t r i n t a e c i n c o

Sempre foi alguém esperançoso. Kringle e o restante do vilarejo a definia como insistente quando, sabia muito bem, que sussurravam pelas paredes o quão tola era.

A verdade era que não se enquadra em nenhum dos adjetivos.

Em dias de Sol ou chuva, sempre buscou se aventurar nos bosques e florestas, tudo isso para conseguir o conforto de ter o que comer ao final de uma semana exaustiva. Caçava por sobrevivência, não hobbie.

O que muitos não entendiam é que era obrigada aquilo. Não era ser uma pessoa com esperança – até porque, Uyara acreditava piamente que ninguém podia ser esperançoso, mas sim ter esperança. Como qualquer outro sentimento.

Sua família era o bem mais precioso, o único que tinha certeza de que estaria lá em tempos tempestuosos de guerra e carência. Mas, para mantê-la unida, era preciso se sacrificar.

Noite após noite, manhã atrás de manhã.

Simplesmente não podia se dar ao luxo de parar.

Talvez só tenha parado, de fato, quando embarcou no navio desconhecido e seguiu a procura de Tim. Quase três semanas desde que saiu de casa – para evitar usar a palavra desagradável fugir.

Não bastou um mês para finalmente ficar à beira da morte e ser sacrificada em praça pública. Algo que, definitivamente, não estava em seus planos de resgate épico.

– Nem tente fugir, coisinha repugnante – o homem de odor questionável e caninos faltando ameaçou, liberando os pulsos das amarras fortes – Não torne as coisas mais difíceis.

A elfa o encarou, sem expressão.

Não tinha o que dizer, nem forças o suficiente para se defender. Ainda se questionava como conseguiu enfrentar a tripulante rebelde e domá-la facilmente quando se desentendiam.

Ali, naquele ambiente hostil, cercada de desconhecidos carregados de ódio e rancor, não passava de uma presa encurralada. Uma casca vazia.

Às vezes a realidade é dolorosa e, por muito tempo, cogitou a mínima possibilidade dessa dor ir embora. Mas sabia que, sem ela, não seria ninguém.

Histórias existem como frutos da dor.

Uma superação dela ou, simplesmente, ao se entregarem a ela.

Geralmente, quando a última opção ocorria, era o fim da jornada do mocinho. Não cabia condições de sustentar expectativas da existência de um futuro próspero que jamais chegaria.

Naquele instante amaldiçoado, Uyara decidiu ceder. Os calos na sola do pé ardiam, entrando em contato com a madeira podre das escadas, subindo o palanque sem hesitar.

Os sons de vaias e uivos misturavam-se com o assobio inconstante de seus tímpanos. Depois da amistosa cirurgia na cartilagem, os pobres ouvidos pareceram dar defeito.

Apertou as pálpebras, segurando o espasmo repentino ao escutar um disparo. Olhou para os lados, vasculhando através do Sol da tarde o indício de algum atirador.

As cabeças juntas a sufocavam apenas de olhar, mas nada de errado. Quer dizer, nada fora do comum – afinal, podia fazer uma lista do que estava errado, mesmo que não fosse lida ou considerada pelos demais.

Um tiro fantasma.

Sua mente oscilou, arrastando seus pensamentos para o meio de uma nuvem cinzenta. Tentou afugentar as fisgadas no crânio com um movimento de cabeça, mas as dores demonstraram ser mais insistentes do que ela.

Mancando, seguiu para o meio, ignorando o objeto cortante de menos de 1,50 que se mantinha acima da tábua desconfortável com espaço o suficiente para abraçar um pescoço humano. Pelo visto, a realeza não deixou velhos hábitos morrerem com seus antigos governadores.

Estavam um pouco atrasados. Existiam métodos mais rápidos e que faziam menos sujeira, mas quem era ela, além de uma futura executada, para reclamar?

Empertigou o queixo, corrigindo a postura com o intuito de não demonstrar se abalar. E, realmente, não estava tão assustada quanto imaginava.

Durante suas sessões de conversa com a princesa – bastante práticas, por sinal – desligou o botãozinho interno que se deixava afetar por qualquer ato desumano alheio.

Em outras palavras, apanhou tanto que se encontrava em um estado vegetativo, como um tubérculo. Tinha se conformado.

De repente, outro tiro rompeu os céus.

A elfa atreveu-se a encolher, mas voltou a ficar ereta quando, mais uma vez, percebeu que tudo não passava de um fruto da sua mente confusa. Uma pequena reprise de algo que aconteceu, mas que...Por alguma razão aparente, estava distante.

Massageou os pulsos, sentindo a pele queimada sensível ao toque. O brutamontes não tem vocação nem para dar um mísero nó.

– Contratam qualquer um hoje em dia – resmungou, baixo. Os olhos quase saltaram para fora, um lampejo de surpresa aparecendo assim que a própria voz chegou aos ouvidos.

Irreconhecível.

Parecia mais áspera, como aquelas rochas pontiagudas e íngremes que se aglomeravam em torno de penhascos mortais.

Uyara arranhou a garganta, se forçando a engolir o nada.

Os rostos, que antes não passavam de borrões, começaram a tomar forma. O público era diverso, alternando entre mulheres com filhos – desde bebês inocentes, até crianças desorientadas que, como qualquer súdito obediente, seguia gritando sob o efeito manada – e, sobretudo, senhores e senhoras meigos.

Um resquício afiado de memória ressurgiu, obrigando Uyara a franzir a testa. Retalhou os nervos como se não passassem de trapos velhos, rasgando sua consciência.

Kai havia disparado na cela.

Para libertá-la.

Apertou os dedos ansiosos contra o colo, amassando o tecido. A coloração era de um branco tão opaco que resultava em náuseas.

Isso explica o porquê seus tímpanos decidiram parar de funcionar corretamente. Só não justifica os fios loiros roçando em seu braço.

A não ser que...

– Tim!

Como pôde ter se esquecido do irmão? De ter escutado sua voz, sentir seu calor invadir o frio em seu interior.

Só podia significar uma contusão. Era a única explicação plausível para não se recordar de, enfim, tê-lo reencontrado.

Um som engasgado ressoou pela plateia, uma espécie de risada.

Uyara estava disposta a deixar passar, mas, para sua infelicidade, assimilou o barulho e a curiosidade levou seus olhos na direção do homem barbudo caolho.

– A criatura sabe falar! – brandou, mais abismado do que horrorizado.

A elfa torceu o nariz, sem se dar ao trabalho de sair do lugar. Contentou-se em dar seu melhor sorriso mordaz.

Uma postura distinta da qual costumava adotar, mas sua convivência com Kai contribuiu para aprimorar seu padrão de etiqueta em horas como essa.

– Não só sei, como pretendo usar a palavra perfeita para defini-lo agora – tentou arquear as sobrancelhas, mas a testa enrijeceu, intensificando seu sondar sobre o desconhecido.

Ele não pareceu abalar, desdenhando com o sorriso torto.

Uyara fingiu procurar pelos lados, repousando novamente no sujeito petulante e malcheiroso como um gambá molhado.

– Sabe, um bagre velho como você não devia sair de casa sem acompanhamento familiar. Seus filhos sabem onde o senhor se meteu? Ah, espera... – estalou a língua, parando um pouco – Não deve ter filhos! Que cabeça a minha! Nenhuma mulher teria relações com um sujeito tão imundo.

– Ora, filha da...

O sujeito estranho ameaçou erguer o punho, furioso.

Atrevida, respondeu com o mesmo sorrisinho irritante. No entanto, durou poucos segundos, já que ele escorreu de seu rosto no instante em que recebeu uma coronhada na nuca.

Deixou um gemido dolorido escapar, caindo de joelhos pela surpresa do impacto.

– Disse para não dar trabalho, inútil! – cuspiu o guarda que a escoltava minutos antes, rente ao seu ouvido – Não serve nem para obedecer.

Encurvou o corpo, espalmando as mãos na madeira em reflexo. Próxima dos dedos, notou nitidamente o estado deplorável deles, cheio de arranhões e ressecados.

Sentiu sua garganta apertar, o nó se formando conforme a vontade de gritar a sufocava. Desejou rebater, reagir e xingá-lo da pior forma possível.

Contudo, aquele não era o momento ideal para uma estrela conceder seus desejos. A única no céu era como uma bola de fogo incandescente, perdendo seu brilho vez ou outra quando uma nuvem passava, mas nunca sua intensidade.

A noite chegaria.

– Senhor, creio que já passou da hora – tossiu o homem de lata, menor do que o outro. Lado a lado, pareciam dono e mascote – A lâmina da igualdade logo perderá seu corte.

Sem uma resposta.

Uyara sabia que, apesar do silêncio, a figura pairava sobre ela, sondando sua respiração como um predador sedento analisava a presa. A elfa esmagou a boca numa linha frágil, contendo a sensação de desconforto em seu estômago.

Um pé pesado pressionou suas costas, lhe arrancando um grunhido. A força canalizou-se justamente nas extremidades atingidas pelos açoites generosos da princesa.

O guarda inclinou-se vagarosamente, sussurrando tenebroso.

– Tem sorte de morrer como uma de nós. Viveu como essa...Coisa – demorou-se a arranjar uma definição, rindo sem humor – Será abençoada com a igualdade. Julgada como gente.

Igualdade?

Segurou um riso dolorido, carregado de mágoa. A noção dos miseráveis de igualdade era pior do que as de crianças egoístas em época de escola.

A diferença crucial era que ninguém se recusou a dividir o lanche consigo. O buraco revelava ser bem mais baixo.

– Sinto informar que Vossa Alteza não chegou. Estava previsto sair de seus aposentos antes do pôr do Sol – comentou o baixinho, meio incomodado, meio distante diante da postura agressiva do comandante – Eu acho melhor esperar e...

Esperar?

Replicou o homem com fingida incompreensão, erguendo-se, finalmente desviando o olhar mortífero da pobre elfa caída.

Tornou-se para o mais novo, estufando o peito.

– Sabe o que diz a Constituição de Mist? – perguntou, recebendo um negativo hesitante. O superior assentiu, fazendo um gesto e convidando o outro a se aproximar – Sotaque forçado e orelhas pontudas são sinônimo de punição. Qualquer indício do diferente, deverá ser exterminado.

O menor simulou o movimento de engolir, prestes a travar.

Logo o comandante continuou, batendo a mão contra o ombro duro de metal. O gesto simples arrancou uma expressão de assombro do colega, Uyara quase podia observar os ossos esguios tremerem.

– Significa que não podemos deixar o público ansioso e esperando o espetáculo começar – concluiu, por fim.

Os cantos do lábio se levantaram, mas as esferas escuras mal brilhavam, vazias como duas bolas de carvão.

A elfa ousou encará-lo, sendo recebida prontamente com um puxão. O pé libertou sua coluna fragilizada, mas o guarda não a deixou. Não sem agarrá-la e forçá-la a se levantar a ponto de ficar pendurada como uma bonequinha de pano.

O monstro de armadura a trouxe para si, analisando seu rosto através dos buracos do elmo. Diferente dos subordinados que a percorreram de cima a baixo como uma sobremesa atrativa, tamanho ódio emanava do olhar que a derreteria ali mesmo.

Devolveu a encarada, sem emoção alguma.

– De bruços na tora – franziu o semblante carrancudo, indicando de qualquer jeito para o pedaço de madeira posicionado bem abaixo da lâmina.

O menor se aproximou com certa relutância, coçando a garganta.

– Senhor, desculpe a intromissão...

– Não. Não desculpo – cortou, simplesmente, sequer se dando ao trabalho de desviar da elfa – Volte a sua posição, meu jovem.

– Mas Vossa Alteza...

– Ela não está aqui por acaso, está? – perguntou retoricamente, dando uma olhadela brutal para o subordinado que, como um coelhinho, encolheu e abaixou as orelhas – Sendo assim, eu sou a autoridade. A não ser que queira se candidatar para ficar no lugar dela?

O pobre guarda cedeu, por fim, negando mil vezes com a cabeça. Acompanhou sorrateiramente ele se distanciar, descendo os degraus com calma disfarçada.

Uyara ainda pode jurar ouvi-lo resmungar que não recebia bem o suficiente para lidar com esse tipo de coisa. De fato, nenhum salário no mundo podia fazer jus às atrocidades que aquele cargo exigia cometer.

As esferas negras retornaram com tudo para si, emendando ríspido:

– E você, o que tanto olha? Não perca meu precioso tempo e se posicione no seu devido lugar.

A elfa piscou lento, ameaçando fechar os olhos.

Não restava nada de sua força e, agora, tinha o vislumbre de sua alma esvaindo pelos seus dedos. Calafrios percorreram a extensão dos membros, pouco a pouco a fraqueza dominando o que restava dos sentidos.

Foi empurrada para frente, não o bastante para derrubá-la outra vez, mas o suficiente para enrolar seus pés descalços. Desequilibrando por segundos preciosos, seguiu cambaleante até a lâmina que refletia os últimos feixes de luz.

Talvez aquela seja sua última visão.

Melhor do que focar no aglomerado de desconhecidos, fixos em sua desgraça, ansiando por sua tragédia inevitável e punição atroz.

– Triste que Vossa Alteza não terá essa visão – lambeu os lábios, arregaçando as mangas.

Sabe o que é triste mesmo? Não poder chutar suas bolas e empurrar minha flecha pelo seu rabo pomposo de soldadinho.

Cogitou rebater, mas prendeu a língua nos dentes e contentou-se em abaixar na altura da guilhotina. Inclinou-se para frente com uma calmaria sobrenatural, reduzindo o espaço até parar com uma distância curta alarmante.

Conviver com a tripulante lhe rendeu grande criatividade para comentários sujos, além de uma vontade insuportável de botá-los para fora sem medir as consequências.

– Caro povo leal e bondoso, – saudou a todos, depositando-se à frente da elfa, apenas para chegar ao lado e apresentar o corpo lamentavelmente inclinado – tenho o deleite de apresentar o que ocorre com os visitantes indesejados! Uma prova de que ganhamos, sim, a guerra entre os dois mundos.

As vaias evoluíram para gritos eufóricos, seguido de movimentos agitados de braços e lábios – assobiando incessantemente numa constante aguda.

Uyara pôde ouvir o sonido do sino balançar. O mesmo do centro da aldeia e o mesmo que anunciava o perigo iminente se aproximando.

O coração acelerado doía pelas batidas inconstantes, como se, no fundo, estivesse se preparando para o que fosse acontecer. Utilizava toda sua energia para contrair o músculo uma última vez.

Com os batimentos nos ouvidos, mal notou quando a contagem regressiva começou. Sua mente tumultuosa fez o favor de abafar os barulhos externos.

Só existiam as batidas frenéticas do próprio peito.

A cabeça ameaçava tombar para frente, consequência do peso do sangue, contudo, se dispôs a permanecer no lugar, rígida. Se fosse para morrer agora, que fosse com uma postura impecável e com a máscara da falsa determinação que tanto falavam que tinha.

– Ainda tem vagas disponíveis?

Uyara retesou os músculos.

O comandante parou, os dedos coçando para fecharem em torno da alavanca de aço, estranhamente moderna demais, em comparação com toda a estrutura antiga.

– Quem foi o infeliz...

A voz marcante transformou-se numa gargalhada gostosa. Uma do tipo que alguém dificilmente esquecerá.

Até mesmo a elfa que, não estava lá em suas melhores condições, tinha plena convicção que se recordaria daquele momento. O precioso momento que a viu.

Ergueu o olhar, passando apressadamente pela multidão. Buscava algo, mas nem sabia ao certo se encontraria quando, como um sopro fresco num dia quente de verão, encontrou um pontinho verde.

No meio de estranhos que a consideravam uma mera aberração – dentre outras palavras feias que evitou mencionar – uma figura se destacou, convidando Uyara a explorá-la, desde o desenho dos lábios encurvados, até os fios marrons.

Donos de uma tonalidade incomum. Única.

– Correção, a infeliz – retirou o capuz com maestria, podendo estar gargalhando animadamente a míseros minutos atrás, mas revelando o maxilar trincado e o castanho incisivo do olhar – Por que insistem em pensar que homens teriam a audácia de dar as caras assim e interromper uma execução? Tão clichê.

Decepção dançou no tom, alcançando as orelhas feridas de Uyara e trazendo certo alívio para as pontadas agudas.

Nunca podia sonhar que se despedaçou ao vê-la. Apenas se deu conta quando a silhueta estupidamente presunçosa, virou um borrão pelas lágrimas.

Sentiu um peso no assoalho podre, denunciando que o comandante também parou para observar a inconsequente que se revelou, antes mesmo de ter uma chance de acabar com a cerimônia.

– Tá aí uma coisa que não se vê todo dia – disse, coçando dispersamente o queixo. Uyara podia estar delirando pela falta de água, sono ou comida, mas jurou ver uma pontinha de interesse nos olhos comprimidos.

– Quero me candidatar – declarou em plenos pulmões, sondando o palanque com ar de superioridade. Dava a impressão de ser uma gigante em comparação com a grande estrutura apodrecida.

As íris intensas e tempestuosas alternam, indo da madeira, para a feição atordoada de Uyara. Indisfarçada graça marcava os traços levianos.

No entanto, não tinha a mesma presença como antes. Estava mais perto de um papel interpretado, como se fosse tudo ensaiado.

– Como?

O comandante piscou, confuso.

Kai ergueu a mão, segurando um pedaço de papel pardo orgulhosamente. O exibiu como se fosse uma espécie de troféu – ou uma espada pontiaguda letal.

– Peço uma troca – disse, simplesmente. O tom rouco de quem não bebia a dias se apossou da tripulante – Acredito que minha cabeça valha mais do que essa daí.

Indicou despretensiosamente para a elfa presa, como se não passasse de uma mancha na paisagem. Como se...

Não a conhecesse.

– Creio que não é assim que funciona – respondeu, prontamente, apertando a alavanca. Imobilizou a ferramenta, mas dava a impressão de que não se controlaria a tempo de terminar aquela conversa.

Não? Imagine só quando a insuporteza, digo, realeza, descobrir que seu cachorrinho de armadura negou não só prender, como executar a atual pirata mais procurada de todos os quatro ventos – arqueou uma sobrancelha, insistindo ao balançar o pedaço de papel tentadoramente – Deve ser novo no escalão ou chegou por meio de nepotismo, pouco me importa. No entanto, quero informar que fui a responsável por quebrar o nariz impecável e adentrar os aposentos reais com minha amável tripulação.

O homem desdenhou, pouco convencido disso.

– Pelo que eu saiba, Rosa dos Mares foi a encarregada da abordagem.

Uyara esmagou a boca rachada, acompanhando o lábio hipnotizante de Kai subir num fraco sorriso. Existia certa provocação ali, mas a tristeza se sobressaia.

Uma tristeza que somente a elfa conseguia ver.

– Rosa dos Ventos ao seu dispor – levou a mão ao peito, simulando uma reverência teatral.

Surpresa invadiu o semblante imponente do homem. Ele ameaçou encostar as sobrancelhas, esmagando os dedos contra a palma.

Apenas um sussurro assombrado lhe escapou:

– Não pode ser...

Uyara teve a vaga impressão dos dedos dos pés metálicos tremerem. Parecia estar em uma situação complicada de frio.

Ou, simplesmente, entrou em estado de choque ao perceber o nível da criminosa que se revelava prontamente para ele. Daria uma baita promoção.

– Minha morte significará mais para o reino – falou pausadamente, repousando inconscientemente em Uyara. O olhar fora tão carregado que quase tinha o poder de arrastá-la para longe daquele inferno – Me leve no lugar dela.

Uyara riu, transbordando incredulidade. O peito esmagado contra a madeira mal doeu, pelo simples fato de estar anestesiada demais com a situação atual.

Então o seu plano de resgate era se sacrificar? Muito impressionante e nem um pouco dramático da parte dela.

A fala da tripulante arrancou cochichos indiscretos e comentários perplexos, roubando a atenção da plateia para si. A elfa quase notava alívio se espalhando pelas íris, suavizando os cantos contraídos da boca.

Típico de Kai.

Só não imaginava que, além de impulsiva, a não pirata tinha tendências suicidas.

Como se não bastasse surrupiar seu capuz verde e dar um jeito de aparecer ali, no meio de todos os corpos suados e primitivos. Era a perfeita definição de colírio em meio a fumaça.

Forçou os olhos no cartaz, notando um desenho mal feito da feição arrogante. Nem precisa dizer que não fazia jus ao maldito charme de Kai.

– Míseros 500 denarios? Por favor... – revirou os olhos, as palavras deslizando pela boca como água seguindo o fluxo de um riacho – Só de eu ter pisado nessas terras, infringi a constituição e mais outros cinco regulamentos civis.

Não se orgulhava nem um pouco disso, obviamente. No entanto, chegou num ponto em que uma parte de si gritava mais alto e já não conseguia mais calá-la.

Essa parte se negava a permitir que alguém se sacrificasse por ela. Ainda mais quando esse alguém se tratava da não pirata.

Um lampejo de desentendimento transpassou pela expressão firme de Kai, uma breve amostra de como podia se desestabilizar facilmente quando Uyara estivesse por lá.

Disfarçou rapidamente com um sorrisinho, apertando o maxilar.

Bem, mas suponho que não tenha tantos anos de procurada como eu – apertou o papel com uma raiva contida, expondo os dentes unidos – Chegou agora e quer sentar na amurada? Continue tentando muito.

– Acha mesmo que não alcancei seu nível de infração em menos de uma semana? Não se conforma que eu tenha conseguido fazer o que você fez em anos? – levantou as sobrancelhas e, apesar da posição desconfortável, se sentiu bem pela primeira vez desde que foi levada para a forca – Me subestima, Rosa dos Ventos.

O infame nome dançou pela língua de Uyara como uma invocação antiga, arrancando um cintilar marcante, mas aborrecido, da rebelde.

Abriu a boca, prestes a contornar a situação quando, para a surpresa de muitos ali, um tom curioso irrompeu a multidão.

– Ela não devia ter presas?

Um senhor aleatório perguntou, interrompendo a discussão acalorada.

O tom foi baixo, mas não o suficiente para a tripulante amargurada deixar passar batido. Um sorriso felino despontou nos lábios cortantes.

– Dentes afiados?

Kai fez que não.

– Acreditem, a única coisa que Uyara tem de afiado é a língua – rebateu, transbordando divertimento em meio aquele caos.

– Mas e a boca? – uma curiosa pergunta, de repente.

Compartilharam murmúrios, aguardando com expectativa o que viria a seguir.

– Eles deviam ter boca? – completou, enfim.

Uyara apertou as pálpebras. Se estivesse com as mãos livres, massagearia o ossinho dolorido do nariz.

Essa, de longe, foi a pergunta mais estúpida que fizeram a respeito dos elfos. O pior de tudo era pensar que a mulher não tinha inventado e, sim, retirado a informação de alguma fábula que contavam para ela quando era criança.

Histórias incrivelmente tem o poder de moldar um ser vivo.

– Ah, sim – Kai demorou-se nos lábios da elfa, fazendo com que sentisse um calor apesar da distância abismal que as separava. As íris escuras subiram, acompanhando quando se aproximou lentamente – Garanto que ela tem boca, como podem ver. Uma tão macia e suave que ameaça desmanchar em contato com um simples toque.

O homem velho de antes assobiou, curiosamente próximo da tripulante. Não tinha para onde fugir, todos estavam no mesmo barco prestes a afundar.

Grudados.

– A gente precisa provar.

Uyara conteve um espasmo de puro nojo, contorcendo a bela feição em algo próximo de uma careta. Estava horrorizada.

Kai aproximou-se do senhor, o agarrando pelo colarinho da blusa e disparando o punho livre em direção ao rosto enrugado de uva passa, o derrubando.

– Nem em seus sonhos mais nefastos teria esse privilégio – rosnou, nitidamente consumida pela raiva e...Uma pontada de ciúmes.

Talvez.

O baque seco atiçou as pessoas ao redor, arrancando suspiros de assombro. Uyara precisou disfarçar o sorrisinho bobo que ameaçou crescer.

No entanto, nada que pudesse evitar o movimento saltitante do coração. Era quase ridículo os pulinhos empolgados que dava.

– Eu mereci essa.

Gemeu de dor, levantando o braço trêmulo e permanecendo estirado no chão.

O comandante pendeu a cabeça para o lado, alternando entre as mulheres com indisfarçada curiosidade. Curiosidade que, não demorou muito, para virar uma coisa mais azeda.

– Vocês...Estão de tré-lé-lé? – levou o punho livre à boca, fingindo ânsia.

A pergunta sincera rondou os ares, congelando os corpos ali presentes. Ambas compartilharam um olhar carregado de cumplicidade.

Abriram e fecharam a boca, indecisas.

Jamais tinham combinado uma resposta para tal indagação. Se ao menos tivessem um preparo ou ensaiado alguma coisa, por mais besta que fosse...

– Claro que não!

– Isso não é o nome de uma música?

Dispararam em uníssono.

A tripulante escancarou a boca, ultrajada.

– Claro que não? – replicou, incapaz de disfarçar o tom inundado de mágoa. Uma flecha cravada em seu tórax doeria menos.

– Não existe música nenhuma. Acabou de inventar – enrugou o nariz, desviando do questionamento.

Kai estalou, desafio cintilando nas íris castanhas intensas.

– Quer que eu cante ou...

– Cantar?

Seria uma serenata?!

O coreto de vozes volta com tudo, misturando as entonações, que se embolaram como palavras desconexas. Uyara não tinha cabeça para interpretá-los, nem queria, considerando que em sua vez de falar, simplesmente se negaram a escutá-la.

A maioria demonstrava um misto de emoções, mais contrariados do que carregando fúria. Algo menos hostil, em teoria.

Uyara avaliou o soldado pelo canto do olho, estranhando o silêncio. Encontrou o comandante impiedoso fixo ao longe, mais precisamente num pontinho curioso.

O centro responsável por mover a confusão. Kai.

– Você bateu no meu marido! – a mulher gesticulou, carrancuda e tão enrugada quanto seu parceiro nocauteado.

A tripulante levantou os braços na altura da cabeça, inabalável.

– Invista em uma coleira – aconselhou, falsa inocência crescendo em forma de um sorriso afável – Assim, na próxima vez que ele ultrapassar os limites, basta puxá-lo de volta.

E, simples assim, a coisa mais absurda ocorreu diante dos olhos da elfa. O homem entreabriu os lábios, algo diferente atravessando seu olhar vazio.

O movimento chegou a envelhece-lo, pequenas rugas manchando a pele cujo elmo não cobria. Uma espécie de reconhecimento despontou, distante, mas estava lá.

Não quis acreditar. Piscou várias vezes, se negando a considerar a mínima possibilidade de um vigilante da coroa encarar uma pirata foragida – um baita estorvo – com...Afeição.

Quando se deu conta, as esferas negras atormentadas prenderam seus olhos, impossibilitando que virasse para o lado. Era tarde demais para disfarçar, de todo modo.

Que coisa, Uyara! Seja mais discreta!

– Certo! Te dei palavras finais o bastante por toda uma vida patética – se recompôs, como se tudo não passasse de uma miragem. Firmou os dedos em torno da alavanca, sustentando a visão desorientada da elfa.

Torceu para o mínimo de piedade cair na cabeça do homem vil.

No entanto, aquela esperança que não existia, morreu de vez. Com direito a funeral completo, assim que reconheceu a penumbra retornou para o semblante robusto.

Não existia resquício do brilho, apenas restava o breu cinzento.

Capaz de devorar a elfa com uma dentada.

As vozes ainda estavam exaltadas e, por mais que o oficial prezasse pela atenção do público e o entretenimento, não avisou quando acionou o sistema. Nem se deu ao trabalho de chamá-los quando o som da lâmina roçando – descendo velozmente pela estrutura da guilhotina – atravessou os ares.

O barulho nefasto trouxe Kai de volta para a realidade, arrancando um suspiro sôfrego diretamente de seu âmago.

– NÃO!

Gritou.

Se despedaçou.

Empurrou os corpos suados, angustiada. Braços aleatórios vinham de todos os cantos para segurá-la, lhe obrigando a ver a cena cruel.

Diversos sentimentos ruins se apossaram de seu olhar, passando como um filme em preto e branco. Já era incapaz de discernir as colorações ao redor, focando na inimiga.

Tentou escapar dos dedos, em vão. Se debatia como um maldito peixe em terra firme, sem medir esforços. Praticamente sem fôlego.

Tomada pela covardia, esmagou as pálpebras. Apenas esperando o som certeiro do corte arrancando a cabeça do pescoço.

Os segundos passaram depressa e, o tempo, infelizmente não congelou magicamente. Foi quando a voz quebrou a tortura.

– Mas o que chimpanzés...

O barulho de estilhaços ecoou pela enorme praça. Alarmados, os súditos libertaram Kai com certa urgência, preocupados demais com a própria segurança.

Os cochichos viraram gritos e, os gritos, se transformaram em puro desespero.

– BRUXA!

– FEITICEIRA PERVERSA!

A tripulante enfim teve coragem para abrir os olhos, vencida pela curiosidade. Por favor, que não esteja morta, por favor, por favor...

Implorou para todas as entidades existentes, desde deuses, até criaturas cultuadas no meio marítimo. Por pouco não rezou para os mexilhões.

O comandante deu um passo errante para trás, ameaçando cair com as pernas bambas.

Nenhum respingo vermelho manchava o cenário, pelo contrário, a terra continuava em seu tom apagado e a madeira não podia estar num estado pior de decomposição. Nada novo.

Exceto por um pequeno detalhe brilhante marcando na pele negra de Uyara.

– O colar – sussurrou deslumbrada, sem disfarçar o sorrisinho convencido que brotava. Sabia que tinha alguma coisa mágica naquela garota.

Como...O que... – o comandante engasgou, caminhando para trás como um coelhinho assustado. Se pudesse, teria dado pulinhos para fora dali, o mais rápido possível – O que você é?

Uyara afastou-se da guilhotina, apoiando os antebraços para se levantar. Uma força sobrenatural surgiu do fundo de sua estrutura frágil e machucada.

Talvez fosse a visão única do homem de armadura – com digníssimos um e oitenta de altura – encolhido, contendo as gotas frias de suor.

– Sou uma elfa, panaca.

Declarou com vigor, bastando um passo a frente para o outro recuar. E, assim, foi se aproximando e ele, consumido pela covardia, buscou se afastar a todo custo.

Até cair pateticamente de bunda no solo, pulando um degrau.

Que bom que alguém além dela ficou traumatizado. É bem mais reconfortante ser o motivo da falta de sono dele.

Espalmou as mãos nas coxas, limpando resquícios de terra do vestido. Não que gostasse dele ou algo do tipo, mas precisava estar apresentável para finalizar seu oponente.

Um assobio roubou a atenção de Uyara, que torceu o pescoço quase imediatamente. Atraída pelo maldito sorriso ladino, notou uma diferença.

Não existia provocação, apenas uma coisa mais leve. Algo que a elfa não soube definir com palavras exatas, mas que, sem dúvida alguma, tinha gostado.

– Salva por um acessório de luxo – comentou, aproximando-se casualmente. Naquele andar inocente, habitava uma malandra nata.

Uyara guiou as mãos ao próprio pescoço, dedilhando a peça. Não bastava sentir o peso, precisava tocá-lo para saber se, de fato, estava lá.

Sua mãe ficará entusiasmada quando descobrir o poder da herança da vovó. Quem diria que uma caixinha de bijuterias guardava uma peça tão rara.

Que salvaria sua vida.

– Salva. Viva – repetiu, mais para si mesma do que para qualquer outro. Puxou ar para os pulmões, enfim parecendo respirar com qualidade – A coleira que mencionou demonstrou ser bem mais que um item de identificação.

Touché – esticou mais alguns passos, parando logo abaixo do palanque. A diferença de altura atiçava a tripulante.

Se coçava para avançar e pegá-la em seus braços. Beijá-la não seria o bastante, tinha plena consciência disso e, assim que o fizesse, precisaria dela todos os dias.

Ficaria viciada nos lábios em formato de coração.

– Isso foi...

– Francês? – completou, estranhando o sotaque pairando sobre sua língua. Soava meio melado, mas nada que fugisse muito do padrão francês de ser – Estou reconhecendo as diferenças dos outros e aprendendo a respeitá-las.

Uyara arregalou os olhos.

– Estou impressionada! – pincelou o indicador no lábio inferior, ameaçando encostar as sobrancelhas – Presumo que o que aconteceu com o senhor faça parte desse processo tão respeitável.

Kai fechou a cara.

– Aquela ratazana de bigode aprendeu a pensar antes de falar. Não respeito aqueles que desrespeitam os meus tesouros.

Uyara riu, mas a risada se dissolveu tão rápido quanto apareceu. Por um instante jurou ter escutado que...

Piscou.

– Espera, acabou de dizer que...

– Algo me diz que precisarei de uma dessas – gesticulou despretensiosamente para o próprio colo, fingindo alarde – Sou bastante procurada, sabe? Minha cabeça vale muito por essas bandas.

Uyara a observou com curiosidade, mas deixou passar. Conhecia a maneira da tripulante desviar de assuntos humanos, como mágoas e paixões.

Bastava saber daquilo, para ter certeza do que chegou aos seus ouvidos.

– Sei bem – respondeu com simplicidade, encolhendo os ombros delicadamente. Tão leve como uma folha flutuando num riacho – Também quis sua cabeça enfiada num mastro. Não os culpo.

A tripulante leva a mão ao peito, ressentida.

Ali, conversando com ela, não conteve o sorriso abobado. Sem ninguém ao redor, parecia que todo castelo pertencia a elas, aquele era o momento que podiam chamar de nosso.

– Então imagino que não queira mais – supôs, arqueando uma sobrancelha.

Uyara abre a boca, mas não é sua voz que sai.

Um som gutural irrompeu dos céus, atravessando as nuvens e se espalhando como um redemoinho na tempestade. O reverberar fez o chão tremer, levando ambas a trocarem olhares inquisidores.

Kai ergueu os olhos, comprimindo com a sensação de acompanhar uma grande sombra planando, não muito longe de onde estavam.

Coçou os olhos, culpando a falta de sono.

– Eu juro que eu não bebi – buscou se explicar rapidamente, tornando para a elfa que se preocupava em esconder a carinha travessa – Perdi alguma coisa?

Então...

A tripulante cruzou os braços sob o peito, dando a visão dos antebraços contraídos. Os músculos deixaram a elfa desconcertada por longos segundos, mas bastou um rugido para acordar do transe.

Kai pigarreou, sem deixar de estudá-la.

– Imagino que aquela seja a nossa carona – disse, por fim.

– Por acaso temos uma carona? Desde quando...

A confusão do semblante se desmancha, dando lugar a incredulidade e, depois, entendimento. Claro que não acreditava naquilo, porque entender era diferente de crer.

Só acreditaria vendo. Sem uma prova real de que não ficara maluca, nunca saberia discernir os acontecimentos passados reais e aqueles que nunca aconteceram.

Então os boatos dentro da aldeia eram verdadeiros.

– Sendo assim, é melhor dar uma rodadinha – simulou o movimento com o indicador, indicando para trás com os olhos verdes.

Antes de se deixar hipnotizar por eles, obedeceu.

Lentamente se virou, os membros enrijeceram assim que se deparou com escamas escuras cobrindo toda extensão do borrão voador. Ridiculamente próximos, podia acompanhar o movimento de subir e descer, provocado pela respiração.

O nariz do dragão dilatou, disparando ar quente e fazendo os fios revoltos da tripulante voarem. Aquela era a resposta de que precisava.

A voz amena de Uyara acariciou as orelhas da tripulante, como um afago que não pediu, mas foi muito bem-vindo.

– Ele é real pra você?

Nosso protetor cuspidor de fogo.

Kai hesitou, pairando os dedos pela face da criatura. As íris beiravam a um tom rubi, não muito vermelhas, mas não apagadas como o olhar de outros animais – era o complemento perfeito entre a chama bélica e fogo ordinario.

O melhor dos dois mundos.

– Real até demais – suspirou, afastando as lágrimas que se acomulavam. Reduziu o tom a um sussurrar, encostando a testa contra a pele escamosa – Nunca mais assuste a pequena polegar desse jeito.

Uyara tossiu, quase engasgando.

– Pequena polegar, hm?

A tripulante rebelde se afastou o suficiente para esfregar o antebraço no rosto, limpando a sujeira que Mateo causou. Infiltrou-se na guarda, fugiu da sua ex-coroada maluca, presenciou a quase morte da elfa duas vezes e, ainda, nem sequer tinha se dado ao luxo de sentir o luto pela vida do ruivo.

Não passava de um poço inútil de sentimentos.

– Cuidado para o apelido não pegar – cantarolou, o ar brincalhão trazendo certa luz natural para a feição angelical.

Uyara estava sentada no palanque, balançando as pernas como quem estivesse prestes a desbravar um novo mundo. Remoia sua curiosidade.

Nem parecia ter acabado de ter uma experiência de quase-morte e tortura psicológica completa. Talvez ela precise mesmo de um profissional da área.

Pegar? – insinuou, avançando perigosamente – Não se eu te pegar primeiro, ratinha.

A elfa sentiu o sondar insistente em cada ponto diferente do rosto. Kai tinha a típica expressão facial de uma criança entusiasmada com o doce, repleta de travessuras.

Um perigo.

Uyara ameaçou pular, numa falha tentativa de fuga.

Kai deu um passo à frente, intervindo antes que tivesse oportunidade de fugir. Alcançara ela prontamente, em outros dias, ofereceria cinco minutos de vantagem, mas não tinha tempo para ser justa.

O nó em seu peito ficava mais apertado e a impedia de se afastar. Ironicamente, já que, no ínicio de tudo, mal tinha vontade de encará-la.

Sempre ia de encontro às orelhas pontudas. Subiu a atenção para a cartilagem enfaixada, o embaraço dentro do peito prestes a sufocá-la.

Precisava desatá-lo, mas apenas será possível quando tocá-la. Envolver a pele macia e permitir que o calor de pura vida se espalhe pelos seus ossos.

Os monstros de armadura seguiam ordens, mas não os livrava da culpa. Dara seria a perdição do reino, acabaria com a pouca prosperidade entre os mundos.

Resultaria em outra guerra. Uma versão brutal de Wild Blows e, a prova viva disso, é a elfa machucada – os curativos não passavam de uma ação desesperada para manipular os súditos e ocultarem a tortura.

Algo estritamente proibido por lá, banido desde o último incidente com os franceses. Eles sequestraram vários inocentes e realizaram experimentos, do tipo que testava especiarias.

Uyara notou os punhos da outra fechados, ocultando ressentimento.

Kai soprou, entrando em contato com os dedos que roçavam distraidamente pela sua raiva contida. Sempre se negou a sentir o tão conhecido frio na barriga, lidava com ele como uma maldição.

Uma praga que tinha o dever de repelir.

– Te peguei – sussurrou rouca, depositando uma mão de cada lado das coxas, a imobilizando com gosto – Não vai fugir de mim.

Mas, naquele instante, diante da garota teimosa, a saudade tomou conta de seus movimentos, conduzindo os braços a passearem pelos arranhões.

Controlou o instinto de beijar cada ferida, parando no lugar.

A elfa retesou os músculos, estranhamente inquieta de repente. O rosto ia de surpresa para confusão, navegando pela feição determinada da tripulante.

Será que, se passarem da linha construída anos atrás, conseguiriam voltar? Arrependimento seria motivo suficiente para a outra esquecê-la?

A tripulante deu a impressão de ter escutado, demonstrando achar graça do efeito devastador que causava nos neurônios funcionais.

Kai inclinou a cabeça, as íris cintilando enquanto estudava Uyara com indisfarçado interesse. Daria todos os denarios do seu bolso para saber o que se passava em sua mente.

Se pensava nela, tanto quanto Kai pensou nelas durante o período distante.

– Você me marcou como nenhum outro ser existente nessa imensidão – dedilhou as linhas irregulares, priorizando movimentos suaves e contínuos, simulando pinceladas – Vim em busca de um tesouro e achei você, Uyara. Mesmo que só pensasse no seu irmão...

Uyara apertou as bordas da madeira. Agarrar coisas sólidas parecia tornar as coisas mais reais, incluindo o seu nome saindo prazerosamente dos lábios provocantes.

Subitamente uma nuvem escura nublou o semblante encantado.

– Espera – começou, pedindo passagem, rompendo o contato. Passou por baixo do braço e, por segundos, teve a certeza de que a desejou – Onde você deixou Tim?

Acompanhou silenciosamente a maneira que a mão levou os fios para trás da cabeça, os deixando num estado de bagunça irresistível. Naquele ritmo cederia e voltaria.

Contudo, era tarde. A pequena figura saltitante e loira dominou a sua mente, trazendo uma sensação pesada próxima do tórax.

– Eu não deixei ninguém em lugar nenhum – se defendeu, ignorando o bufar carregado do companheiro escamoso logo atrás – O que? Eu não minto!

Uyara jogou as mãos para o ar, perplexa.

– É mesmo uma irresponsável! – aumentou o tom, apontando acusadoramente para o torso da tripulante. O tecido cor de tinteiro contrastava com a palidez natural da pele.

A rebelde ergueu as mãos em rendição. Por mais que o nariz encolhesse de maneira sexy e a ruguinha da testa a convidasse a massageá-la, não compraria briga com a irmã urso superprotetora.

Seguiu com os olhos a elfa indo de um lado para o outro, ativando sua tontura.

– O mandei sair daquela prisão o mais rápido possível. Os guardas estavam se aproximando, simplesmente não pude deixar que ele fosse pego de novo – esmagou a boca, mordiscando o lábio inferior. Não se arrependeu do que fez, foi a melhor escolha para a segurança da criança, mas, mesmo assim: – Não podia, não depois de tudo que passou.

– Então mandou uma criança de treze anos sair correndo por aí, num ambiente desconhecido e perigoso? Pensando em mim? – respirou com falsa comoção, pressionando a mão no peito – Muito solidário da sua parte.

Kai apertou a fonte.

Treze? Com treze anos eu era deixada uma semana inteira velejando no cargueiro enquanto o restante da tripulação surrupiava as cargas dos reinos.

– E vejam o que se tornou – a analisou de cima a baixo, forçando o coração a permanecer nas batidas constantes. Era uma árdua tarefa não errar e pular para fora da boca.

A tripulante franziu o cenho, ofendida.

– E sua mãe por acaso era perfeita?

Uyara agitou as mãos, suspirando frustrada.

Precisou estabelecer centímetros de distância, prezando pela segurança da própria sanidade. No entanto, a não pirata parecia determinada em enlouquecê-la.

Kai pegou alguns centímetros para si, diminuindo o tom duro.

– Era o que dava pra fazer. Se ponha no lugar do garoto, vendo o cadáver da irmã – justificou, fazendo gestos imprecisos – Se eu não aguentei, imagine...

Se calou, interrompendo a frase antes que evoluísse para uma confissão. Sentimentalismo não era o seu forte.

Ainda mais quando a outra não parecia estar nas melhores condições para ouvi-la. Sentia a pressão do olhar assassino queimando seu rosto.

– Cadáver? Quem chamou de...

Um som abafado atropelou a elfa, impedindo que continuasse. Soou como uma espécie de grunhido, roubando a atenção de ambas até encontrar o dragão.

Mateo abriu a boca, revelando os dentes enormes e surpreendentemente brancos. No fundo da enorme boca, guardava um pontinho amarelo sorridente.

Uyara conteve um sobressalto, os olhos quase saltando para fora.

Tim, céus!

Kai levou o punho a boca, disfarçando uma risada indiscreta.

O menino cessou os movimentos de braços e pernas, deixando de lado o anjinho de baba. Seu cabelo, despenteado, grudava na testa, mas não demonstrou incômodo.

Não em comparação com a bela feição de Uyara contorcida, transbordando aversão.

– Aqui é confortável! – se aconchegou na saliva, envolvido pela camada grudenta. Mostrou mesmo estar maravilhosamente bem.

– Viu? Ele está seguro – deu uma pequena cotovelada na costela da elfa, arrancando uma encarada violenta.

– Seguro! Dentro da boca de um animal que a qualquer momento pode cuspir fogo! – disparou, dando uma pausa e tornando-se para Mateo, nitidamente insatisfeito pela escolha de palavras – Sem ofensas.

Ele faz um movimento simplório de cabeça, como se demonstrasse decepção. Era até engraçado, de certo modo.

Kai estalou a boca, erguendo os ombros indiferentemente.

– Antes na boca de um dragão do que com a cabeça pendurada na guilhotina – disse, simplesmente. Sua face entrava em combustão pela maneira incisiva que os olhos verdes perfuravam a pele – Só comentando, claro.

Uyara pressionou a testa com a mão, buscando controlar a vontade incontrolável de usar violentamente a mesma mão na tripulante.

Puxou ar para os pulmões, meditando.

– Ajudou bastante.

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