🔴Capítulo 6/3

      A vontade de deixar o hospital com o conjunto de moletom branco e preto, com que cheguei para dar início ao plantão há mais de vinte horas, era grande, enorme na verdade. Embora fosse mais quente e mais confortável, não era a roupa mais apropriada para a ocasião, então me limitei a tirá-lo para conseguir pegar o jeans escuro, o suéter de lã e o casaco, que estavam amarrotados no fundo do armário há um bom tempo.

     Quando puxei, a parte de baixo do moletom, se prendeu a uma das repartições do armário, justo a que eu havia improvisado, ou seja, uma que não era parafusada. A estrutura cedeu, trazendo consigo tudo que tinha colocado sobre ela. Algo pontiagudo, uma escova de cabelo com cabo de madeira, atingiu meu olho sem que eu tivesse oportunidade de me esquivar, ou sequer fecha-lo. Senti a dor se misturar com a ardência, logo se transformando num intensa gastura que me impedia de abrir os olhos lacrimejantes, quanto mais colocar a lente de contato, que havia tirado antes de entrar no banho.

     Irritada, tateei a prateleira do meio, à procura do estojo de couro, que preservava algo que não usava há muito tempo. Suspirei diante do par de lentes grossas, que contava com uma armação exagerada e de cor gritante, como mandava a moda. Com sorte os óculos seriam o suficiente para roubar todas as atenções para si, ofuscando a anomalia do olhos, que, desta vez, não podia ser camuflada pela lente de contato feita sob medida, ou melhor, na cor certa.

     Sai do hospital pela emergência, Guerra fez uma gracinha quando passei por ele, mas nem desviei a atenção do celular para olhar em sua direção, precisava me certificar que o Uber ainda aguardava por mim, além de digitar uma desculpa para Lisa que explicasse o porquê de não ter chego ainda.

     O endereço que Lisa havia me passado não ficava tão distante do Metropolitan, todavia tivemos que cruzar a ponte dourada do centro, onde o engarrafamento nos tomou mais tempo do que esperava. Quando deixei o táxi de frente ao prédio luxuoso, foi inevitável não me impressionar com quantidade de andares a perder de vista, tanto pela altura quanto pela penumbra da noite. O elevador panorâmico proporcionava uma  deslumbrante vista de cidade, das luzes dela pela menos, principalmente do andar mais alto, a cobertura no décimo oitavo, onde ficava o apartamento da médica. A porta do elevador se abriu em um longo corredor, que continha apenas duas portas, uma de cada lado. Toquei a campainha daquela cuja marcação na porta indicava ser o quinquagésimo.

    — Entra! — a anfitriã berrou, para que sua voz sobressaísse a música, que não parecia estar tão alta antes dela abrir a porta. Lisa logo me puxou para um abraço, que foi seguido por um beijo na bochecha. — Vamos pra cozinha, John e Louis estão lá também, fazendo companhia para o Nathan.

    Louis era aquele tipo de nome que você demorava para associar a alguém, principalmente quando estava acostumada a ouvir este alguém sendo chamado de Isaac. Assim, fazendo com que me esquecesse com facilidade que Isaac era apenas um redutivo de Isaacson, seu sobrenome, e não seu primeiro nome.

    Atravessamos a sala, que embora não fosse pequena, parecia ser dada a quantidade de mobília que limitava o espaço. Era mais que desnecessária a quantidade de aparadores e estantes, abarrotados com os mais diversos itens de decoração, fazendo com que eu precisasse bem mais que nossa breve caminhada para poder olhar cada um deles.

    Da entrada da cozinha, lancei o olhar através dos balcões de mármore rodeado de banquetas, onde John e Isaac estavam sentados, e parei exatamente entre os armários planejados em tons claros de branco e creme, quando o vi parado diante da geladeira. O cozinheiro da noite, irmão de Lisa e dono de um belo bumbum, que era moldado por um jeans preto. Me deparei com suas costas largas, abraçadas por uma camisa xadrez e delineada por um colete social usado sabre ela. Por alguns milésimos de segundo, o colete até me fez lembrar alguém, alguém que nunca usaria xadrez ou jeans, alguém em quem eu não deveria estar pensando.

    Me peguei medindo seus ombros, que eram lato o bastante para sustentar a massa de músculos que eram seus braços. Notei quando seu pescoço se moveu, Nathan olhava para mim sobre os ombros. Meu estômago embrulhou no mesmo instante que meus olhos encontram os dele, e com toda certeza também não consegui evitar o desgosto que consumira minhas faces.

    — Puta merda! — O choque impediu que meu cérebro filtrasse as palavras antes que minha boca as despejasse em alto em bom som diante de todos. Por uma rara sorte, que me fora concedida inconscientemente, usei o idioma materno da minha mãe. 

    — Costumo atender pelo primeiro nome quando não estou de plantão. — O homem colocou alguns tomates sobre a pia e escolheu uma faca. — Não entendo nada de português, mas acredito que qualquer coisa é melhor que o termo que usou.

   — Prometeu que não ia assustar ela — Lisa o lembro, fazendo ele estreitar os olhos e os rapazes rirem.

    — E só um termo. Mas pensei que preferisse ser chamado de Dr. Müller.

     — Reserve os títulos e a formalidade dos sobrenomes para o hospital, Melanie.

    Meu estômago embrulhou de novo e, dessa vez, a causa foi o meu nome, a forma como aquela voz pronunciou cada sílaba dele, na verdade. Como algumas das escolhas que minha mãe fez para mim, o nome também não combinava comigo. Entretanto, não adiantaria dizer que preferia ser chamada de Mel, pois Müller, ou melhor, Nathan, só fazia o que lhe era conveniente.

      — Isso faz de vocês quase íntimos — interveio Isaac, com deboche.

     A última coisa que queria era ser íntima do meu supervisor. Mas não precisei me dar ao trabalho de pensar em como responder aquilo, já que a campainha tocou, roubando uma oportunidade que eu não queria.

    Lisa se afastou para fazer seu papel de anfitriã. Voltou poucos minutos depois, acompanhada de Camille e outra mulher, esta era elegantemente alta e dona de um corpo curvilíneo, de causar inveja a qual mortal. O rosto, que não entregava sua idade,  era emoldurado por cabelos escuros e encaracolados, que abraçavam toda sua costas.
Aquela que deduzi ser Elena Rivera, andou em minha direção até que seus louboutin parassem a centímetros das minhas botas puídas. Subi os olhos para encara-la, perpassando ligeiramente pelo vestido social branco feito sob medida para seu corpo, e frisei ao me deparar com um sorriso amistoso. Esperei um gesto imparcial da parte dela, um aperto de mão, ou qualquer outra coisa que não fosse o abraço caloroso e desavisado que recebi.

* * *

    A noite era da Elena, em todos os sentidos possíveis. Ela era tão interessante, que a única coisa que não conseguia, nem se tentasse, era não se tornar o centro das atenção. Todos os olhares eram todas dela, e a mesma nem precisava fazer muito para isso. Uma prova era eu, que não tinha interesse algum em como podia ser deprimente nos Médicos Sem-fronteira, mas ela tinha minha atenção também.

   — A comida não caiu bem, novata? — perguntou Isaac, me entregando uma das garrafas que trouxe consigo.

    — Estava divina. — Não era um exagero, na verdade soava mais como um eufemismo, porque era inegável que Müller, apesar de um broco, dono de um humor infernal, tinhas muitos talentos. Confesso que não fiquei radiante com a ideia de que comeria massa com molho novamente naquela semana, mas o sabor que me foi apresentado era transcendental, uma bomba para meu paladar, digna de comer rezando, se tivesse o hábito rezar. — Acho que estou sobrando.

    Levei a garrafa à boca e tirei um gole generoso da cerveja.

      — Sobrando por quê? — Ele se virou para poder estudar a forma como as pessoas estavam agrupadas. —  O John tem sim um amor platônico pela Lisa, até porque ela já transou com muito mais mulheres do que ele. E pode ter certeza que a psiquiatra ninfomaníaca nunca consideraria o padre ali como um parceiro em potencial.

    Isaac pegou um maço vermelho e branco no bolso e antes mesmo que tivesse virado o rótulo para mim, não tive dúvida de que se tratava de um West. A mesma marca que fumei centenas de vezes. O homem tirou dois cigarros de dentro dele, levou um deles até os lábios e ofereceu o outro a mim. Hesitei antes de finalmente pegá-lo.

     Ele é celibatário, a lembrança de Lisa ter usado tais palavras assombrou minha mente, fazendo um pouco mais de sentido agora, o que também me dava fatos sobre Nathan que eu não precisava saber. Aquilo explicava muita coisa sobre sua personalidade? Claro, mas assim como o lance de John ser apaixonado por uma lésbica e Elena ser viciada em sexo, o fato do meu supervisor se abster de ter relações não era da minha conta.

     — Não se esqueça de você e a Cami — acrescentei.

     — Ela me odeia com todas as forças — Expulsou a fumaça pelas narinas. — Não tem casais, como pode ver.

     Dei de ombros, tragando o meu cigarro pela primeira vez desde que Isaac havia feito o favor de acende-lo. O vento soprou forte, balançando suas mechas com graciosidade, enquanto os meus foram arremessados contra o rosto, fazendo alguns fios ir parar dentro da boca. Os cuspi com o mínimo de elegância possível, Isaac riu e logo sua mão esquelética e desavisada afastou um cacho maior que cobria meu nariz, assim, seu perfume pôde aguçar meu olfato sem empecilhos, pelo menos a parte dele que o tabaco não ofuscou. O mesmo odor que também deveria estar emanando de mim.

     — Pode esquecer, Louis, ela tem namorado  — John disse, apoiando-se em uma das partes da porta de vidro atrás de nós.

      — Para ser honesta, não tenho mais, meu pai já deve ter conversado com ele há alguns dias.

— Pediu para o seu pai terminar com seu namorado por você? — Elena questionou da sala, trazendo os olhares de todos para mim. Sorri ao dar de ombros e tomei mais um longo e demorado gole da minha bebida.

    — Toma cuidado com o que diz — Camille aconselhou —, porque a Elena com certeza já está traçando seu perfil psicológico, como fez com todo mundo aqui.

    — Não tenho culpa se quase todos vocês são previsíveis demais. — Ela tomou, de uma vez só, todo o líquido rose que continha em sua taça e encarou o homem que rolava o canudinho vermelho entre os lábios, com despretensão. —  Salvo uma ou outra exceção.

      Nathan revirou os olhos. E mesmo com àquela distância e com a barba cobrindo sua mandíbula, vi quando ela foi tensionada, o que com certeza dilacerou o pobre pirulito de cereja. 

* * *

      Depois que minha mãe se foi, papai mostrou-se um excelente cozinheiro, assim nunca precisei cozinhar ou sequer aprender como fazer. Mas desde que tinha altura para alcançar a pia, eu lavava a louça como uma forma de ajudá-lo. E segundo um dos itens da estranha lista de boas maneiras de Marcus Thompson, um convidado educado sempre levava algo ou ajudava com alguma coisa, e considerando as opções, lavar a louça era a única coisa podia fazer, já que não tinha como pagar por um vinho à altura, e nem tinha dotes culinários para auxiliar no preparo de qualquer coisa que levasse mais de três minutos para ficar pronto.

     — Não precisa fazer isso, temos lavadora de pratos, Mel  — Lisa informou bem-humorada.

     — Mas eu faço questão.
Ela riu e balançou a cabeça incrédula. Depois me mostrou onde estava a sabão desengordurante e correu até a sala, para atender aos chamados de Camille.

     — As facas são muito afiadas — advertiu Müller, procurando por alguma coisa em um dos armários. Assenti no automático, mas ele nem deve ter visto já que sua atenção estava toda em sua procura. — Deixe que depois eu cuido delas.

     De viés, observei quando o homem findou a sua procura para desembrulhar outro pirulito. Em seguida, Nathan desabotoou os punhos da camisa, dobrou as mangas até os antebraços e agarrou um pano-de-prato, logo começando a enxugar as utensílios que já estavam limpos.

       — O apartamento de vocês é bem bonito.

     — Faz alguns anos que Lis eu não moramos literalmente juntos, porém ainda sim na mesma cobertura. — Me recordei da porta do outro lado do corredor, marcada pelo número quarenta e nove.

    — Não deve ser fácil morar com alguém tão diferente.

     Ele concordou, secando último copo, depois afarou-se para guarda-los. Mergulhei a mão na água para pegar os pratos submersos, tão rapidamente senti uma súbita queimação e estremeci com a dor que veio em seguida. Observei a espuma sobre a água ficar rosa em um ponto, depois mudar rapidamente para vermelho, do sangue que já estava ciente que se esvaia do corte feito no meu pulso por uma das facas.

      Sabe quando seus pais te dizem para tomar cuidado, e você não dá importância e acaba se manchando da mesma forma que eles te alertaram? Então, aquele medo de pedir ajuda para eles se torna o pior de todos, pois você foi avisada e mesmo assim continuou. Müller certamente me daria uma bronca, como os pais fazem. Só que não pretendia pedir ajuda, então liguei a torneira e pus o ferimento sobre a água corrente. Tinha tanto sangue que não conseguia enxergar o vaso atingido. Por sorte não era uma artéria, pois mesmo a profundidade e o local sendo favoráveis para algo pior como o rompimento de uma artéria, o fluxo contínuo logo descartou esta hipótese.

    — Santo Deus! — ele exclamou, quando voltou, numa estranha calmaria.
Sua respiração tocou minha orelha, entregando que estava bem atrás de mim. Em um reflexo de auto preservação, me virei, ficando cara a cara com ele. Me arrependi logo em seguida, porque não sabia o que era pior, ficar de costas para o inimigo, ou a centímetros da boca dele.
Afastamos simultaneamente, eu me virando para o lado, e ele indo para cima, já que só de endireitar o pescoço já se matinha fora do meu alcance, pela nossa diferença de altura.

     Ele me deixou, indo novamente em direção aos armários, mas agora procurou algo nas gavetas. O homem retornou tão rápido que nem consegui acompanhar, quando meu cérebro voltou a processar, ele já havia envolvido meu pulso em uma pequena toalha branca e exercia pressão sobre o ponto do corte.

    — Será que podemos nos sentar ali? — perguntei, indicando as banquetas do outro lado assim que a vertigem me atingiu. Müller assentiu e me conduziu até lá, sem desgrudar a mão do meu braço.

   — É péssimo ter problema com sangue, principalmente na profissão que temos — falou enquanto checava o relógio, depois afrouxou a pegada ao redor do ferimento, cronometrou alguns segundos e retomou a pressão de antes.

    — Não tenho problema com sangue, e sim em me machucar. Eu não gosto de sentir dor.

      O esboço de um sorriso se formou em seus lábios rosados. Uma sútil curvatura de um dos cantos daquela boca, que nunca me permiti analisar antes, capturou minha atenção por tempo o suficiente para notar que a barba ao seu redor havia sido apenas aparada.

   — É bem melhor assim, Thompson.

    — Com o pulso cortado? — questionei com sarcasmo e começando a rir.

   — Não, ao natural. — Ele permaneceu sério, tirou a toalha e desviou a atenção para superfície que estava começando a coagular, ainda sangrava, mas não como antes.  — Não precisa de disfarces para que gostem de você. Sua atitudes determinam o sentimento que pessoas têm, não seu olhos.

     Odiava quando ele me deixava sem palavras. E odiava ainda mais a frequência com que fazia aquilo. O que alguém que vivia se isolando, fugindo das pessoas, ou limitado a um grupo formado por sua irmã e seus subordinados, poderia saber de ser aceito?

    Com exceção de Lisa, todos na sala o aceitavam porque seus empregos e cargos dependiam dele. Assim como minha residência também, então repeli a resposta afrontosa que meu cérebro começou a tecer depois que o impacto de suas palavras havia passado, e me limitei a um sorriso. Um sorriso que começou forçado, mas que quando encarei seus olhos, se transformou no mais sincero, assim como era o olhar que ele direcionava a mim.

    Ele ainda segurava minha mão quando Elena adentrou a cozinha e forçou uma tosse para chamar nossa atenção. Ele a ignorou, já levando a mão até o bolso da calça, de onde tirou o pager que apenas vibrava ensandecido.

    — Vou precisar suturar seu pulso antes de entrarmos no centro cirúrgico.

     O fato de ter conjugado o verbo de acordo com a primeira pessoa do plural, entregou que qualquer que fosse o motivo que acionou seu pager, ele me levaria junto. E tirando o fato de ter que levar pontos antes disso nem pareceu tão ruim, como seria numa circunstância comum.

    Müller depositou o pager sobre o mármore e encarou a psiquiatra. Sua expressão fora de quem teve um sobressalto, o que era impossível depois do aviso dela ao entrar. Logo deduzi que o susto não foi motivado pela presença de Elena, mas sim por algo que a expressão no rosto dela disse secretamente a ele, e que não consegui ver do ângulo que estava sentada. Pois, depois disto Müller soltou minha mão e cruzou a cozinha calado e novamente inexpressivo.

* * *

    De volta ao hospital, depois de pedir para uma residente da emergência suturar meu pulso, nos dirigimos para a sala de operatório número seis, onde ele operaria a vítima de um acidente de moto. Antes de começar a lavar-se, o cirurgião se benzeu com o sinal da cruz, depois beijou o crucifixo no fim do cordão de prata preso ao seu pescoço. O pingente que nunca havia visto antes por ser mantido sob a camiseta ou tirado junto com ela, não era o único pendurada na corrente, havia também uma aliança dourada. Naquele momento, não consegui definir quais das novas informações sobre ele me deixou mais intrigada, o fato de ser religioso ou ser casado.

     — Não fale comigo lá dentro. — E o arrogante Müller havia assumido o lugar do, tolerável, Nathan. — Se tiver alguma pergunta, tome nota para não esquecer, que te responderei quando terminar. — Aquilo era mais que um conselho, vindo dele, com certeza era uma ordem.

      A obrigação de guardar minha perguntas só para mim, me ater a técnica que Müller usava, o corte preciso, as mãos firmes e ao mesmo tempo donas de uma delicadeza única, absorveu cada um dos meus sentido.
Assim, apenas quando o som estridente dos monitores se sobressaiu a música eletrônica que Müller estranhamente permitiu que Isaac colocasse no começo da cirurgia, me dei conta de que algo errado estava acontecendo com a paciente.

     O cirurgião largou o equipamento que usava para drenar o sangue no interior do crânio da mulher, a pressão intracraniana não era mais  urgente que a parada cardiorrespiratória que ele precisava resolver para poder continuar. Müller começou as compressões cardíaca, e após alguns sequência ritmadas, solicitou o desfibrilador em  duzentos joules e foi subindo gradativamente a cada vez que usava.

      — Ela não vai voltar — informou o anestesista. — Precisa declarar.

      Müller ficou imóvel. Seu peito subia e descia frenético dada a adrenalina. Ele tirou as luvas e desceu a máscara, que deveria estar dificultando sua respiração.

     — Hora da morte: uma e três. — Seus lábios foram comprimidos com força, e os olhos, de onde estava, até parecia estar marejados. Mas ele me deu as costas, antes que eu pudesse ter certeza do que vi. — A dormência da sua mão já deve ter passado, Thompson. Suture a paciente.

    Ele se livrou do avental e se retirou. Por um fragmentos de segundo, minha mente cogitou segui-lo, meu corpo  até chegou a se projetar para frente, porém meu cérebro bloqueou o comando que faria minhas pernas avançarem.

    Deixe ele ir, novata. — Isaac segurou meu braço, não com força o bastante para me machucar, mas o suficiente para deter. — Só faz o que ele pediu.

     Não sabia o porquê, mas nem tive chance de questionar a importância de costurar alguém que nem estava mais vivo. O doutor Perry sempre deixava este trabalho para o legista. Contudo, também não me importava em fazer.

    Isaac e o Gui, o instrumentador do meu supervisor, me fizeram companhia até o fim. Nós três deixamos o centro cirúrgico juntos, o enfermeiro, que descobrir ser um brasileiro, arrancou várias risadas ao longo de todo a caminho até o elevador, com seu relato do dia em que foi assediado por uma paciente idosa que teve que ficar acordada durante o procedimento.

     — Preciso que venha comigo até a biblioteca. — O médico apertou o botão correspondente ao sexto andar. — Tenho que te mostrar uma coisa.

    Como estávamos apenas a um andar de distância, a subida foi rápida. A caminhada até a porta última porta do corredor também não foi longa.

     — O que vou te mostrar, vai mudar completamente a forma como você vê ele. Mas se pretende tê-lo como mentor, tem que ir acostumando com situações assim. 

     Um arrepio, que começou no alto da minha coluna, se alastrou por todo o meu corpo quando Isaac abriu a porta, e consegui ver a imagem como um todo. Boquiaberta e com os olhos completamente arregalados, analisei a parede coberta por números e símbolos matemáticos, muitos deles eu nem fazia ideia do nome ou para que serviam.

     Acredite, vê-lo encarando uma parede em banco enquanto resolvia um cubo-mágico sem olhar, nem se comparava com assistir Müller, de pé sobre uma cadeira, escrevendo por todo a parede como se estivesse no meio de um surto psicótico.

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