Capítulo VI - Entre pipocas, pios e afirmações inconclusivas
Uma semana havia se passado desde a morte de Dave.
E dessa semana dois dias eu passei fritando meus miolos para adequar o esboço da planta do museu que eu já tinha feito antes de ir ao terreno ao tamanho exato e á vizinhança onde ele seria construído.
Eu me ofereci para cuidar dessa primeira etapa das obras para Jhonatan poder aliviar a mente, mas ele insistiu dizendo que ocupar a cabeça iria ser melhor que se afundar no sofá da sala. Nisso depois de enviarmos o projeto pronto e ele ser aprovado, deu-se início oficial a construção do Museu Celta Templo de Anu.
Anu era uma das principais deidades celtas, um tipo de deusa mãe e usei isso para suavizar a imponência da futura estrutura com uma jogada de ar maternal, de acolhimento.
Não havia tido mais nenhum caso de assassinato muito menos alguma reivindicação terrorista da morte cruel do ruivo. A polícia não tivera nenhuma nova informação sobre o caso e apenas continuava com as investigações.
Eu não tornei a ver o vulto, mas diversas vezes sentia que estava sendo observada e seguida e isso estava me deixando completamente maluca e neurótica. Dandara estava preocupada comigo tantas eram as vezes que eu dizia estar sentindo essas coisas.
Eu vi que aquilo estava a atormentando então resolvi omitir qualquer novo dado sobre o assunto. Se eu ia ficar paranóica iria ficar sozinha. Preocupar minha amiga não era uma opção.
Era meu primeiro final de semana no apartamento novo, estava de folga e descansava me preparando pra maratonar filmes de terror com Dandara.
- Vamos logo ou vamos perder toda a noite só fazendo essas pipocas - ela comentou virando o conteúdo da panela na vasilha.
- Eu estou tentando ir o mais rápido possível não tenho culpa se sou um pouco lenta - respondi enchendo nossos copos com refrigerante e tampando-os.
- Pegou as batatinhas?
- Está na mão - segurei os copos com as mãos e os dois pacotes de batatas chips nas articulações dos braços - Vamos anda já perdemos metade da noite aqui!
- Nao fui eu quem queimei a primeira panelada de pipoca - se defendeu enquanto andávamos rumo a sala.
- Eu te avisei que não sabia cozinhar! - nos sentamos no sofá e colocamos as vasilhas entre nós.
- Fazer pipoca nem é considerado cozinhar - riu - como pretendia morar sozinha só por curiosidade senhorita desastre no fogão?
- Fast food. Mcdonalds está aí pra isso - liguei a TV e loguei a Netflix - Qual você quer ver? - olhei pra ela.
- Não sei pode ser qualquer um. - deu de ombros e jogou uma pipoca na boca.
- Pra mim também. E se a gente trocar filme por série? - indaguei bebendo do refrigerante.
- Aahh! Tem aquela - estalou os dedos tentando lembrar - aquela da menina meio bruxa, que elas são meio Satânistas não sei, eu nunca consegui ver.
- O Mundo Sombrio De Sabrina? - comi das batatinhas.
- Esse mesmo! Topa? Ou sua religião não deixa?
- Eu não tenho religião não - ri - claro que topo. - busquei a série no menu da tela e rapidamente apareceu como opção.
No fundo eu até estava agradecida por não assistirmos filme de terror em si. Eu sempre adorei vê-los, mas com minha cabeça como estava nos últimos dias não seria bom pra minha sanidade. Se é que assistir Sabrina faria.
O tempo passou mais rápido do que queríamos enquanto assistíamos á série, e sem querer acabei cochilando. Quando acordei eram três horas da manhã e Dandara também dormia encostada em minhas pernas.
Bocejei e cocei os olhos, peguei o controle que havia caído no chão me esticando com cuidado para não acordá-la e desliguei a TV. Com cuidado fui retirando minhas pernas dormentes de debaixo da cabeça de Dandara colocando uma almofada no lugar.
Depois de esticar os músculos o formigamento apareceu fazendo voltar a circulação normal. A cozinha tinha uma sacada e foi pra lá que segui me sentando na beirada e observando a lua cheia que brilhava lá em cima isenta de qualquer problema ou tormento.
Eu tinha o hábito de ficar observando o satélite quando precisava de um tempo. O ar frio e úmido que entrava pelas narinas alertava minha cabeça em um leve arrepio.
Era tão estranho. Eu deveria estar feliz com o que eu tinha conseguido, e eu estava. Profissionalmente falando tudo estava muito bem, mas eu já estava perturbada pela volta dos pesadelos antes mesmo de mudar pra Irlanda, então a primeira coisa que acontece quando chego é ver aquela coisa encapuzada.
Então Dave morre daquele jeito horrível, eu vejo marcas estranhas em seu cadáver, realmente sou perseguida pela coisa de manto e depois disso vieram aquelas sensações de observação.
Eu não estava bem.
Talvez pareça idiota alguém se perturbar com pesadelos, mas os meus eram nítidos demais. Vívidos demais. Demais pra se vivenciar aos doze anos pela primeira vez de uma forma tão dolorosa.
Real a ponto de ver no espelho os estragos que ele me causou, mas falso aos olhos do médico psiquiatra que insistia em dizer que eu mesma fizera aquilo no meu corpo.
Sem perceber uma lágrima rebelde ameaçou cair e eu pisquei os olhos para dissipá-la. Passei a mão pelo cabelo e encostei a cabeça na parede respirando fundo.
Levantei da sacada e por um instante senti olhos atrás de mim. Girei nos calcanhares em alerta, mas não havia nada.
Nunca havia nada.
Em silêncio peguei o cobertor de Dandara em seu quarto e a cobri no sofá depositando um beijo terno em sua testa.
Não. Eu não queria mais ninguém pra dizer que eu tinha problemas mentais. Segui pro meu quarto silenciosamente. Planejava deitar e voltar a dormir, mas antes de chegar na cama um reflexo atingiu o canto do olho e me chamou a atenção.
A luz da lua havia batido na fechadura do livro que trouxe da biblioteca e refletiu discretamente reluzente seguida de um barulho de destrava.
"Só falta ser um livro possuído pra completar" pensei ironicamente.
Segui até a peça e encarei a capa encadernada. Lembrava bem do filme A Múmia e não estava muito animada pra ler algo antigo e sem título as três horas da manhã que aparentemente se destrancou sozinho.
Por outro lado eu não estava em nenhuma escavação egípcia, muito menos tinha encontrado uma múmia, então fui vencida pela curiosidade e como eu imaginava o livro realmente tinha se destravado.
Passei os dedos pelo relevo da capa e puxei a borda o abrindo com cuidado. Não sabia se ele ia de repente se esfarelar em minhas mãos então preferi ser extremamente cautelosa.
Em letras desenhadas na primeira página se lia:
" Para a paz e a glória, contra toda a escória.
Apenas quando chegar a hora, estas palavras serão encontradas,
pelas mãos do Sangue
Da Guerra.
Contra aquilo que se ergue
no escuro esse livro
Será o caminho
Para luz. "
Assim que terminei de sussurrar as palavras iniciais um pio de coruja soou alto e longo madrugada a dentro.
- Ótimo, um mau presságio em plenas três da manhã. Era tudo que eu precisava. - praguejei baixo.
Virei a página.
" Há muitos e muitos séculos atrás, quando a civilização ainda não existia e os prados verdejantes brilhavam sob a luz do Astro Rei, a Ilha Esmeralda já era habitada.
Não por homens, mas por todo tipo de seres vivos, Mundanos e Etéreos. Criaturas diversas caminhavam pela grama, tranquilas e pacíficas, apenas a contemplar as existências umas das outras.
A selvagem e bela natureza se exibia em sua elegância, tecendo intricados fios de vida que seriam interligados no Grande Ciclo, onde caçador e caça seriam igualmente importantes e vitais um para o outro.
Mas nem tudo era só luz.
Da mesma forma que lindas e serenas criaturas existiam, horrendas e obcenas vulgaridades se esgueiravam pela sombra do mundo, rastejando escondidos sem encontrarem forma de invadir aquele ambiente tão puro de energia.
Todo o tipo delas habitavam as entranhas da terra longe da paz e harmonia da vida.
E então os homens chegaram.
Nem ruins e nem bons, apenas a cumprirem seu papel na teia da natureza como qualquer um dos seres.
Mas neles existia uma brecha. O ego. Dentre todos os habitantes apenas o homem o possuía e apenas ele seria suscetível. E seria dessa forma que o homem se tornaria o lobo de si mesmo.
Então ergueram-se casas.
Perto dos caudalosos rios formaram-se comunidades. O homem tentava se separar do Grande Ciclo. Já não se considerava mais membro dele.
O ego o fez achar superior.
Obrigou a natureza a curvar-se perante ele.
Falhou.
A água que caía dos céus era mais forte que o orgulho que sustentava a crença, assim como o fogo que ardia mais que a prepotência e o vento que arrastava pra longe a desumildade junto da plantação.
O homem curvou-se.
E passou a venerar aquela que era mais forte. E ela por sua vez, apenas encaixava seu filho perdido de volta em seus braços.
A harmonia voltara.
Eram-se celebradas as fases da vida, eram-se agradecidas as colheitas e eram-se abençoadas as caças. Eram-se cultuados os deuses.
Mas o ego jamais deixou de existir. Muito menos longe dali onde sempre prosperou. Onde sempre se ploriferou, como uma epidemia rápida e letal.
Territórios foram traçados, bens foram divididos e a ganância pelo o que não se tinha deu luz á inveja. O pior dos venenos. O ácido que corrói a alma.
Guerras foram travadas.
Os chamados Thuata defenderam sua casa e protegeram seu povo, mas a Ilha Esmeralda já se encontrava rubi e pelo vento uivante o lamento dos condenados era ouvido sem cessar.
Era o preço pelo solo maculado.
E não acabaria ali. Muito ainda haveria de se manchar e a queda dos Thuata era prevista. A era dos deuses estava no fim.
Então, sob o marchar rítmico das legiões, a morte foi trazida nas asas da Águia Dourada que iria arrancar a vida como se arranca uma planta do solo.
Os Thuata tornaram-se lenda.
Os últimos resquícios de harmonia com a natureza se findara na poeira erguida da sola dos vencedores.
O ego vencera.
A natureza se readaptara já não mais capaz de vencer a tirania do orgulho, e aos poucos foi executando outro plano.
Ela existia antes do homem. E este precisava dela. E ela estaria ali quando ele se exterminasse.
Então passiva ela se abaixou.
E o homem, cego na glória se achou o dono do mundo. Achou que havia vencido.
Quando não passava de um mero brinquedo, um mero fantoche daquilo que existia antes dele, daquilo que se escondia nas profundezas e pérfidamente maquinou e aguardou todo o desenrolar.
Mas assim como os deuses se recolheram, o homem também se recolheria. No futuro caótico onde toda a sua insignificância seria exposta.
Mas o preço desta queda seria alto demais. Algo que não poderia acontecer.
E quando este momento chegasse, apenas o sangue colocaria fim, no que no sangue foi começado.
O Sangue da Guerra.
Um vento forte soprou pela janela aberta e derrubou um dos meus quadros da parede, o que soou desnecessariamente alto em meio a todo aquele silêncio.
Aparentemente o livro era sobre mitologia celta. Eu tinha pesquisado bastante sobre o assunto devido ao Museu e sabia que estava falando da queda dos deuses e a invasão romana na britania.
Eu gostava bastante do tema então não julguei o livro de todo inútil. O que me intrigava era o motivo de ele ter uma fechadura. Por que um livro sobre história teria uma tranca?
Isso me levava a questionar as primeiras palavras que li e também as últimas. Nenhuma delas era algo próprio da lenda, e pareciam se referir ao presente e não ao passado.
Eram perguntas sem respostas e afirmações inconclusivas, mas apesar de não saber do que se tratava, algo em mim se remexeu, protestou como um resmungo inaudível sobre algo incômodo.
Olhei o relógio: três e meia da madrugada.
Sentia a cabeça latejar e os olhos arderem e a solução foi acabar com a leitura por aquelas horas.
Fechei o livro e a janela do meu quarto antes de cair na cama outra vez e esquecer que meus problemas existiam, nem que fosse por alguns poucos momentos de sono profundo.
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