Parte II

— Meu Deus, Talita, você está bem? — diz meu amigo me abraçando. O aperto e respiro aliviada. Ele está inteiro. Não era para ter sido assim. Deveriam ter esperado a gente ter saído de lá. Ben poderia ter se ferido, ou pior... Meu sangue gela com a possibilidade. — Está tudo bem, Talita. Tudo bem, já passou... — Tenta me tranquilizar.

— Não está tudo bem, Ben...

— Me falaram que o tiro te acertou só de raspão, logo vamos para casa. Os Johnson estão lá fora...

— Lisa está aqui? — pergunto em desespero. Lisa não pode estar aqui.

— Sim, ela está falando com um cara bem mal encarado, acredita que o tal de Fourhouse...

— Eu preciso falar com a Lisa, Ben! — exclamei me levantando, ou tentei, pois tudo escurece imediatamente e não fosse por ele teria ido ao chão. Para completar, minha perna queima para caramba. — Merda — resmungo sendo amparada por Benjamim.

— A senhorita não vai a lugar nenhum. A imprensa está pirando, vamos deixar os Johnson lidar com essa bagunça. Agora tome seu chocolate quente — Ordena pondo o copo novamente na minha mão, não sabia dizer quando o larguei. Meus pensamentos estão uma bagunça. Eu preciso falar com Lisa, mas também não posso parecer muito ansiosa. Ou todos vão saber.
Tomo meu chocolate quente, tentando parecer não muito ansiosa. Falar com Lisa sempre tem sido bom. Aquela garota tem uma áurea ou algo do tipo que deixa tudo mais leve ao redor. Um olhar e ela me deixa de boca aberta, uma risada e eu perco o chão. Acho que consigo esconder de todos ali, inclusive de Ben. Mesmo batendo um dedo na caneca enquanto olho perdidamente para o lado de fora, me perguntando se conseguirei manter a calma também perto dela, quando conversarmos.

***

Eu estou nervosa, é fato. Muita coisa aconteceu em pouco tempo e na pior época possível. Mas confesso que Lisa Johnson tem culpa na bagunça que esse chocolate quente está fazendo na minha barriga.

Foram poucos minutos que fiquei presa naquele canto da sala pelo olhar repreensivo de Ben, mas pareceu ser muito mais.

Lisa passou pela porta e meus olhos a percorreram de cima a baixo. Ela estava segura. O ar finalmente entra em meus pulmões me enchendo de alívio.

A garota baixinha de cabelo castanho e pele dourada corre até onde estamos e de súbito se joga contra o corpo forte do meu amigo, passando as mãos por seu corpo em busca de ferimentos depois do abraço.

— Ben! — ela suspira com um alívio idêntico ao que senti a pouco. — Graças a Deus, você está bem! — Ela olha pra mim e posso ver seus olhos vermelhos recomeçarem a marejar. Contra a vontade, tira as mãos de Ben e me abraça sem o mesmo entusiasmo. — Você também. Parece que uma tonelada deixou meu coração agora.

Ela segura uma mão de Ben e outra minha, levando até o rosto pra esconder a lágrima que caiu.
— Chega de chorar agora. — Lisa diz com um sorriso.

E enquanto eu ainda não entendia onde estava e o porquê, nem o que Lisa estava fazendo ali, senti a queimação se alastrando novamente por minha perna. Gemi. Ben se soltou da namorada me aparando novamente.

— Você não está nada bem, Talita. Vou procurar um médico — afirma se afastando. Lisa suspira. Meu coração continua acelerado e ouvir seu suspiro só o faz acelerar mais. Tempos atrás ela teria sorrido para mim e me abraçado apertado. Era estranho aquela situação. Eu não entrava na equação.

Quando conheci Lisa, há dois anos, ainda no Brasil, imediatamente a menina de intensos olhos castanhos me desestruturou. Senti coisas que nunca tinha sentido, mas simplesmente não consegui dizer tudo o que sentia quando não estava com a boca colada na dela, por isso Lisa me largou... Fiquei arrasada, foram tempos sombrios. Porém, Ben mais uma vez se mostrou a melhor pessoa do mundo e me ajudou muito. Uma ajuda foi tão linda que me fez criar uma admiração ainda maior por ele, que deu uma pequena diminuída quando chegamos em Nova York e eles começaram a namorar. Eu sei que Lisa o ama, mas antes de o amar ela me amava. É estranho vê-la namorando meu melhor amigo há seis meses, o amigo que se dizia apaixonado por mim e ela sabia, o amigo que sabia que eu era apaixonada por ela. Hoje minha sexualidade já está mais do que resolvida, eu me assumi, me aceitei. O fato é que não sei se gosto dele ou dela, sei que Lisa ainda mexe comigo e que eu estou sobrando nessa situação.

"O que estou fazendo? Não deveria estar pensando nisso novamente. Joga isso pra longe, Talita! Foca no que está acontecendo agora, ou melhor, no que não deveria ter acontecido."

— Lisa, o que foi que aconteceu lá fora? Você disse que as pessoas que chamou para o protesto de Natal iam soltar fogos e chamar atenção para o movimento do outro lado da praça e não que fariam um tiroteio. Era pra ser um protesto limpo, para ajudar crianças o ano inteiro e não somente fazer festas de fim de ano para manter as aparências na tv — Digo mais alto do que gostaria. Sinto minha perna ardendo.

Ela arregalou os olhos castanhos para mim e mexeu nervosamente nos cabelos curtos e deu um passo na minha direção.

— Fala baixo, Talita — pede piscando muito rápido e olhando ao redor. As pessoas não nos encaram, afinal, não entendem português. — Era um protesto pacífico, eu realmente não sei o que aconteceu. Estou tão perdida quanto você — afirma a beira das lágrimas. Suspiro, mas não é de alívio.

— Eu não entendo, Lisa, eu... — minha frase morre na boca quando vejo um homem de preto entrando e caminhando na nossa direção. Eu conheço ele. Sinto uma fisgada na perna, tiro de raspão não deveria doer tanto, pelo menos acho que não, pois meus pensamentos ficam ainda mais confusos quando sinto uma nova fisgada na perna e no pescoço.

Mais uma vez apago.

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