Parte III

Acordo em um quarto totalmente branco, a cama é um pouco desconfortável e eu não estou sentindo muito bem a perna que outrora estava doendo. Desesperadamente a toco para ter certeza de que não a perdi. Assim que estou certa de que ela ainda está lá, solto um suspiro aliviado, mesmo que não a sinta ainda. Depois disso, noto que há uma pessoa comigo no quarto e ela parece bem cansada dormindo na cadeira ao meu lado. Observo com mais cuidado para descobrir quem é. Ainda estou desorientada, quando ela resmunga algo ainda dormindo noto que é Lisa, que continuava tão linda quanto quando a conheci.

Nada faz sentido na minha cabeça.

São muitas pontas soltas, nada muito claro, parece águas turbulentas que quanto mais encaro mais difícil de vislumbrar qualquer coisa fica. Minha cabeça começa a doer, decido parar de pensar por um instante e dormir. Quando o efeito desses remédios passarem, talvez eu consiga esclarecer tudo na minha cabeça para esclarecer para todo mundo fora dela. Quando volto a acordar Lisa não está em canto nenhum e pela claridade parca que entra pela janela deve ser dia. Subitamente sinto uma imensa vontade de fazer xixi, o quarto que estou não tem banheiro, porque obviamente eu não tinha dinheiro para pagar um seguro que cobrisse um quarto com banheiro... Minha perna formiga e parece pesar uma tonelada. Apoiando-me no suporte do soro, me arrasto quarto afora, louca para encontrar um banheiro logo. O silêncio do hospital — os barulhos eram os característicos de hospital, gemidos e bipes suaves — me dizia que era muito cedo, por isso não foi difícil achar um banheiro vazio. Sento-me na privada apressadamente, sempre fico muito apertada quando tomo soro e sinto alívio imensurável segundos depois. Ainda suspirando pelo alívio de esvaziar a bexiga, ouço uma voz familiar.

— Estou sempre corrigindo suas merdas, Peter, cansei. Não, não quero ouvir, por sua causa tô tendo que bancar a boa samaritana mais uma vez. — barulho de água, resmungos e muitas falas apressadas em inglês, não compreendo mais nada dali para frente, apenas que preciso falar com Ben imediatamente e longe de Lisa.

Lisa. Meu coração dói só de pensar nela.

Espero a pessoa se afastar para finalmente deixar o banheiro e, o mais rápido que consigo, me arrasto novamente para o quarto. Assim que entro, Lisa chega, sorri para mim e diz estar feliz por me ver acordada, mas que devo voltar para a cama. Sorrio e concordo, até deixo ela me ajudar. O bom de ser introspectiva é que ninguém estranha quando fico em silêncio, todos já estão acostumados com minha falta de empolgação e timidez. Lisa não é diferente, depois de alguns minutos ela diz que me deixará dormir e sai para buscar um café. Aproveito para procurar pelo meu celular, o encontro na mesinha do criado mudo e mando uma mensagem para Ben. Ele precisa me ajudar a pôr ordem nesse caos, ele sempre me ajuda.

Respiro aliviada quando ele responde com um joinha. Mas meu alívio se vai quando Lisa volta para o quarto acompanhada do agente Fourhouse. Eu gelo, simples assim. Porque o homem mal encarado é o mesmo homem que vi na Starbucks com ela há alguns dias. Eles não me viram, eu também não os tinha visto até ela me distrair do livro que lia, foi quando prestei atenção, estava prestes a me aproximar, mas mudei de ideia quando compreendi fragmentos do que eles falavam por causa do meu inglês capenga. Porém havia entendido o suficiente para começar a suar frio, afinal, eu era uma garota negra no mesmo quarto que um neonazista que não parecia nem um pouco em espírito natalino.

Nenhum dos dois estava com ar de muitos amigos e eu tinha que pensar rápido. Talvez quisessem me eliminar, talvez soubessem que eu tinha ouvido a conversa toda e não pudessem me deixar viva para contar a história. Não sabia, mas precisava descobrir. O suor começou a escorrer por minhas costas, mas não podia deixar que notassem isso. Ben... Será que ele fazia parte da conspiração também? Meu Deus, eu já tô ficando louca! Só pode! Não deve existir conspiração nenhuma. Tenho certeza que é tudo só um grande mal entendido. Respiro fundo enquanto vejo como se aproximam de mim.

— Trouxe um café para mim também? – tento brincar com Lisa, mas o problema é que eu não sou boa com interações sociais, então minhas piadas normalmente só são entendidas pelo Benjamin. Percebo por sua falta de resposta que não é exatamente um bom momento para tentar ser uma pessoa normal. Suspiro e deixo meus ombros caírem. Minha cabeça ainda estava um pouco estranha e seria melhor acabar logo com aquilo – Tá... Cartas na mesa... O que está acontecendo aqui?

Ben atravessa a porta do aposento abruptamente.

Agora estamos todos ali, encarando uns aos outros num silêncio de morte. Tenho a impressão que os três à minha frente escondem segredos debaixo do tapete. Meus Deus, até Ben envolvido nisso? O papai Noel negro, o tiroteio, o protesto... Até onde vai a ligação de tudo aquilo? Porque sinto que estou no centro de todas as coisas horrendas que aconteceram naquela noite?

— Anda! — eu insisto a eles. — Eu exijo esclarecimentos. Agora!

***

Nem por um segundo passou pela minha cabeça que o Agente Fourhouse e aquele tal de Peter eram, na verdade, a mesma pessoa. Muito menos que Ben e Lisa estavam envolvidos com o serviço secreto de inteligência máxima. Que Lisa, a mando da polícia, forçou aproximação com diversos grupos extremistas para tentar evitar um atentado previamente premeditado. Obviamente a polícia americana não conseguiu identificar a tempo que o ataque ocorreria na noite da estreia do papai Noel negro. A fatalidade que matou dezesseis pessoas, — noventa por cento delas afrodescendentes ou latinos, e deixou outras doze feridas, sendo eu uma delas — não foi promovido pelo grupo extremista que estava na mira do FBI, mas sim resultado do ódio de um único indivíduo. Seu nome: Rupert Martin. Um homem de quarenta e dois anos que atuava na promotoria pública de Nova York. Poucas horas depois do ataque, ele foi encontrado morto com um tiro na cabeça em um apartamento próximo do massacre. As motivações que o levaram a cometer tamanha atrocidade estão sendo investigadas.

Não que eu estivesse no ápice do meu espírito natalino, mas duas semanas depois aceitei passar a noite de Natal juntamente com Ben e Lisa. Nessa noite, eles me deram a notícia de que se casariam muito em breve, pois estavam grávidos. Evidentemente recebi a notícia com alegria.

— Ficaríamos felizes se você aceitasse ser uma segunda mãe para essa criança, Talita. Somos uma família e você faz parte da nossa história. — Ben disse afetuosamente.

— Não me faça borrar a maquiagem, Benjamin — falei, desconcertada e emocionada.

— Ontem eu completei treze semanas de gravidez — revelou Lisa.

— Tudo isso já?

— Uhum. — ela afirmou feliz, alisando a superfície da barriga. — Fizemos o exame de sexagem. Será uma menininha.

— Uma menininha? — indaguei encantada.

Ben retomou a palavra.

— Talita, hoje pela manhã, Lisa e eu estávamos conversando sobre a escolha de um nome adequado para a nenê.

— E vocês já chegaram a uma decisão? 

Os dois se entreolharam e assentiram com a cabeça, sorrindo.

— E qual é? — perguntei.

Quando eles disseram o nome escolhido, passou por mim uma imagem distante da minha família montando uma árvore de Natal.

"Mirella".

Fim.

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