algo além. Kai temia ser a única a não saber do que se trata.

– Me conte para onde ela foi. Não me desaponte – percorreu o corpo conservado e com algumas tatuagens de cima a baixo – Sei que é pedir muito, considerando seu histórico.

– Para onde a levaram, quis dizer – corrigiu, sinalizando com a cabeça para sua sala – Se realmente se importa, me acompanhe.

E, novamente, obedeceu a mulher que jurou desacatar. Pretendia ignorá-la até o maldito dia que recebesse o convite encrustado de pedras preciosas de seu funeral.

Mas Rosa dos Mares é imortal. Sua presença era inevitável e, consequentemente, sua influência perpetuava tanto em terra quanto nos mares.

O pior tipo de fantasma estava bem ali, a guiando para um cômodo isolado dos demais. Estupidamente Kai a seguia.

Encostou a porta atrás de si, notando uma pontinha escura e borrachuda bloqueando a ação.

– Pensei que tinha sido bem educada – Killian aproximou-se sorrateiramente, adentrando a sala e empurrando a porta com as costas – Ninguém nunca mencionou a importância de segurar a porta para os mais velhos passarem?

– Sabe a definição da palavra privacidade? – indagou pausadamente, batendo os cílios de uma maneira falsamente amorosa.

– Vem de privada.

Subiu os ombros, indiferente.

Kai estalou a língua, descontente. Optou por ignorar o comentário, não se dando ao trabalho de corrigi-lo ou mandá-lo catar uns cocos e enfiar naquele lugar.

– O que o dorminhoco pensa que tá fazendo? – tornou-se para a capitã sentada na mesa com uma postura impecável e o penteado intocado.

– Ele faz parte dessa conversa – apoiou os cotovelos na mesa, cruzando as mãos na frente do rosto – Por acaso isso te incomoda?

– Sabe que sim – passou para frente, puxando um caixote de feira e sentando-se desengonçadamente – Achava que seria um assunto nosso. O que ele tem...

Rosa dos Mares espetou o indicador no ar.

As pupilas dilatadas repousaram em Killian, mirando o homem como se o reduzisse a um utensílio de cozinha. A diferença é que um objeto ainda teria sua utilidade.

– Olhe bem para Kai, Kill – pediu, num tom de comando. O pegou desprevenido, considerando as rugas desentendidas em sua testa – Trate de olhar para ela imediatamente!

Elevou a voz, espalmando a mão na mesa.

A tripulante segurou-se no lugar, sentindo o sondar de seu antigo capitão queimando a sua nuca. Os inteligentes obedecem e os burros contestam, não sobrevivendo para uma próxima vez.

– Reparou nas roupas?

Killian analisou despreocupadamente a extensão dos tecidos. Uma amostra de seu guarda-roupa e das quinquilharias que guardava embaixo do piso.

Ele fez que sim.

– Responda, esponja marinha!

– Sim, capitã! – bateu firme contra o assoalho, empertigando o queixo – Reconheço a procedência do conjunto charmoso!

Uma pequena linha marcou a pele da tripulante.

Não compreendia onde Rosalinda pretendia chegar com aquilo, no entanto, a sessão interrogatório renderia várias memórias caricatas do rosto estragado de Killian.

– Esse conjunto pertenceria a quem? – perguntou, estendendo a conversa intencionalmente e pretendendo alcançar o que buscava.

– Ela surrupiou – rangeu os dentes, esmagando os dedos atrás das costas com a intenção de evitar uma explosão de fúria.

– Não foi isso que perguntei – censurou ríspida, jogando-se casualmente para trás e apoiando os saltos impecáveis na mesa – Tocou na garota?

Kai parou na mesma hora, sentindo uma fisgada incômoda em seu peito.

Garota.

Não minha filha ou minha criança.

Talvez aquilo realmente fosse o que significasse para si, somente uma garota qualquer que saiu de dentro da sua vagina.

– O...O que?

Engasgou, preso entre buscar fôlego ou buscar meios de se defender.

Como comprovaria o fato de que podia sim ter se atraído pela tripulante insolente e seu temperamento complicado, mas que nunca – em hipótese alguma – teve chance de tentar algo?

Só a possibilidade de tocá-la o faria se sentir um covarde emasculado, sem amor próprio e visivelmente sadomasoquista. Ele era o responsável pela dor alheia e não o contrário.

Jamais! Eu posso ser um baiacu grotesco, mas não sou um monstro – balançou a cabeça, negando incontáveis vezes. Quase ficou tonto de tanto vetar a insinuação.

O homem implorou com o olhar para Kai que, em qualquer outra situação, riria alto e o largaria na sarjeta para sofrer.

Só que, naquele instante, era sua integridade que estava envolvida.

– Nossa relação é estritamente profissional. Ele é um carrasco e eu sou a vítima que convive diariamente com seus abusos de poder – a tripulante acrescentou, contraindo os lábios numa linha.

Rosa dos Mares alternou entre o mais velho e a mais nova. Killian exalava exaustão, com direito a bolsas abaixo dos olhos, marcados pelo lápis escuro e, certos fios brancos, espalhados pelo topete despenteado.

Kai, por um lado, tinha o cabelo castanho desgastado preso num rabo de cavalo alto. Suas bochechas aparentavam uma cor natural e vívida, distantes do tom pálido espectral que a vira na última vez.

A época em que fora aceita na guarda.

– Acredito em você – dispensou o homem com um gesto qualquer – Kai é areia demais para essa sua ilha deserta.

Killian jogou as mãos para o céu em um ato de clemência.

– Sereias me arrastem para o fundo do mar!

– Cuidado, Killian, pedidos podem ser atendidos – aconselhou, esticando o canto do lábio num sorrisinho bastante misterioso – Considere-se liberado.

Indicou silenciosamente para a saída, recebendo um muxoxo insatisfeito, seguido do ranger da porta batendo.

A tripulante sentiu a ausência do assassino impiedoso perfurando seus ossos. Não tê-lo no mesmo ambiente deixou de ser um alívio.

Agora queria o infeliz ainda mais perto, somente para pegá-lo desprevenido e perfurar seu sobretudo estúpido com a própria bala.

– Sabia que o seu amante matou cruelmente um inocente? – soltou ar pelo nariz, procurando contextualizar melhor. Não era a primeira vez que o homem decide matar por vingança – Sabia que ele tirou a vida de Mateo?

Rosalinda abaixou os saltos, recobrando a postura original.

Certa vez se lembrou de quando a capitã disse que ninguém é inocente o suficiente para ser poupado, ressaltou que existe diferença entre ter misericórdia e ser digno dela.

Kai sempre teve suas dúvidas e, agora mais do que tudo, tinha plena convicção de que, se ninguém é digno de misericórdia, Mateo não era ninguém.

O guarda acima de qualquer outro pouparia um ser por conta de outros dez e, dez seres, por outros dez. A matemática não fazia sentido dentro da mente embaralhada da tripulante, mas as contas batem.

Quando tratava-se de vidas, Mateo mostrava que cada uma delas valia a pena. Cada respirar tinha um propósito único.

Pena que o dele fora interrompido antes mesmo de se concretizar. De evoluir para algo maior.

– Eu sempre quis a memória, ser lembrada por grandes feitos e provar ser alguém inesquecível. Mateo nunca diminuiu meu desejo de entrar pra história, pelo contrário – puxou ar para dentro dos pulmões, pouco a pouco sentindo-se perdida nas frágeis batidas do peito – Ele foi um dos únicos que me apoiou.

– Tenho certeza que sim.

Kai fungou um pouco.

Aguardou um desfecho, uma conclusão para a frase inacabada. No entanto, aquele pareceu ser apenas o fim do final.

– Só isso que tem a dizer? – piscou, afugentando as lágrimas que embaçam sua visão.

– Sou péssima com consolações e lutos. Perdas em geral – franziu o nariz, dando o vislumbre do pequeno amontoado de sardas na região – Porque, afinal, eu sempre ganho.

Piscou sabiamente.

A tripulante segurou um revirar brutal de olhos. Já imaginava algo do tipo vindo da sensação dos mares e da tão procurada capitã audaciosa.

Tão audaciosa que, na primeira oportunidade, traiu a mínima confiança que tinha com sua filha e passou por cima de sua autoridade ao invadir o maldito castelo.

– Como pôde se envolver com um patife de alto escalão?

– Te faço o mesmo questionamento – retrucou solenemente, encurvando-se apenas para abrir a última gaveta e tirar de lá alguns papéis.

Kai ameaçou se levantar, mas o resquício de juízo – misturado com a exaustão de uma maratona e uma esgrima – lhe obrigou a permanecer sentada.

Jogou os braços para frente, apoiando os cotovelos nos joelhos.

– Não tive escolha. Quando alguém te arremessa de um barco em movimento como uma caixa qualquer, a pessoa só agradece por estar viva, tentando continuar a vida e evitar a sensação de ser descartável.

– Feche essas pernas, autopiedade não combina com você – falou por cima da pilha de folhas, as unindo e batendo contra a madeira – Pelo visto, o único descartado nessa história foi seu capitão.

Seu capitão.

Engraçado continuar escutando isso, mesmo tendo feito tudo que fez.

Acreditou piamente que, após roubar o barco e deixar a tripulação presa num bar, perderia uma das únicas redes de apoio que decidiu acolhê-la.

Rolou a língua pela bochecha, entrando involuntariamente num modo nostálgico.

– Killian veio a calhar por um tempo – apoiou o queixo na palma, sustentando o crânio pesado – Certa vez eu fui encarregada de preparar o café, achei que um potinho engraçado tinha queijo, mas era puro óleo de coco. Ele ficou uma fera.

Deixou escapar o fantasma de uma risada. Uma lembrança da gargalhada entretida que deu no dia.

– Ovos mexidos ou melados?! Bagres arranquem meu braço...

Lembrou-se vivamente da careta que deu ao engolir. O barulho da comida oleosa escorregando pela glote quase arrancou um gorfar dos marujos.

Rosa dos Mares interrompeu o lá e cá da caneta. Ergueu os olhos, fixando-se na tripulante, as engrenagens de sua mente trabalhando.

De repente, a feição concentrada deu espaço para um sorriso simplório.

– Ele devia gostar mesmo de ter você a bordo, caso contrário, serviria de isca para aqueles crocodilos de estimação que ele insiste em manter no Caribe – bufou, abanando a mão e expulsando as distrações – Já não basta ter um babuíno pulguento...

– Percy.

Hm? – murmurou incompreendida, uma pequena ruga

– O nome do imediato de Killian – juntou as mãos na frente do corpo, batucando o pé num ritmo recém criado – Acha mesmo que o nome dele é esse?

– Do bichinho de estimação ou...

A tripulante lançou uma olhadela tediosa para a capitã. Havia se esquecido como era desgastante tentar manter um diálogo consideravelmente normal com ela.

Lembrava a si mesma, nesses momentos.

Os mais insuportáveis possíveis.

Rosa dos Mares jogou as madeixas caídas nos ombros, para trás. O volume era invejável e as pontas travavam o mesmo caminho, sempre ondulando como as ondas no final.

– Qual é o seu, Kai? – indagou, veneno escorrendo da boca carnuda e bem hidratada.

Kai apertou o maxilar odiosamente, contendo a fúria de se espalhar por sua corrente sanguínea. Lamentou não ter sua arma por perto.

– Ele está te enganando. O que ganha seguindo ordens de alguém que não seja ele?

A ruiva soltou um longo suspiro.

– Piratas enganam, querida. Da mesma forma que são enganados – realizou gestos imprecisos, diminuindo o tom a um cochichar – Mas não significa que gostem dessa última parte. Da mesma maneira são os filhos.

Kai abriu e fechou a boca, travada.

– Isso fez algum sentido para você? – levantou uma sobrancelha despenteada, sinceramente interessada em saber.

– Pra você não? Quando for mãe...

A rebelde interrompeu com um dedo. Rezava para que a ação simples não tenha denunciado o quanto tremulava.

– Você não...Nunca foi uma mãe. Não pra mim – levou o punho a boca, apertando a região. O movimento leviano de ombros revelou uma breve risada – Mas apoio continuar se redimindo cuidando do bebezão de sobretudo e lápis de olho.

Continuou a folhear as páginas, pressionando um carimbo o outro na superfície áspera. Naquela posição demonstrava ser uma verdadeira superior.

Nunca a observou desse modo, talvez como uma chatonilda com fetiche em dar ordens e ter o ego massageado. Na época da adolescência, claro.

– Está grandinha demais para crise de ciúmes, hm? – mal se deu ao trabalho de olhá-la diretamente, concentrada em coisas importantes que não seja a presença da filha que não vê a mais de três anos – Tente não se exaltar.

– Me exaltar?! Você nem me viu chegando perto de... – bateu os pés descalços no chão, sentindo o roçar incômodo da madeira. Fechou os olhos, massageando as pálpebras – Você me enrolou, me nocauteou e me fez perder um emprego estável e consideravelmente aceitável pela sociedade.

– Quem quer ser aceito pela sociedade? Coisa brega – desdenhou, assinando rapidamente e passando para o outro documento – Só escuto asneiras, mas ainda guarda a bússola.

Kai interrompeu o movimento ansioso dos dedos.

Precisou segurar o instinto de tocar o objeto escondido, por cima da roupa. Apertou a própria coxa, entreabrindo os lábios.

– Ou estou errada? – insinuou, recebendo um franzir raivoso e um rosto retorcido. A mulher respirou fundo, parando o balançar fluido da caneca – Veja bem, não é normal prender sua gente, querida. Te ajudei a enxergar o que aquele rei pirimbolão quarto, não permitia. Estamos quites.

Abriu um sorriso exagerado de canto a canto.

Não, pelo contrário. Você me deve uma, bem grande e gorda – impôs com um rosnar, arqueando as costas – Ficaremos oficialmente "quites" quando você desembuchar sobre a tal "coisinha" que vivia comigo.

Fez aspas com os dedos.

A ruiva encarou o gesto com um semblante exaurido. Pela primeira vez na tarde aparentou ter a idade que tinha.

– Ah, certo, essa coisa. Bastante desagrádavel descobrir isso – manteve subentendido, arrancando um cruzar de sobrancelhas malcriado de Kai – Tudo bem pegar garotas, também tive minhas fases...

– O que?! – elevou o tom, calafrios invadindo toda extensão de seu corpo e concentrando-se na boca do estômago.

– Só estou querendo dizer que é normal experimentarmos e, quando gostamos, repetimos a dose mais de uma vez – simulou estar entornando um copo, dando uma piscadela – Posso até listar os nomes e garanto que vai reconhecer algumas famosas...

Kai levou as mãos aos ouvidos, os esmagando. Desejou encolher até evaporar ou reduzir a cinzas.

Pela primeira vez amaldiçoou falar essa língua e entender perfeitamente cada sílaba evasiva que escapava pela boca daquela mulher.

Ela abria e fechava incontáveis vezes, parecia estar presa num redemoinho infinito em que não se calaria até ver a própria filha espumando pela boca.

– Eu não peguei ninguém! – balançou os braços num ato desesperado.

Um murmúrio encabulado escapou de Rosalinda.

– Ela te recusou?

Kai deixou um muxoxo escapar, recebendo uma encarada inquisidora da capitã. Um ponto enorme pesava em cima dos fios rubros.

A tripulante dispensou a situação desconcertante com um aceno, passando uma perna casualmente por cima da outra e cruzando.

– Então, pretende contar quem levou Uyara ou preciso ameaçá-la novamente? – indagou, transformando a boca contraída num sorriso afável – Caso faça questão, em último caso, posso pegar algum item de decoração e pressioná-lo contra sua garganta.

– Poupe saliva, querida – inclinou-se para frente, ladeando a cabeça. O movimento simples levou seus cachos volumosos para o lado – Suas ameaças vazias não vão salvar sua coleguinha da execução.

Kai esmagou os dedos num punho trêmulo.

Pensou em várias possibilidades, cogitou que, após o incidente na Umu's, decidiu fugir e seguir por conta própria. Talvez teria sido melhor se isso tivesse acontecido.

Preferia que Uyara tivesse escolhido lhe deixar, do que ser levada para longe contra sua vontade. Para piorar, Kai sequer havia notado seu sumiço.

Manteve-se ocupada demais bebendo e trocando confidências num bar fedido, incapaz de se preocupar com qualquer um ou qualquer coisa fora daquelas paredes.

Em pensar que sentia estarem progredindo no relacionamento conturbado de inimigas declaradas.

Não passava de uma egoísta de merda.

– Pela cara realmente não devia saber – fingiu limpar a poeira da mesa, passando o dedo pela extensão cinzenta – Uma pena, considerando que aquelas ratazanas enxeridas a pegaram algumas noites atrás.

– Malditos sejam Raniela e Ramires – praguejou, pendendo o pescoço para trás e soprando enfurecida.

Os próprios – murmurou entretida, os olhos brilhando de uma maneira que faria o coração de qualquer um parar de bombear sangue – Francamente? Não sei o que veem nos franceses, gentinha mais sem graça.

– Simpatizante das bestas marinhas – xingou, amaldiçoando toda existência de arruaceiros metidos que invadem a vida dos outros e roubam o que tem de valioso.

Rosa dos Mares aprumou-se no assento.

– Já foi mais esperta, docinho. Anda bem devagar para uma não pirata.

Kai engoliu o puro nada.

Era como a elfa lhe chamava.

Rosa dos Mares continuava a falar, mas o som fora abafado pelo turbilhão dentro da tripulante. A rebelde levantou de supetão, sentindo a necessidade de se mexer.

Ficou parada por bastante tempo. Quanto mais cedo agir, mais cedo Kai encontraria a elfa com o belo pescoço intacto e, acima de tudo, respirando para ameaçá-la com o arco toda vez que se comportar mal.

– Vai ser assim?

Kai ajeitou-se minimamente, fechando os últimos botões. Ainda estava seminua e com apenas uma bandagem gasta sustentando os seios, mas nada que a impedisse de invadir as águas douradas.

Coçou a garganta.

– Fui da guarda, uma vez. Deve conhecer bem a história.

– Fiz parte dela – tirou um chapéu invisível da cabeça, mostrando certo orgulho. No entanto, a faísca orgulhosa ocultava um sentimento distinto – Mas ter feito parte do grupinho não mudará o fato de que a elfa será executada.

A tripulante cessou seus passos, percebendo que andava de um lado para o outro. Tudo ao redor se dissolveu, resumindo apenas as vozes sussurrantes de sua mente.

O efeito da bebida passou, mas restava uma pequena vozinha que, raramente, dava as caras. Sua consciência.

Os olhos castanhos mergulharam em suplício.

– Leve minha cabeça no lugar.

Rosa dos Mares a examinou de cima a baixo, não crendo que tais palavras altruístas – desequilibradas, diga-se de passagem – saiam do mesmo lugar que o sorriso atrevido.

Kai aproximou-se da mesa, apoiando os braços na superfície maciça.

– Me leve e faremos uma troca. Você fica com a recompensa, farta para um ano de expedições ou até mais, caso souber administrar seus gastos.

– Eu sei administrar muito bem, obrigada – interrompeu de cara fechada, uma pontinha de ofensa ondulando pela língua – A única forma de se manter como um pirata é exportação e importação. Nosso serviço é precioso, discreto e lucrativo.

– Não há porque recusar. Você fica com a recompensa, eu fico morta – propôs, apertando a mandíbula com a incerteza pinicando por baixo da roupa – Ganha duas vezes. A filha que você nunca quis ter e o dinheiro que sempre desejou para esbanjar por uma vida inteira.

– Desse jeito parece que eu sou a vilã – apertou a fonte, puxando a musculatura tensionada do pescoço.

Os lábios de Kai subiram num sorriso escarnecido.

– Fique tranquila, você não é agradável de odiar, nem carismática o suficiente para ser uma – reconforta provocativamente, coçando o queixo.

– Escute a loucura que está dizendo. Ouça a si mesma pelo menos uma vez – pediu solicitamente, apontando exasperada – Sacrificaria sua vida miserável por uma...

Kai inclinou-se para frente, desafio cintilando no olhar.

– Uma pessoa? Sim – respondeu pausadamente, colando a língua no céu da boca – Ainda mais se for uma pela qual estou apaixonada.

Enfim confessou.

Uma brisa fresca de alívio a rondou e, a tal pressão estranha em sua caixa toráxica, afrouxou. Quase se sentia livre.

A mulher nada disse, intensificando o sondar crítico. Não demonstrava se preocupar com a tripulante rebelde, mas a possibilidade de perdê-la por mais do que alguns anos, provocou um desconforto em suas entranhas.

Perder a vida era algo definitivo, não existia coisa mais irreparável do que perder o outro para a passagem do pós-vida.

– Existe uma morte mais digna do que morrer por amor? – a voz se distanciou, não passando de um suspirar enfraquecido.

É assim que fica sem ela, fraca.

Estupidamente patética e sem o menor senso de orientação. Uyara era o seu Norte, o seu Sul, o centro do seu mundo.

– Morrer por uma causa – retrucou avidamente, apoiando os braços atrás da nuca e espreguiçando-se na cadeira.

Kai soprou uma risada, sem humor.

– Diz isso porque nunca amou – Kai afirmou, deixando Rosalinda desnorteada. Aquele era o poder da honestidade agindo – Disse que não trabalhava com mentiras, lide com essa verdade.

O semblante estarrecido se perdeu. Um véu sombrio cobriu as linhas expressivas, puxando a figura imponente para longe.

Fixou-se num ponto distante, as palavras mal saindo:

– Eu amei seu pai – confessou dolorosamente, apertando a caneta por baixo da mesa – Amei tanto que, quando você nasceu, não sobrou nada para te dar.

Ele tirou tudo de mim, completou.

A tripulante arfou.

– Você nem sabe...

O ambiente foi tomado pelo silêncio.

Um almíscar familiar rondou aqueles ares, misturando-se com a fragrância de vinho tinto e o sal da brisa.

– Você sabe – retesou a feição, congelando sem saber como lidar com aquela informação – Sabe quem é o meu pai.

– Você não vai viver o bastante para conhecê-lo – ergueu os ombros, disfarçando a dor pulsante com falsa indiferença – De nada adianta eu revelar.

– Todo esse tempo e...– afastou-se um passo, percorrendo o semblante de alguém que pode não mentir, mas esconde – Retirou o meu direito de vê-lo.

Rosalinda amassou a boca, contraindo a mandíbula.

– Ele fez menos do que fiz por você. Sequer sabe que eu engravidei, aquele bastardo de barba por fazer e braços...

Chega! Não preciso de um discurso! – ergueu as mãos ao lado da cabeça, vagando inquieta de uma extremidade do cômodo para outra – Sinceramente? Não me afeta em nada, eu não me importo o suficiente. Nunca tive pai, não é agora que pretendo ter um.

Aquele não era o tipo de conversa infeliz que pretendia ter agora. Não com uma coisa tão importante em jogo.

Simplesmente deu as costas, chegando perto da porta. A mão rondou a superfície gélida da maçaneta, hesitando por alguns lentos segundos.

Não queria mesmo saber, o que queria era a elfa de volta. Bem do seu lado, como foi todos esses dias tempestuosos.

Com ela lá, um raio de Sol finalmente preencheu Kai.

Periquitos andantes – chiou, dando um passo em falso para trás quando, subitamente, a porta se abre.

Dois homens corpulentos, cabeças largas e braços peludos surgiram pela passagem. Adentraram o cômodo com disfarçada calmaria.

Kai alternou dos brutamontes para a capitã sentada.

– Venham, bons homens! – chamou com a mão, sorrindo como se a conversa sobre o pai ausente da tripulante nunca tivesse acontecido.

O assunto era outro.

– Eu perdi alguma coisa? – indagou, estreitando os olhos, meio perdida.

– Imaginei que Isaac e Ricardo poderiam te ajudar na resolução dos seus problemas românticos – subiu e desceu as sobrancelhas, mostrando os homens como se fossem produtos de excelente qualidade.

– A não ser que eles tenham uma esfera mágica que me leve diretamente para o covil dos nobres, não vejo como os grandalhões podem contribuir.

– Não os subestime – balançou os cabelos ruivos, estalando a língua nos dentes com um ar decepcionado – Ela foi condenada por ser o que ela é, deveria saber disso antes de pisar em terras proibidas.

A tripulante apertou os dentes, carregando o peso da culpa.

Se não fosse por ela e aquela disputa tosca na Umu's, provavelmente estariam saindo da cidade com o tesouro que Uyara perdeu.

– Só quero salvá-la, sentir seu cheiro, poder tocá-la... – Kai passou os dedos afoitos pelo cabelo, puxando os fios desgrenhados para trás – Céus! Como eu desejava tê-la.

Rosalinda a analisou profundamente em silêncio. O contato insistente era intimidador, ocultando os pensamentos indecifráveis que se acumulavam ali.

Um pequeno sorriso brotou nos lábios fartos, menos vivo e mais caído. Kai teve a impressão de carregar uma pontada de tristeza.

– Se é isso que você quer – estalou os dedos, gesticulando para a tripulante malcriada.

– É o que eu preciso – afirmou com convicção, notando os subordinados se dispersando e saindo do lugar.

O mais baixo, de nariz alargado e sapatos pontudos, pegou um saco marrom e pesado e, o de pescoço alongado e tronco robusto, enrolava uma corda.

Quando a movimentação suspeita começou a fazer sentido, Kai recebeu um golpe certeiro contra o crânio.

A última coisa que escutou foi a gargalhada estrangulada de Killian e alguns disparos. Não soube definir se a última parte realmente aconteceu ou se foi um fruto da sua mente atordoada.

Ao apagar, sonhou com Mateo.

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