🔴Capítulo 3/3


     Descrever com detalhes como algo aconteceu implica em estar prestando atenção no exatamente momento, o que não foi o caso. Me distrair por alguns milésimos de segundo quando o médico retornou ao quarto e no instante seguinte eu estava no chão com um homem de mais de cento e quinze quilos sobre mim.

     Müller agiu rápido, correu até nós e, sozinho, levantou o Sr. Walsh, tirando-o das minhas pernas e colocando novamente sentado sobre a beirada da cama.

     Não precisava ser um gênio para saber que aquela força, em sua maioria, era explicada pelos níveis altos de adrenalina percorrendo suas veias, uma resposta química que qualquer um teria numa situação daquelas. Mas seria hipocrisia não dizer que a física se fez de grande valia, pois sem um bom braço de alavanca e uma musculatura bem desenvolvida, o hormônio não seria suficiente para operar um milagre.

     Confesso que aquela foi a primeira vez que o analisei, que o olhei de verdade. Müller era grande, claro que também tinha a vantagem de eu estar no chão, à altura de seus joelhos, mas não falava só de altura, pois ele nem conseguia ser mais alto que Isaac ou John, porém visivelmente era o mais corpulento.

      Ele se virou na minha direção e me estendeu a mão.

     — Você está bem?

     — Acho que sim. — Pensei mais do que deveria antes de finalmente por minha mão sobre a dele. — Ele disse que não estava sentindo as pernas.

      Era um pensamento horrível e um momento péssimo para ele, mas eu bem que gostaria de não estar sentindo as minhas pernas também.

      — Não fale como se eu não tivesse aqui — Walsh esbravejou para mim, depois fuzilou o Müller com o olhar, e para ele, disse:— Isso é culpa sua, e de seja lá o que fez comigo quando me sedou ontem.

      — Eu não fiz nada além da punsão — Muller afirmou com uma calmaria assustadora —, procedimento que sequer precisa ser médico para saber que é seguro e que paralisia nem está entre os efeitos colaterais.

      — Quem prova que você fez mesmo o que está dizendo? Você... não, já chega, melhor deixe esse assunto para o conselho.

      Müller caminhou para fora do quarto com a mesma naturalidade que entrara pouco antes. Eu o segui, porque tinha certeza de que desta vez não teria um olhar para sugerir aonde íamos.

      — Você está sangrando — ele informou quando consegui acompanha-lo, o que não foi difícil, já que agora seu caminhar era mais lento devido ao mancado ostensivo. — Sua mão está! — exclamou, mostrando sua própria mão manchada de vermelho, do meu sangue.

     Eu não fui a única em que ele tocou, mas era a única que tinha um curativo nada discreto na mão, então Müller só precisou se lembrar disto, e seu tom de certeza indicava que foi uma associação automática.

      — Posso? — perguntou, direcionando os olhos para meu punho fechado em volta de uma gaze e pedaços de esparadrapo, ensopados àquela altura.

      — Não precisa se incomodar, não foi nada.

      — Vou querer olhar mesmo assim.

     O movimento sutil da cabeça indicou a direção da enfermaria. Adentramos uma sala no final do corredor e ele semicerrou a porta, deixando apenas uma pequena presta. Com cordialidade, me pediu para sentar na cadeira enquanto calçava as luvas, depois pegou uma bandeja de metal e colocou algumas coisas dentro dela, posicionando-a sobre seu colo quando se sentou de frente para mim.

     Com cuidado ele removeu o curativo, limpou o ferimento com gaze e solução salina, depois com uma pinça tirou algo minúsculo de dentro do corte, algo que seus olhos pareciam ser os únicos a ver. Foi apenas quando ele despejou um pouco de soro sobre a ponta da pinça e pôs bem diante do meu nariz que consegui ver o que era, como um pequeno diamante, o fragmento de vidro refletiu a luz.

     Ele largou a pinça na bandeja. O som dos metais se chocando me levou a olhar automaticamente para as outras coisas na bandeja: um kit de sutura, seringa com agulha e uma ampola, que eu não conseguia ver o nome, mas tinha certeza de que se tratava de um anestésico local. Fechei a mão como num reflexo.

      — Obrigada — eu disse quando me encarou —, mas você não precisa mesmo perder seu tempo com algo tão simples como um curativo e...

     — Eu costumo terminar o que comecei — informou me interrompendo. — Além do mais, seu curativo não resolveu o problema antes, então vou precisar suturar, pontos de verdade desta vez. — Engoli em seco, descendo o olhar do rosto dele na intenção de apenas fugir, mas algo logo prendeu minha atenção. — Depois, se ainda julgar necessário, faço um curativo.

     — Vai me dar um pirulito no final se me comportar? — Müller desviou rapidamente a atenção para o bolso de seu jaleco, vendo um dos palitos vermelho de plástico. — Carrega eles com você para subornar seus pacientes? Pensei que isto só funcionasse na pediatria.

     — Nunca precisei subornar ninguém — garantiu, ofendido. 

     — Desculpa. — Eu sabia que não era o bastante, mas parecia o certo a se fazer. — Isso dói? 

      Ele franziu a sobrancelha.

      — Normalmente não. Nunca levou pontos antes? — Neguei com a cabeça em resposta. Ele passou, o que se deduzir, ser uma pomada anestesista sobre a ferida, para amenizar a picada da anestesia de verdade, que viria a seguir. Minha mão tremeu sobre o toque dele. — Tem uma ampola de prilocaína naquele armário, tenta encontrar para mim de onde está.

      Olhei para o armário sobre os ombros, certa de que as medicações do outro lado do vidro estariam em ordem alfabética, mas me deparei com algo tão desorganizado quanto meu apartamento, ou talvez estivesse em uma ordem que eu não conhecia.

      Quando encontrei o que Müller pediu, no meio da última prateleira, me virei em sua direção, mas sequer me dei ao trabalho de abrir a boca, já que ele estava preste a cortar o fio que sua pinça mantinha esticado sobre o último ponto, por isso não precisaria mais de sedativo nenhum.

     Clube das mãos leves, Lisa havia usado para se referir aos neurocirurgiões. O termo fazia muito sentido para mim agora.

     Analisei como era simétrica a forma como o fio ligava as extremidades do ferimento. Se eu não soubesse qual a sua especialidade e tivesse que arriscar um palpite a partir de sua sutura impecavelmente sofisticada, não pensaria duas vezes antes de dizer que se tratava de um cirurgião-plástico.

       Antes de sairmos, enquanto ele retirava suas próprias luvas, Müller sugeriu que eu usasse duas luvas na mão direita caso tivesse que entrar em contato com sangue de outra pessoa.

      No corredor, ele me estendeu um pirulito e sem se virar para me olhar disse:

      — Por ter sido uma boa garota.

       Seu deboche foi camuflado pela mansidão de sua voz, mas mesmo assim me fez estreitar os olhos. Garota?

      Peguei o doce e joguei em um dos bolso de baixo do jaleco, ele observou tudo de viés, mas sequer fez menção de dizer algo.

° ° °

      À noite, meus planos de comprar uma garrafa de rum e me embriagar na banheira foram  frustrados por uma mensagem de texto de um número que eu não tinha salvo. Embora o autor anônimo da mensagem não tivesse foto em seu perfil, tive certeza de quem era no segundo em que visualizei. Aquela forma seleta com as palavras não precisava de uma assinatura.

      “Está de plantão.  Galeria da SO5.”

      Sem muitas abreviações, sem explicações e sem nenhuma demonstração de emoção. Não é que eu tivesse esperando carinhas sorridentes no fim da mensagem apenas pelo fato de ele ter costurado minha mão e dado um pirulito, mas agradeceria se não fosse tão robotizado.

      Vi a imagem da banheira se dissipar na minha mente feito fumaça, então tive que me contentar com o chuveiro do vestiário. Quando saí do banho, desejei um pijama de flanela e um cobertor bem grosso, por isso praguejei por ter que vestir novamente o uniforme e apenas uma blusa de lã sob a camiseta. Dobrei as mangas justas até ficarem do comprimento dos meus braços  e deixei o vestiário, prendendo mais uma vez o punhado de cachos curtos no auto da cabeça.

     Segui para o centro cirúrgico, mas antes passei pela cantina e comprei o maior copo de café disponível.  Eu precisava do máximo de cafeína possível se quisesse me manter com os olhos abertos pelas próximas horas. Tomei toda a bebida fumegante o mais rápido que consegui, depois joguei o copo vazio de isopor antes de entrar na sala.

      Eu não havia estado na Cinco antes, mas seu interior não era muito diferente da Seis, onde passei a tarde enquanto Müller supervisionava as duas cirurgias que John realizou ao longo da tarde. Do lado de dentro também havia um pequeno lavatório oferendo duas portas: à esquerda tinha uma porta sem maçaneta, fácil de ser aberta de ambos os lados por quem, por motivos óbvio, não podia usar as mãos para entrar ou sair da sala de operatório; já à direito, um estreitamento das paredes formava um corredor, no final dele estava a porta da galeria, no alto de alguém degraus.

      Notei que a porta estava entreaberta, mas preferi pensar que alguém a deixara assim ao sair e sequer cogitei a possibilidade de alguém não tê-la fechado por completo ao entrar. Por passar a tarde toda sozinha na galeria, a presença de Müller me fez recuar.

      Ele estava sentado na primeira fileira, na segunda cadeira perto da parede. Seus olhos desviaram sutilmente da tela do notebook que estava sobre seu colo, tomando conhecimento da minha presença, porém sem dar muita importância, já voltando a atenção para o que seus dedos não pararam de digitar por um único segundo. Notei que a cadeira entre ele e a parede não estava vazia, mas por ser maior por todos os ângulos,  Müller cobria a pessoa quase por inteiro, exceto pelos longos cabelos castanhos jogados sobre o encosto da cadeira. Uma mulher.

      — Mel... — Me obriguei a dar um passo à frente e olhar além do médico para vê-la. Lisa. — Me diz que trouxe a pipoca.

       Tinha um jaleco, mas não um uniforme alaranjado. Ela não parecia uma presidiária dentro do jeans claro e da blusa de seda branca, no entanto, estava bem presa ao braço do cirurgião.

      Lisa se soltou dele. Desviei o olhar, desejando que minha expressão não tenha sido o motivo. Ele a encarou com casualidade.

      — Você não pediu para ela trazer a pipoca, não foi? — Müller negou com a cabeça em resposta. — Sabe que a Diana gosta de fazer as cirurgias demorarem mais que o necessário quanto se trata de crianças, e você mesmo fala que o Enzo é lerdo à noite. Eu vou dormir se não tiver nada para mastigar.

      — Por que não experimenta sua língua — ele sugeriu, vontade a fitar o computador.

      Lisa abaixou a tela do notebook de uma vez, como forma de revidar. Ele apertou os lábios, depois eventualmente me encarou. Não entendi o porquê, e era bem provável que nem ele tenha, mas continuou por tempo o suficiente para fazer um arrepio se espalhar pela minha espinha.

     — Posso sair e buscar para você — propus ao cruzar os braços e desviar os olhos para os mesmos.

     — Pode escolher uma cadeira e se sentar, Thompson, porque se a Wallace quiser pipoca, terá que buscar pessoalmente.

      Ele foi tão categórico que tanto eu quando Lisa nos limitamos ao silêncio. Se ela, que a pouco esmagava os músculos do braço do homem com um abraço que exigia certa intimidade, não se atreveu a dizer nada, eu como novata também não o faria. Já tinha motivos de sobra para estar na lista negra de Müller, o que era péssimo considerando que eu estava no hospital a apenas três dias.

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