🔴Capítulo 3/2
Já passava da uma e meia da tarde quando finalmente consegui ir até uma das lanchonete da avenida, onde só vendiam cachorro quente, hambúrguer e batata frita, que segundo Camille eram de comer rezando, tanto pelo sabor quanto para não entupir as artérias. Mas tinha a desvantagem de ter que andar um pouco mais, pois a lanchonete ficava estrategicamente de frente ao campus da Universidade Goldenriver, como se os funcionários do complexo hospitalar não comessem tanta besteira quanto os universitários do quarteirão seguinte.
Me adiantei, pois Camille precisou voltar à pediatria para conversar com os pais de um paciente, entretanto, me alcançou a tempo de entrarmos juntas no Dino's.
— Ela está ali — informou, apontando para a mesa onde um mulher estava sentada. — Você vai amar a Lisa.
A mulher se apresentou como Elisabeth Wallace, mas disse que eu podia chamá-la de Lisa também. Depois acrescentou que era residente sênior da cirurgia ortopédica e brincou com o fato de seu uniforme alaranjado lembrar às roupas usadas pelos presidiários.
— Deve ser porque vocês são igualmente impiedosos — sugeriu Camille, fazendo um sorriso maldoso percorrer os lábios bem desenhados da esbelta morena.
— Não é culpa deles — argumentei em defesa de Lisa — se alguns procedimentos precisam ser feitos sem anestesia ou antes do anestésico fazer efeito.
— Ouviu só, Cami, ela me entende. — Lisa abocanhou o hambúrguer que segurava enquanto Camille fez os pedidos por nós duas à garçonete. Depois de limpar os cantos da boca, a residente acrescentou: — Quando quiser matar as saudades do trauma e da ortopedia é só me procurar, Mel. Ajuda é sempre bem vinda.
— Você sabe que as probabilidades do Müller permitir isso são quase nulas — Camille lembrou, Lisa deu de ombros. — Mas hoje ele apareceu na minha pré-ronda pela pediatria sem o Cortez implorar, então nada mais me surpreende.
— Acontecimento histórico — zombou.
— Do jeito como estão falando, dá até a entender que ele não trata mais crianças.
— E não trata, há anos. Pelo menos não diretamente — Camille explicou. — O chefe usa ele como consultor às vezes, mas ele nem chega a ver os pacientes.
Como um dos melhores da área chegou ao ponto de sequer ver os pacientes que lhe concederam este título?
A ortopedista também pareceu ler minha mente, quando acrescentou:
— Boatos tem de monte por aí, porém a única forma de saber a verdade é perguntando para ele, e são poucos os que te coragem para isso.
— A Lisa sabe, mas não fala nem sob tortura.
A morena de longos cabelos escorridos, sorriu com malícia enquanto sugava o resto do refrigerante pelo canudo verde neon.
— Me procura quando enjoar do clube dos mãos leves. — ela disse se levantando.
Seu tom deixou claro que aquela forma de se referir aos neurocirurgiões era pejorativa, embora eu tenha achado fofa.
° ° °
Quando retornamos ao hospital, John me repassou o recado de quem já havia ido embora, dizendo que eu podia ir para casa e que deveria retornar às cinco da manhã, para o Dr. Müller me dizer o que fazer antes de entrar em uma cirurgia neste horário.
Em casa, acabei dormindo no sofá, a cama ainda estava abarrotada de caixas e sequer cogitei a possibilidade de tirá-las de lá. Estava exausta demais até para comer, quanto mais para arrumar a cama. Meu banho, por exemplo, eu já até tinha adiado para quando tivesse que sair novamente. E pela primeira vez no dia, não senti falta do meu pai, pois ele me mataria se estivesse aqui.
Mas se estivesse aqui, meu pai também teria me lembrado de programar o despertador para às quatro da manhã ou me acordado pessoalmente. Levantei num pulo quando o bipe do meu pager ecoou ao lado da almofada, ambos no chão da sala.
Ele vai me matar!
Corri tanto que nem me dei ao luxo de sentir frio, e a única pessoa conhecida com quem cruzei no corredor estranhou o fato de eu estar suada naquele frio. Brittany me analisou de cima a baixo e continuou seu caminho com passos tão preguiçosos quanto sua cara.
Depois que troquei minha roupa pelo uniforme, recebi uma mensagem de John me dizendo para eu ir até a galeria da seis, sala onde Müller já havia começado a cirurgia, provavelmente cansado de esperar para me instruir.
Tentei entrar na galeria sem ser notada, o que teria funcionado bem se aqueles par de olhos negros tivessem ocupados demais com o bisturi como eu esperava que estariam, mas quem segurava a lâmina era Camille, e as mãos nuas e os braços cruzados do médico deixavam claro que não pretendiam mudar de lugar com ela. Ele estava ali para observar, e a agilidade predatória com que olhou na minha direção evidenciou que não estava ali só para supervisionar o procedimento diante dele.
Müller desviou a atenção para o relógio no alto da parede à sua direita, depois abaixou a cabeça e continuou assim até o fim do procedimento, quase às sete da manhã.
Um pequeno grupo já esperava o médico quando ele saiu do centro cirúrgico. Müller não parou para lhes falar, obrigando-os a segui-lo.
— Chen, acompanhe Camille na visita à pediatria, depois pode assistir o Perry na cinco. — Ele fez uma pausa tanto no discurso quanto no andar, para ler o prontuário que uma enfermeira loira lhe entregou. — Neville, vai auxiliar o Sullivan na craniectomia depois da visita à oncologia. Você pode ir até a radiologia e ao laboratório recolher os exames que solicitei — disse olhando para o outro interno, Julian Harris.
O grupo se dispersou em direções diferentes, restando apenas Müller e eu no corredor. Ele tirou uma caneta do bolso e assinou o prontuário, devolvendo a prancheta as mãos da enfermeira, depois desviou o olhar na minha direção e suspirou, provavelmente por ter se dado conta que havia esquecido de designar algo para a novata.
— Pediatria ou oncologia? — perguntei logo, pensando estar facilitando na decisão dele.
— Justamente agora você resolveu ter pressa? — O tom não foi tão caustico como das outras vezes, mas deixou claro que era uma repreensão pelo atraso. — Não te mandei a lugar nenhum por um motivo: vai ficar comigo hoje.
No tom certo de voz, aquela frase podia facilmente ser subentendida como um flerte, mas não de alguém como ele, e o desdém usado pelo médico não deixou margens para duplas interpretações.
Já nos poucos metros que havia começado a segui-lo, pude perceber que Müller só falava quando necessário, não cumprimentava as outras pessoas e nem respondia quando elas o faziam. O conteúdo no tela do tablet parecia consumir todos os seus sentidos, deixando-o tão submerso em seus próprios pensamentos que sequer conseguia ouvir os sons a sua volta, ou talvez só fosse bom demais para responder a um simples bom dia.
— O que foi? — indagou, me olhando de repente. Neguei com a cabeça na intenção dele entender que com aquilo significava que eu queria dizer que não era nada. Ele voltou a olhar para o tablet. — Se continuar me encarando assim vou entender que quer me dizer algo.
Tinha de admitir, ele possuía sentidos mais aguçadas que outros. A capacidade de perceber o que está fora do foco principal de visão era uma habilidade que eu admirava, pois visão periférica nunca foi meu forte, nunca fui boa em ver nada que não estivesse bem à minha frente.
— Se importa de me adiantar aonde vamos?
— Você disse algo? — ele questionou, olhando diretamente para minha boca.
Meus olhos não eram precisos, mas pelos menos eu conseguia prestar atenção nos meus pensamentos sem precisar ignorar o restante a minha volta. Acho que isto nos deixava, de certa forma, empatados.
Repeti a pergunta. Müller apenas olhou através da janela do corredor, e não precisei de muito para entender, pois o prédio ambulatorial estavam bem diante de nós. Ele tinha uns três andares a menos que o hospital, mas não era o tipo de construção discreta, a arquitetura moderna e as cores chamativas não foram pensadas para passarem despercebidas.
Em silêncio, atravessamos a passarela que interligava os dois prédios na altura do quarto andar, fiquei olhando além das paredes de vidro temperado. Era difícil saber se tinha algo que valia a pena ser admirado no lado norte da cidade, já que uma barreira de arranha-céus tapava tudo.
Meu pai havia comentado do bosque e de uma ponte dourada sobre o rio que cortava a cidade, do pequeno braço do mar à leste e da vasta floresta ao sul, mas eu não me atrevi a desviar os olhos para outra direção, não enquanto estivesse na companhia dele, não enquanto ele pudesse pensar que eu o estava encarando.
Müller atendeu apenas um paciente, Mike Evans, um atraente jogador de basquete, que havia operado no ano passado. Foi uma consulta padrão de retorno, entretanto, tinha algo no comportamento do médico que fugia ao padrão dos outros profissionais com quem já dividi o consultório antes: a forma como encarava a boca do homem diante dele. Eu me concentrei em estudar o histórico do paciente, para não ficar pensando no que aquilo significava, até porque não era da minha conta.
Depois que o Sr. Evans saiu, Müller me entregou uma ficha, que logo percebi se tratar de um caso novo. Ele deduziu que eu sabia o que fazer, por isso apenas informou que iria até o centro cirúrgico resolver algo e que podia começar sem ele.
Eu sabia décor o modos operante da clínica, mas não era algo que eu gostasse de fazer, ficar limitada a um consultório fora, sem dúvida, o principal motivo para ter escolhido a cirurgia, mesmo que às vezes tivesse que me submeter as entediantes consultas no ambulatório. Até porque nem todo mundo que precisava ser operado estava sobre um leito de hospital.
Gostaria de ter sido avisada que Naomi Hawke era uma socialite arrogante e insuportável, mas por se tratar da primeira consulta dela, eu dava um desconto ao meu superior pela falta de informação. A megera se exaltou quando disse que não poderia lhe adiantar nenhum diagnóstico antes que os resultados dos exames saíssem, expliquei que aquele era o protocolo, embora a verdade fosse que eu não fazia ideia do que dizer, não conseguiria pressupor o que ela tinha nem levando em consideração seus sintomas. O sentimento de impotência me invadiu, quando ela saiu resmungando e bateu a porta com mais força que o necessário.
Por isso preferia a cirurgia, os pacientes quase sempre estavam sedados os debilitados demais para dar xilique.
Mergulhei com o rosto em direção a mesa, frustrada. Escutei a porta se abriu, depois a voz com sotaque intrigante dizer:
— Tem alguém muito pior esperando no 510.
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