e p í l o g o
A CAPA VERDE
Uyara pulava habilmente, cercada de catarrentos agitados que nunca pareciam se cansar. Duas crianças mantinham-se apostos, cada uma segurando uma ponta da corda, balançando com surpreendente força.
Disposição era uma palavra que descrevia perfeitamente. Chegava a ser assustador comparar a elfa com um pequeno de mais ou menos meio metro de altura ‒ no entanto, com a clara diferença de que o cabelo cor de cobre e o sorriso brilhante carregava uma magia única.
Um feitiço que me imobilizava.
As vozes se misturam com o sopro do vento distante. Tento evitar decifrar o que significava o aglomerado de palavras sem sentido.
Além dos estranhos de sorriso torto e olhar vazio não passarem de meros desconhecidos sem valor, nada do que declaravam era confiável.
Inclusive promoções de toalhas macias importadas e lençóis indianos de cento e cinqüenta fios. Cinco por dois denarios.
Dois mil.
Assobio, uma promoção imperdível.
Percorro os tons fortes das barracas, uma mistura nauseante de cores vibrantes das estações quentes. A junção do fim do outono, com o começo do verão.
Uma amostra do quão irritante o comércio podia ser, não só no quesito de trocas e passadas de perna, mas também em toda sua organização forçada e aparência exagerada.
Chamativas demais. Um aglomerado de dor de cabeça, com direito a um ou outro comentário desnecessário ‒ do tipo, ei, você aí! Já pensou em comprar uma nova calcinha para aquela pessoa especial?
Um pigarreio me retira dos devaneios.
‒ Madame, algum dos produtos te encantou?
‒ Hm? ‒ solto um murmúrio, piscando algumas vezes. A vendedora ganha um foco, revelando seus fios esbranquiçados e manchinhas na pele enrugada.
Marcas do tempo que eu nunca teria. São essas coisas, tão simples e belas, que jamais se mostrariam em mim.
Sentiu o sol em seu rosto, o vento em seus cabelos, a brisa salgada beijando os poros. Riu e sorriu ao lado daqueles que ama.
Uma mera tripulante não tem esse privilegio. Convenhamos e sejamos realistas, nossa expectativa de vida é baixíssima.
O mar é traiçoeiro, mas é um lar para muitos de nós. Nele, aprendemos, crescemos e morremos. E, bem, a parte de morrer acaba chegando para muitos antes do crescer.
Não quero ser esquecida.
Percy cutucou meu ombro, remexendo o rabo com certa inquietação.
‒ Vejo que gostou desse.
Abro os olhos, observando com mais nitidez a tonalidade verde em contato com meus dedos. Sinto o tecido, atenta em sua maciez e na maneira que a suavidade lembra pétalas de uma flor.
A elfa surgiu em meus pensamentos, sua silhueta curvilínea se moldou, provocando uma série de reações indesejadas. Afago o tecido, numa tentativa de abafar o nó em minhas entranhas.
Uma idéia absurda e idiota.
Me trouxe a sensação de tocá-la.
Sequer me lembro de quando cheguei até ali ‒ naquela vendinha em especial ‒, tampouco como, mas apenas tento sorrir ao responder educadamente.
‒ É uma peça e tanto. Outch! ‒ engulo um xingamento, recebendo um puxão de orelha nem um pouco amigável do meu companheiro peludo ‒ O que te deu?
O mascote de Killian encolhe o corpo, balançando os olhos como um pêndulo, de um lado para o outro. Tento acompanhá-lo, mas acabo desistindo, percebendo o sondar estranhamente gentil queimando meu rosto.
A vendedora me encarava com indisfarçada atenção.
Não sabia a razão. Talvez suspeitasse que eu fosse roubá-la, talvez me reconhecesse de algum cartaz de foragida ou, talvez, eu tenha saqueado uma de suas mercadorias quando meu antigo capitão...
‒ Imagino quem seja o botãozinho dourado ‒ insinuou, os olhos sábios cintilando como quem ocultasse mil e um segredos.
‒ Botãozinho...
Replico desorientada, uma manchinha incompreendida manchando minha testa.
Minha reação serviu para arrancar um arquejar na senhora, acompanhado de uma risada em meio a suspirares. Teria mascarado meu sentimento de confusão se soubesse, mas já era tarde.
‒ Apenas alguém especial para nos deixar avoado. Essa sensação de ser puxado para baixo, mas de ter poder para sobrevoar qualquer barreira.
Estalo a boca, ocultando um sorrisinho maroto.
‒ Um pouco contraditório, não?
‒ Sentimentos são contraditórios ‒ inclinou-se para frente, pondo a mão na lateral da boca, prestes a contar um segredo ‒ Seres humanos não tem lógica.
Engulo com dificuldade.
Encaro os olhos escuros da estranha, ocultavam experiência, não só isso, como uma familiaridade inegável. Lá dentro, habitava a mesma silhueta que me assombrava durante meus dias mais calmos.
As íris claras invadiram minha mente, desmanchando todas as minhas convicções e alimentando as duvidas do meu subconsciente.
Desde que a encontrei, estava a mercê daqueles olhos verdes. Um tom que espelhava a vida, uma vida que talvez eu nunca vivesse o suficiente para ter.
Mas, ao lado dela, sentia que enfim teria essa vida.
Um puxão repentino em meu lóbulo me obriga a afastar as idéias intrusivas, trazendo-me para o presente.
‒ Calma aí, primata ‒ grunho, impaciente. Não deu mais de dois minutos, até a simples puxada evoluir para um apertar no nariz, forçando-me a encará-lo com raiva ‒ Seu problema é fome?
Percy negou inúmeras vezes.
Contenho um suspirar. Por sorte, a vendedora dara o devido espaço, conversando com a vendedora de bandeirolas da barraca vizinha.
‒ Me dá um tempo, pode ser? Estou tentando ser legal e negociar uma capa para aquela...
Elfa.
A palavra proibida por ali.
Me calo.
As lojistas se entreolharam por instantes, chegando a compartilhar deduções e tecer comentários a cerca dessa afirmação inocente.
Um sorriso amarelo se estica pelos meus lábios. Busco disfarçar como posso, mas é difícil ter uma reação natural quando senhoras te encaram com as bochechas rosadas e as sobrancelhas levantadas.
‒ Daquela mulher. Uma colher de açúcar na minha vida amarga ‒ concluo rapidamente, contudo, nem tão rápido quanto gostaria.
Precisei por as letras para fora e torcer para se unirem e formarem alguma coisa coerente. Antes que eu travasse e congelasse pateticamente.
Contudo, não satisfeito com o pouco de atenção que dei, o macaco teimoso agarrou as laterais do meu rosto e o virou abruptamente para a esquerda. Sem escolha, espremo os olhos, a procura do que quer que fosse.
Os arregalo, apertando a mandíbula com força.
‒ O que papagaios...
Levantei as sobrancelhas, sentindo os nós ameaçarem se embolar com os fios. Tudo ao redor desacelerou, as vozes altivas pareceram perder a entonação.
Senti as palpitações nervosas em meus ouvidos estourarem, piorando com o agravante da cena diante de mim.
No centro da corda, no lugar da silhueta alegre, ocupava uma criancinha de tranças ao invés da dona de uma pele negra vibrante e uma risada contagiante.
Uyara não estava mais lá.
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