🟢Capítulo 4/2

      Um frio na espinha me acordara, um arrepio percorreu o meu corpo de uma forma incomoda. Encarei o visor do celular, que eu nem me lembrava de ter pego, eram exatamente 3:03 da manhã.

      Olhei ao redor e percebi que estava no sofá com Glück, minha gata, dormindo sobre minha barriga. Sinceramente, não me lembrava de ter sentindo sequer o mínimo de sono, por isso não compreendia o fato de ter literalmente apagado.

      Esse era o problema de se sofrer de insônia, quando se precisava dormir, não conseguia. E então quando seu corpo e mente já estavam sobrecarregados demais, o cérebro simplesmente desligava tudo sem aviso prévio.

       Encarei a tela de cinquenta e cinco polegadas diante de mim. O noticiário de antes havia dado lugar a um reprise do pronunciamento feito pelo presidente no horário nobre. Pela legenda, vi que se tratava de alguma ação do Exército Americano no Oriente Médio. Peguei o controle remoto sobre o vidro da mesinha de centro e desliguei a televisão sem sequer olhar além da legenda, para o homem que, certamente, trajava um de seus ternos que custava mais que minha BMW 2009, ou para o intérprete de sinais que provavelmente usava uma camiseta lisa e de cor neutra, no canto inferior direito da tela.

        A tela do IPhone iluminou-se exatamente quando o controle fora devolvido à mesa. Cogitei que pudesse ter sido apenas o detector de movimentos, mas logo vi que tinha algo a mais.

     Uma notificação: “Precisamos falar sobre Walsh”, dizia a mensagem de Cortez, no centro da tela recém desbloqueada.

      Tais palavras trouxeram de volta o mesmo calafrio que acordou-me. Um gelo que parecia ter atravessado as três camadas da pele, musculatura e se instalado entre minhas vértebras, onde antes habitava uma dor bem familiar, então houve uma dormência momentânea onde já vinha latejando sem trégua a dias.

    Quatro segundos, e tudo se normalizou, o frescor na espinha se fora e aquela com quê já estava habituado voltou: a dor.

      Acordei Glück, depois rastejei para fora do sofá e caminhei com dificuldade até o quarto. Da porta, encarei a enorme cama no meio do cômodo, imagem que sempre fazia com que eu me perguntasse o porquê de tê-la comprado, já que passava tão pouco tempo em casa, e deste tempo, o que eu passava dormindo, quando conseguia dormir, era menor ainda. Quando ocasionalmente a insônia dava uma trégua ou do cansaço me vencer, em noventa e seis porcento das vezes, o sofá era o escolhido.

      Decerto porque aquele sofá preto aveludado era muito mais confortável que esta droga de colchão ortopédico, que chegava a ser quase tão aconchegante quanto o chão sob os chilenos de borracha que usava. 

      Garanti que, pelo menos, o travesseiro que coloquei entre minhas costas instáveis era macio. Depois peguei o notebook e uma pasta que estavam sobre o criado-mudo e depositei sobre a almofada que estava sobre meu colo.

       Não tinha certeza se apenas duas horas e quarenta e nove minutos de sono eram o suficiente para meu cérebro desta vez,   porém estava preste descobrir. E não conseguia pensar em nada melhor para fazer, enquanto espera meu sono voltar, do que descobrir uma forma de resolver meu empasse com Walsh.

* * *


    O céu não estava nenhum pouco amigável quando sai para o trabalho. Já eram 7:23am, e as nuvens densas cobriam o sol e todo o resto de tal modo que era de se questionar se a hora no relógio de pulso não estaria errada. Estava tão escuro que parecia ainda ser noite, prova disto é que os postes nas ruas ainda nem haviam se apagado, não tinha luminosidade natural o bastante para substitui-los. 

      Havia parado de nevar, embora as temperaturas tivessem subido apenas o suficiente para sair do negativo. Fazia exatamente um grau, porém a sensação térmica ainda permanecia abaixo de zero. Por isso coloquei um casaco quando sai do carro no estacionamento.

       Evitar o Cortez se tornara um hábito para mim, o que não era muito difícil considerando sua rotina tão previsível. Entretanto, naquela manhã eu tinha que ver o Cortez — precisava vê-lo. Mesmo que a contragosto.

      Subi até o primeiro andar pelas escadas, de lá peguei o elevador até o segundo andar. Como previa, o chefe de cirurgias estava perambulando pelo setor de queimados.

       — É uma pena que sua visita seja por um motivo tão desagradável — afirmou Cortez tirando as luvas e dando a volta no balcão, em seguida sentou-se junto a ele pelo lado de dentro. — Mas antes me diga como está. Conseguindo controlar a dor?

        Ambos fomos distraídos por uma enfermeira, quando a mesma depositou uma caixa térmica azul e branca sobre a superfície de mármore.

       — Pele de tilápia para implante — informou, quando voltei meu olhar novamente para ele. — Dormiu quantas horas esta semana?

      — Disse que precisa falar, agora está criando pretextos para não o fazer. — Hesitei antes de finalmente emendar: — Acredito que minha sequela ou os efeitos colaterais dela não vem ao caso agora.

       — Bom, se nós considerarmos que o Walsh adentrou minha sala usando uma cadeira de rodas e gritando que há uma semana o meu neurocirurgião-chefe, “frustrado e exausto”, o sedou sem seu consentimento e quando ele acordou não sentia as pernas, acho que vem ao caso sim. — Cortez fez uma pausa para ganhar fôlego. —  Ele está decidido a levar isso a diante.  Não sei como resolver isso, mas você é sagaz, sei que vai dar um jeito.

       Da forma que ele falou até fazia parecer fácil. Mas depois de toda uma madrugada de pesquisar, eu sabia melhor do que ninguém que aquela não seria uma coisa, nem de longe, fácil.

      — Espere tudo. Nós não sabemos o que ele sabe de fato sobre você.

     Lá estava ele novamente, o gelo na espinha, como um mal pressagio.

* * *


   Reed, o enfermeiro que auxiliou durante toda a cirurgia de seis horas e onze minutos, entregou-me a toalha branca assim que me despi dos equipamentos e roupas de proteção usados durante o procedimento, para que pudesse fazer eu mesmo desta vez. Sequei a testa e o pescoço rapidamente, depois peguei o jaleco que estava pendurado em um gancho ao lado do lavatório e deixei a sala com a mesma urgência dos pensamentos surgindo na minha mente.  

      Atravessei o corredor do centro cirúrgico, encostei a testa na gélida vidraça, fechei os olhos por alguns segundos, depois perpassei o olhar sobre a cidade. Havia voltado a nevar há duas noites e não parara desde então, no entanto, os focos brancos caindo lentamente sobre as ruas iluminadas eram de uma graciosidade única. As luzes da cidade, a aquela distância e altura, tinha uma certa magia os olhos.
     
      Lá em baixo, cada lâmpada acesa não clareava mais que alguns metros de seu ponto de origem, porém todas elas juntas eram capazes de iluminar toda a cidade. Naquele instante, metaforicamente, uma luz se acendeu dentro da minha cabeça, indicando a saída daquele labirinto de problemas, hipóteses e estatísticas que havia criado. Tirei o celular do bolso e comecei a digitar uma mensagem de texto, ao mesmo tempo que caminhava em direção a porta dupla no fim do corredor.

      Depois de jantar no segundo andar, dirigi-me até a biblioteca quatro piso à cima. Ao cruzar a porta, que já estava aberta, deparei-me com um verdadeiro alvoroço. Também como não poderia ter um depois de minha solicitação repentina e sem muitas explicações? Principalmente àquela hora, o exato momento da troca de turnos, quando todos se encontravam no hospital ao mesmo tempo.

       Dois neurocirurgiões, três residentes, dois anestesistas, misturados e agrupados aleatoriamente ao longo das mesas de estudo.

     Smith foi a primeira a notar minha presença, então, com palmas, ganhou a atenção de todos e estabeleceu a ordem.

     Precisava ser breve, pois tinha poucos minutos até Smith dar início à próxima cirurgia auxiliada por Neville, Sullivan acabar de passar a última visita daquele sábado aos pacientes acompanhado da Thompson e Perry poder finalmente deixar o hospital, porque não havia nada mais frustrante para ele do que ter que dobrar seu plantão e passar a noite aqui.

      — Todos vocês certamente já devem estar a par do caso do Dr. Walsh...

      — Do seu problema com ele — corrigiu Perry, interrompendo-me.

      Assenti, sentando-me na beirada da mesa onde havia uma única pessoa, isolada na extremidade oposta a minha — Thompson. A residente não encarava-me diretamente, porém não tinha dúvida de que prestava atenção no que era dito.

      — Nós somos uma equipe, Enzo — retorquiu Sullivan com a expressão consternada.

      — Cara — interferiu Isaac —, fale isso só por nós, porque esse daí só lembra que a gente existe quando é para tirar o dele da reta.

      Uma expressão maquiavélica percorreu as faces de Perry, então ele fez alusão de falar, provavelmente, viria uma resposta à altura e destinada ao Isaacson, mas que ofenderia igualmente a mim. No entanto, antes que ele pudesse finalmente expor seus pensamentos caluniosos, eu disse, apaziguador:

      — Não chamei vocês aqui para isso. — Deixei os dedos entrelaçados caírem sobre meu colo. — Preciso de ajuda para entender como isso pode ter acontecido.

     — É fácil: não aconteceu, porque é uma farsa, cara, ele está fingindo. Eu sei, você sabe, todos nesta sala sabem, até mesmo a novata.

     De soslaio, vi quando a última parte de Isaac fez a garota ter um sobressalto, esperei que dissesse algo quando acalmou-se, mas não o fez.

     — E os médicos que examinaram ele estão fingindo também? — questionou Perry.

     — O chefe tentou examinar o Walsh  — explicou Smith enquanto digitava algo no celular —, mas ele alegou que o vínculo dele com o Müller poderia interferir no resultado.

      O termo usado por Walsh descrevia perfeitamente o que Cortez e eu tínhamos agora: um vínculo.

      Sullivan levantou-se, ganhando minha atenção com o abrupto movimento.

      — Se ele fosse tão esperto, teria previsto que a recusa seria suspeita, o que conta ponto para você.

     Todos os olhares foram na direção da inesperada resposta ao comentário de Sullivan. Sem ter percebido quando tomei a decisão de fazer aquilo, eu também já estava encarando a residente na outra cabeceira da mesa.

      — Sem poder tocar fica mais difícil provar algo. Então, se ele tiver fingindo, é ponto dele.

      — Saber de quem é o ponto não ajuda muito agora  — repreendeu Neville, arrumando uma mexa dourada de seu cabelo atrás da orelha com impaciência.

     Deixei a mesa, tão logo disse:

     — Estou ciente de que minhas ações acabaram por complicar a situação, além de também dar uma margem grande de vantagem para ele. — Fiz uma pausa, para procurar as palavras certas. — Preciso que sejam minha acusação.

      — Qualquer um sabe que este nem está entre os efeitos colaterais da pulação lombar, porque é quase impossível.

     O quase na afirmação de Sullivan descrevia perfeitamente aquilo. Era mesmo muito raro, mas não exatamente impossível. Pois até que eu conseguisse provar o contrário, para todas as vinhas de fato, eu provoquei aquilo.

      — Então teremos que provar que o impossível é possível — sugeri.

      Perry deixou escapar uma gargalhada cética e caminhou em direção à saída balbuciando algo, que o ângulo e a distância me impossibilitaram de entender.

     — Se aconteceu, não é impossível. Tão logo se deduz, que em qualquer que seja as circunstâncias, sua acusação irá se basear nas raras possibilidades de isto acontecer.

      — Deixa eu ver se entendi — disse Smith calmamente. — Se atuarmos como a defesa dele e sua acusação, vamos na verdade te apresentar as formas e probabilidades que poderia ter levado a isso?

       — Assim vocês podem me mostrar de onde deve partir minha defesa, já que não sei especificamente do que estou sendo acusado.

      — Até por se ele estiver encenando, vai fazer a mesma coisa que a gente: procurar uma forma de provar que é possível — acrescentou Isaac.

       — E por se tratar de algo raríssimo, como disseram, não haverá muitas opções que ele possa usar — concluiu Thompson, como pudesse escutar o que eu estava pensando.

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