🔴Capítulo 6/1 - Thompson
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A ausência de Cortez só fora sentida por mim, que tive a cirurgia que ia assistir adiada, e por todos que não gostavam do Marshall, já que nos dias que o chefe de cirurgia esteve fora, o diretor se obrigou a deixar seu refúgio na cobertura para manter a ordem.
Não tinha nada contra o Marshall, mas a única ocasião em que havíamos estado juntos foi na minha entrevista, então minha opinião não valia muito. Entretanto, outra pessoa parecia ter algo contra o diretor, e este era sangue do seu sangue. Isaac ficou fora do hospital por quase dois dias e os boatos que corriam pelos corredores é de que o motivo era seu pai.
Logo deduzi que o desaparecimento simultâneo do meu supervisor também se dera pelo mesmo motivo. Era menos cruel pensar que o doutor Müller também sumiu por causa do Marshall, do acreditar que ele apenas estava evitando de fazer cirurgias, para que assim também não tivesse que me levar junto.
Terça à noite, quando vi Müller de relance no corredor da Unidade de Terapia Intensiva, deixando o quarto da Hope, ele me lançou apenas um olhar de desaprovação, que deduzi ser pelo fato de estar sem a tipoia. Não que eu esperava um sorriso ou um “senti sua falta”, mas um simples cumprimento não iria matá-lo.
Mais tarde, no mesmo longo e interminável plantão, senti um pouco de satisfação ao assisti Müller ser acusado por todas as possibilidades que poderiam ter levado à paralisia do Walsh. A cada uma delas eu observava de longe sua reação. Por mais genial que fosse o argumento, ele nunca demonstrava surpresa ou ficava impressionado, era como se já esperasse cada uma das teorias.
Não levei muito tempo para perceber que, desde o dia em que nos pediu ajuda, Müller já tinha preparado sua própria defesa e a trouxera consigo desta vez, listada e resumida em uma folha de papel, onde pude ler sem dificuldade as primeiras linhas, antes que ele a guardasse dentro da pasta do caso, com certeza por ter me pego espiando.
A comprovação de que seu pedido de ajuda fora apenas um teste, veio quando Camille lhe apresentou a teoria que trabalhamos juntas para criar, onde cogitamos a possibilidade de ter lesionado o nervoso com o cateter do exame, pois a sexta ou sétima linha de sua lista, posta novamente sobre a mesa, ganhou um “ok” em vermelho.
Isaac, John e Brittany, empenharam-se na parte da acusação que competia ao anestésico usado durante o procedimento. Dessa forma, se o mesmo tivesse sido aplicado centímetros acima ou abaixo de onde deveria, poderia ter atingido enervações importantes, o que explicaria uma paralisia. E foi justamente depois desta teoria que entendi o caso por completo: Müller não havia feito o procedimento desde o início, ele havia sido acionado por John, que já havia tentado, sem sucesso, fazer o exame uma primeira vez, numa posição não indicada para as condições físicas do paciente.
O que quer que tenha acontecido, o neurocirurgião deveria saber que não era exatamente culpa sua, mas em momento algum acusou o residente, deixou que John descobrisse sozinho enquanto tentava "ajudá-lo." John tentou assumir a culpa por seu possível erro diante de todos, porém Müller foi austero quando disse que aquela era apenas uma hipótese, e mesmo que tivesse correta, ele teria menos a perder do que o residente.
Não importava quem realmente tinha causado aquilo. E segundo as palavras do próprio Müller, poderia ter acontecido como Camille e eu presumimos sobre a enervação, o que teria provocado dor no paciente, e se o neurocirurgião não o tivesse sedado, Walsh poderia ter avisado e evitado tudo isso.
Ou nosso supervisor era um poço de altruísmo, ou já tinha ciência de sua culpa, e falando de... como é mesmo o primeiro nome dele? Mas independente de qual fosse o seu nome, a segunda opção era mais plausível se tratando de alguém indiferente feito Müller.
* * *
A Emergência estava uma verdadeira confusão, um acidente na rodovia de acesso à cidade vizinha foi o motivo. Pelo que ouvi de um grupo de enfermeiros, um caminhão havia perdido o controle e invadido a pista contrária, acertando em cheio dois carros.
Quando cheguei à Trauma quarto tive certeza de que o meu cochilo seria adiado por tempo indeterminado. Eva e uma enfermeira tentavam estancar a hemorragia causada por uma fratura exposta de úmero, no motorista de um dos carros. Fatura exposta era uma palavra endossada para aquela quase amputação do braço direito.
— Providencie duas bolsas de O negativo! — Pedi com urgência para a chefe das enfermeiras, que me olhou com um inesperado desdém antes de acatar. — Ele vai precisar de cirurgia. Quem você chamou? — perguntei a residente.
— Diana e Lisa estão cuidando de uma adolescente com múltipla amputação dos membros inferiores, a Madison está operando a motorista do outro carro junto com o seu mentor. Uma fratura de coluna pelo que vi no quadro de cirurgia. — Logo deduzi que estivesse se referindo ao Müller, embora a nossa relação atual me fizesse duvidar que um dia iria chamá-lo de mentor, porém também não a corrigi quanto ao fato dele ainda ser só um dos meus supervisores. — A Cassandra e a Savannah estão em um simpósio em Washington.
Com três cirurgiãs ortopédicas e as R4 e R5 ocupadas ou fora do hospital, só restava ao paciente uma R1 com pouca experiência na área e uma R3 com experiência considerável, porém que nunca foi oficialmente desta área e estava com o maldito braço imobilizado por uma tipoia.
— Ia te pedir para não parar de comprimir em hipótese algumas, mas acho que tenho uma ideia melhor. — A ruiva me olhou com estranheza.
Calcei as luvas e analisei o ferimento quando Eva tirou a mão um pouco receosa. Fiz um sinal com a mão para que ela retomasse a compreensão até que eu reunisse os equipamentos necessários.
— Pensei em uma embolização para interromper a hemorragia, mas é difícil conseguir stent se não for da cardiologia. E também tem o fato de que não seria viável interromper o fluxo de sangue para o restante do braço, que pode ser reimplantado com facilidade — expliquei, indo em até os armários. — No entanto, não precisamos de nada da cardiologia para fazer um bypass externo.
Sorridente, balancei o pacotinho lacrado que havia pego em uma das prateleiras, contendo um pequeno tubo flexível de borracha.
— Você pretende cortar o braço dele e religar os dois pontos da artéria rompida usando uma mangueira pendurada pelo lado de fora? — questionou incrédula.
— Na verdade, nós duas vamos ter que fazer isso. — Balancei a tipoia.
— Mas precisa ser da cardiologia para fazer algo assim!
— Eu meio que era, então acho que é o suficien...
— Não é mesmo. — A voz, que reconheci no mesmo instante pelo sotaque de Portugal, invadiu a sala nos interrompendo.
Fui invadida por frustração resultante das palavras que ele usou, mas este sentimento de transformou em uma inesperada felicidade quando me virei e vi o residente parado na porta da baia, de braços cruzadas e trajando seu uniforme azul-claro.
— Veio ajudar, Guerra?
— Por que eu faria isso? — Seu tom fora de total superioridade. — Ao contrário de você, ouvidos de ouro, eu não me envolvo nos casos de outros departamentos.
— Me chama assim de novo e... — O apelido não tinha um significado pejorativo, porém seu tom toda vez que o pronunciava era no mínimo ofensivo.
Peguei um bisturi e removi a embalagem, depois encarei novamente o homem que ainda estava parado no mesmo lugar. Nos seus lábios carnudos, rapidamente se abriu num sorriso tão provocativo que fez meu sangue borbulhar dentro das veias.
Cruzei a pequena sala com certa impaciência e muita pressa, decidida a enxotá-lo para fora e fechar a porta, mas o residente me impediu, quando avançou alguns passos e barrou a passagem com seu corpo. Interrompi a marcha a tempo, senão teria atingido seu corpo em cheio.
— Se não vai ajudar, não tem porquê ficar aqui.
— Eu quero assistir o seu suicídio profissional, ouvidos de ouro — sussurrou a última parte em sinal de afronta, como se todo o resto já não fosse o bastante.
— Tanto faz. Mas se abrir a boca, vai precisar reimplantar sua língua de volta. — Trouxe o bisturi que empunhava até a altura do rosto do médico, que se esquivou tão rápido que foi impossível para mim conter o riso.
Andei novamente até Eva, que continha a vontade de rir com a mesma intensidade que continha a hemorragia do homem inconsciente sobre a maca.
— Eu faço as incisões, você insere os desvios e sutura nas extremidade para que suporte a pressão até que alguém possa opera-lo.
— Como assim desvios, Dra. Thompson? Por que usou o plural? — Eva quis saber.
— Um para sangue arterial e outro para o venoso.
— Você só pode ter perdido o juízo — Luiz se intrometeu, e o olhar de repreensão que lhe lancei depois disto evitou que o mesmo acrescentasse qualquer outra coisas.
Localizei a artéria na altura do bíceps, usando a mão direita, depois me inclinei um pouco para que a mão limitada pela tipoia pudesse cortar os tecidos. Depois de fazer o mesmo na altura do antebraço, Eva fez a parte dela. Então repeti o procedimento, porém à procura da veia desta vez.
Nunca tive dúvidas de que o desvio da artéria funcionária, já havia feito este procedimentos várias vezes antes. No entanto, restabelecer a circulação completa de um membro com esse método era inovador até para mim. Receosa, tirei a pinça que impedia o fluxo no tubo que foi implantado na artéria. O líquido vermelho-escuro fluiu como o esperado, depois aguardei ansiosa enquanto o sangue fazia seu percurso, oxigenando até as extremidades dos dedos, para que pudesse retornar ao coração, assim, tendo que passar pelo desvio, o que provaria o sucesso ou fracasso do procedimento.
— Não acredito que funcionou mesmo — o residente falou, tentando disfarçar o quão impressionado havia ficado. — Nunca vi isso antes.
— Ainda bem que permiti que você ficasse, para aprender com a melhor.
Joguei-lhe uma piscadela, sorri e andei até a saída, passando por ele sem acrescentar mais nada. Não podia correr o risco de dividir o mesmo ambiente com ele por mais nem um segundo, pois não poderia conter o alívio que me consumia por mais tempo, o que estragaria tudo.
* * *
De volta ao sexto andar, me arrastei até o corredor principal com o desânimo de um enfermo nas alas do andar de baixo. Queria ter desejado minha cama com mais forças, mas utilizei as poucas que me restavam para chegar até o quarto dos plantonistas daquele andar e conseguir qualquer lugar que pudesse me encostar para dormir um pouco.
Todas as partes dos dois beliches de madeira estavam ocupados. As partes de cima por uma única pessoa cada, e as de baixo, que eram mais espaçosas, por duas. Não eram exatamente tamanho casal, mas era maiores que as de solteiro convencional. Praguejei enquanto fechava a porta e caminhava na escuridão até o desconfortável sofá de três lugares, junto a parede da janela.
Sem sono, tirei os fones de ouvidos, coloquei minha coletânea de rock preferida no volume máximo e estudei os possíveis diagnósticos para próxima ronda, até adormecer sentada. Não consegui sequer passar do sono de vigília, me permitindo perceber quando a música parou.
Quando abri os olhos, o quarto não estava tão escuro, como quanto havia deixado quando entrei. A porta do banheiro estava entreaberta, e a luz estava acesa. Se eu tivesse olhado ao redor antes de começar a tatear todo o sofá, talvez aquela madrugada pudesse ter acabado de forma diferente.
Não deveria ter ignorado aquele aroma amadeirado, que antes não recendia por todo o ambiente. Um cheiro que não podia exalar de outra origem que não fosse ele. Aquele inebriante perfume tinha uma fragrância única, que era um desperdício o fato de pertencer ao mais arrogante dos neurocirurgiões.
Uma das mãos que procurava pelo celular encontrou, no acento ao lado, algo que era mais rígido que uma almofada. Um emaranhado de arranjos musculares bem torneados, cuja temperatura atravessava o tecido do uniforme, irradiando o calor da sua coxa diretamente para a palma da minha mão.
Girei a cabeça com extrema cautela, e quando meus olhos se chocaram com os dele, num reflexo, um grito gutural se desprendeu da minha garganta. E este foi rapidamente abafado pelas mãos cadavéricas.
— Quer acordar todo mundo? — Müller perguntou, neguei com a cabeça, então ele descobriu minha boca.
— Faz quanto tempo que está aqui? — questionei quando meus batimentos começaram a normalizar.
— Onze minutos. Sabe... mais onze centímetros e nossa convivência estrará comprometida para sempre. — Ele pareceu pensativo.
— O quê? — A confusão banhou minha voz e, com certeza, todo o resto.
O homem levou a mão até a parte de trás da cabeça e apertou a musculatura sobre a cervical, aparentemente tão tensa quanto ele demonstrava estar. Depois de um tempo procurando as palavras certas, explicou:
— Sua mão... ela ainda está na minha coxa.
Desci os olhos rapidamente e puxei a mão com mais pressa ainda quando a vi ali, repousando a poucos centímetros da virilha dele. E como ele observou, a uns onze centímetros de algo ainda pior. Algo que marcava no uniforme de modo que já despertava o suficiente a imaginação, o que por si só já era improprio. Logo, a imagem que surgiu na minha mente quando me esquivei, chegou a ser doentia de tão imprópria. E de certa forma nojenta. Pois só alguém doente pensaria em tocá-lo daquela maneira.
Müller não era tão asqueroso assim. Na verdade, tivera vezes que até o classifiquei como bonito. É claro que, não nos meus momentos mais racionais. Ele não era um deus grego como esses astros de seriados jovens, nem tão espetacular quanto os estereotipados personagens que a literatura tanto enaltecia. Mas o médico também estava bem longe de ser considerado com um tipo comum. Como homem, ele tinha sim seus atrativos, no entanto, nossa hostil convivência fazia com que ignorasse todos eles.
— Acredito que estava procurando por isto, Thompson. — Assenti desconcertada quando Müller me estendeu o celular.
Bom, nem todos eles eu conseguia ignorar tão bem assim. Aquele timbre rouco junto da mansidão ao falar era uma das falhas na minha armadura, e o maldito até teve a audácia de me acompanhar em um dos meus mais reservados momentos. Não, não me toquei pensando na voz dele, ela me veio à mente de repente, por acaso e justamente nos instantes mais cruciais da caricia. O que me fez, de certa forma, agradecer o sumiço do cirurgião no começo da semana. Pelo menos até que minha mente não regredisse àquele momento de prazer todas as vezes que ele pronunciava meu sobrenome com aquele sotaque.
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