🟢Capítulo 8/2
Dobrei o plantão, e naquele noite, no conforto de uma das poltronas reclináveis na sala de descanso, a insônia não foi a única a me fazer companhia. Junto dela, a insistência de Cortez que pendurou semanas e todo seu discurso, sobre eu ter que salvar “novamente” um paciente misterioso, mantivera minha mente em um loop eterno, que repetiu-se incansavelmente por horas a fio.
Às sete e vinte e três, desci até o estacionamento. Fiz o trajeto até o carro lendo um panfleto colorido, que Rivera me entregara quando deixava o vestiário, onde havia informações sobre o coquetel beneficente para angariar recursos para a clínica filantrópica do Complexo, no próximo sábado.
Elevei o olhar no momento em que minha mão livre retirou a chave do interior da bolsa pendurada no ombro contrário, com a alça cruzando meu tronco. Meu polegar parou a milímetros do botão que destravava o veículo quando os avistei. O corpo atlético dele esmagando o dela contra a lataria do meu carro.
Dominador, Guerra imobilizara Thompson feito um boçal, prendendo-a pelos pulsos, que era pressionados fortemente sobre a cabeça dela, junto ao teto da BMW. Em contraponto, o beijo parecia deixar a desejar pela ausência de língua, clara à nossa curta distância, e a velocidade, que a moça mostrava dificuldade em acompanhar.
Ofegante, o residente findou aquela sessão de tortura, porém ainda se manteve próximo o bastante para roçar seus lábios nos dela a cada respiração. Ainda de olhos fechados, Thompson avançou de encontro à boca dele, tentando morde-la, mas Guerra recuou, fugindo da investida, na tentativa de lembrá-la de sua posição como submissa.
A demonstração ridículo de controle, impediu que Guerra desfrutasse de uma pressão calculada ao redor do tecido especialmente sensível e cheio de terminações nervosas, como o lábio inferior, que levaria a uma perfeita explosão de êxtase. Logo, o mero pensamento foi capaz de enviar doses perigosas de sangue para um zona um tanto distante, que senti latejar em resposta.
Desconfortável, certifiquei-me que a mochila cobria o volume indesejado sob meu abdômen, depois limpei a garganta da forma forçada e mais audível possível. O que fez ambos terem um sobressalto e se afastarem simultaneamente.
A residente fitou-me por dois segundos antes de direcionar o olhar ao chão, como se a vergonha fosse algo comum a ela. Já o residente encarou-me com um sorriso predador e indagou:
— Deseja algo, doutor?
— Poder entrar no meu carro seria ótimo.
* * *
No meu apartamento, sentado sobre um colchonete posicionado no centro da estufa de vidro, rodeado pelas mais variadas plantas medicinais, recorri a meditação para esvaziar minha mente. Não era um praticante assíduo da ioga, mas, quando necessário, utilizava de partes dela para alcançar controle psíquico e relaxamento físico. O que implicava em não optar por meios lascivos de reduzir a tensão, pelo menos não enquanto aquela cena estivesse fresca na memória.
Preparei o almoço na companhia de Glück, que ora roçava na minha perna, ora saltava em uma das banquetas para que eu afagasse sua cabeça e pescoço. A gata recebia a carícia de olhos fechados e com a pontinha da língua para fora.
— Também senti sua falta — disse depois de comer. Ela miou como se pudesse me entender. — Agora vamos, porque preciso dormir. — A peguei no colo. — E agradeço se a madame não ficar pisoteando as minhas costas desta vez.
Deixei a felina sobre o colchão, caminhei até a grande porta de vidro que dava acesso à estufa e fechei as grossas cortina diante dela, extinguindo quase toda a claridade do ambiente, restante somente a luz baixa do abajur. Deitei de bruços e adormeci rapidamente.
O sol havia se posto na hora que acordei, e os nuances quentes e vibrantes no horizonte já tinha dado lugar a penumbra total quando peguei o caminho mais longo para o centro da cidade.
Estacionei do lado de fora do Metropolitan, atravessei o jardim, para usar a entrada principal ao invés da Emergência. Apresentei o crachá para o guarda Edwards e cruzei o saguão vazio, indo em direção ao elevador. Vesti o pijama cirúrgico no sexto andar, depois desci ao quinto pela escadaria e dei início à embolização de um aneurisma agendada para às sete e trinta e cinco.
Aquele fora meu procedimento mais curto em dias. E quando terminei, dirigi-me até a sala de espera e tranquilizei o marido e a filha da paciente. E estava visitando os pós-operatórios, que ainda se encontraram na UTI, quando o celular no meu bolso vibrou com a mensagem de Isaac, que estava de folga naquela noite:
“Cara, tem que vir aqui na Color agora! As coisas saíram de controle rápido e sua irmã não me ouve.”
Os motivos para Elisabeth frequentar a Kiss Color eram óbvios dada sua orientação sexual, já que apesar da boate não ser exclusiva ao público homoafetivo, também não era novidade para ninguém que este era dominância nas badaladas noites da casa noturna.
Sem tempo para trocar de roupa, apenas tirei o jaleco e a parte de cima do uniforme, os pendurei no encosta banco do passageiro e contorci-me para pegar o casaco preto na parte de trás do carro, enquanto iludia-me sobre o fato de que a calça bordô passaria despercebida.
Dirigi até a cruzamento da sétima avenida com a rua Salvador Dali, a duas quadras do hospital. Na portaria da boate, recebi um carimbo ao pagar. O desenho no dorso da minha mão se tratava de uma marca de beijo com todas as cores do arco-íris, uma miniatura da arte ofuscantemente brilhante da fachada.
O piscar das luzes fortes e coloridas fizeram meus olhos queimarem nas órbitas e o cérebro pulsar no interior do crânio, quando entrei. A vibração da música era tão intensa que dava a impressão de que meus batimentos cardíacos estavam acompanhando seu ritmo frenético.
— O que está acontecendo? — questionei ao encontrar Isaac, que já aguardava por mim próximo da entrada.
— A gente estava no Bangard, aí depois que eu e o John perdemos metade no nosso salário, sua irmã apareceu no casino dizendo que tinha três entradas para a área VIP daqui. — Ele levou a garrafa de vidro até a boca e tirou um gole do líquido amargo e borbulhante. — Assim que entramos a Lisa viu a namorada dela beijando uma loira, e quando ela foi tirar satisfações a Fridda chamou ela de “fraude lésbica”.
Como qualquer um que tenha dois olhos e o mínimo de visão, Fridda Spancer também via o sentimentos de Sullivan por Elisabeth. Mas o que mais enfurecia a polícia nem era o que ele sentia, e sim o fato da minha irmã não esclarecer de uma vez por todas que nunca teriam nada mais que amizade.
— E cadê a Lis? — indaguei depois de perpassar os olhos rapidamente pelo lugar.
Isaac apontou para a pista de dança, onde tive o desprazer de ver Elisabeth com a boca grudada na do Sullivan. E não, não cogitei que fosse ao contrário, pois ele nunca a beijaria, logo a iniciativa, sem dúvida, fora dela. Era a segunda troca de saliva que assistia naquele dia, e apesar de igualmente repulsiva, esta havia algo que a outra não tinha: química.
— Me diz que tem alguma droga gasosa no ar e que estou alucinando. Preciso beber, urgentemente.
O comentário fizera Isaac gargalhar. Ao se recompor disse:
— Se tivesse conseguido levar ela embora na hora das ameaças, isso não teria acontecido. — Caminhamos até o bar, pedi um coquetel a base de suco de fruta, com soda e sem álcool. — Mas já que aconteceu, não vamos estragar o momento que o garoto sonha há anos.
Revirei os olhos, mas depois concordei. Isaac explicou qual era o plano que tinha em mente: eu convenceria Elisabeth a sair, e ele escoltaria Sullivan até o lado de fora, já que um dos amigos musculosos da Fridda havia se oferecido gratuitamente para quebrar alguns dos ossos do residente.
— Certo — concordei quando terminou de falar. — Sabe, Louis, é a última pessoa que eu esperava ver aqui.
— Nem vem, a Camille não me mudou, cara. — Experimentei minha bebida, esboçando um sorriso. — Boate gay é o melhor lugar para pegar mulher. Você é o observador. Jura que nunca notou os padrões? Todo gay tem uma amiga. E como as mulher são muito companheiras, está cheio de amigas héteros esperando por companhia enquanto os amigos saem à caça.
— Você é um gênio. — Meu sarcasmo não passou despedido por ele, que torceu o nariz.
— Olha só a deusa de casaco azul, à sua direita. Vou vê se consigo o número dela antes de irmos.
Ele afastou-se. Não podia negar que Isaac tinha um ótimo gosto. A negra alta, de corpo curvilíneo e cabelos longos e volumosos, era simplesmente estonteante.
— Essa bebida parece deliciosa — disse o homem que chamou minha atenção para sua face ao debruçou-se sobre o balcão. — Seu parceiro não vai se incomodar se me sentar aqui, vai?
A ênfase que deu ao termo sugeriu que estava insinuando um tipo de parceria que não era sinônimo de amizade.
— Meu amigo — retorqui lacônico.
— Imaginei, mas queria ter certeza. Me chamo Scott. — Estendeu-me a mão mediada e levemente bronzeada.
Poderia parecer melhor do que realmente sou, dizendo que mentir não era do meu feitio, quando a verdade é que não sei fazer isso de modo convincente, então retribui o cumprimento lhe fornecendo meu nome do meio: Wallace. Não era o suficiente para ele me localizar na lista telefônica caso fosse um psicopata, nem encontrar meus perfis na internet se de fato estivesse flertando comigo.
— Conhece bem a cidade? — Assenti. — Mudei há menos de uma semana e queria saber se você pode me indicar um bom restaurante aqui perto do Queen Palace, onde estou hospedado.
Impossível que alguém que usava Armani e um Rolex não tivesse um celular de última geração para buscar no Google Maps.
— Você deve ser bem exigente, porque o buffet Palace é um sucesso de crítica.
— É maravilhoso, mas preciso de algo mais forte... rústico, talvez.
Os olhos anis foram de encontro a porção de pele que a gola da camiseta de manga comprida sob meu casaco não cobria. Completamente atônito, dispensei uma resposta verbal, pois não conseguiria fazer sem gaguejar, então afundei as pontas dos dedos sobre a gola que ele fitava de forma um tanto predatória e puxei a corrente, expondo minha aliança pendurada ao lado do pingente de cruz.
Os lábios miúdos abriram-se em alusão de dizer algo, mas a presença daquele que pusera a mão no meu ombro, decerto fora o motivo para o pedido de desculpa desconsertado e sua saída estratégica. Agradeci mentalmente pelo retorno de Isaac.
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