🟢Capítulo 2/3
Quando cheguei à enfermaria da ala oeste, ao invés de uma urgência, deparei-me com um residente retraído num canto do quarto, e um paciente furioso sobre a cama. O homem robusto de cabelos grisalhos, atacou-me com um turbilhão de queixas quando me viu parado na porta. Queixas das quais não consegui acompanhar um-terço dada a velocidade com que foram despejadas, e o fato do homem dar-me as costas tantas vezes, para fuzilar Sullivan, reduziu ainda mais minhas chances de entender.
— Acalme-se, Dr. Walsh — pedi, pacificador. — Agora, para que eu possa ajudar, volte do começo, devagar e olhando para mim.
Ter médicos na condição de pacientes era algo que não me agradava muito, por um monte de fatores, mas, especialmente pelo desdém com que tratam todos que tentam ajudar. Ninguém era tão bom quanto eles.
— Seu residente me espetou inteiro como se eu fosse uma maldita cobaia.
Ignorei o termo usado erroneamente por ele, até porque seria uma perda do meu tempo tentar explicar que, cobaias eram vítimas de experimentos realizados por indivíduos cuja humanidade era questionável, sendo várias vezes sacrificadas aos fim destes.
Todavia, não tive dúvidas quanto ao exagero de Walsh quanto as vezes que foi perfurado, até por que ele nem tinha como sentir ou saber a quantidade sob o efeito do sedativo local.
Era a primeira vez que Sullivan acionava meu pager com urgência por causa de uma punção lombar, procedimento que ele havia realizado tantas vezes com maestria. Porém, não foi difícil saber o que dera errado naquele procedimento, pois Walsh ainda estava deitado de lado sobre a cama, não se encontrava mais com o pescoço dobrado numa flexão completa e nem com os joelhos tocando o tórax, em posição fetal, mas não tive dívidas que era assim que ele estava antes de eu chegar. Aquela posição era o erro, apesar de ser a mais indicada para punção lombar, nas condições físicas do paciente a posição ereta seria a mais adequada, e Sullivan sabia disto.
— Ele não deixou — respondeu o residente, sem que minha boca tenha feito sequer alusão de perguntar-lhe algo. — Quem sabe se você explicar sobre a posição ele acredite.
O rapaz entregou-me a bandeja metálica com material estéril que segurava, livrou-se das luvas de látex e as jogou no lixo. Depois, retirou-se do quarto pisando tão duramente que eu ainda pude sentir a vibração de seus passos contra o mármore, mesmo quando meus olhos já não conseguiam mais vê-lo no corredor.
— Qual foi a última fez que realizou uma punção em um paciente? — questionei pretensioso, colocando a bandeja sobre a mesinha de cabeceira.
— Em que um procedimento desses seria útil para um cirurgião gastroenterologista? — Sorriu para acentuar seu deboche, como se antes disse ele houvesse passado despercebido.
Peguei no bolso do jaleco um pequeno pacote estéril, de onde tirei um avental descartável, assim não violaria nenhuma norma sanitária, já que não sobrara-me tempo para trocar de roupa.
— Meu residente fez este mesmo procedimento trinta e quatro vezes só no ano passado. — Seus olhos semicerraram, ele havia me entendido. — Com coluna ereta há uma menor distorção da anatomia, o que facilita chegar entre a L3 e L4 em pacientes acima do peso, como Sullivan deve ter lhe dito.
— Para aumentar o disco de me deixarem aleijado? Eu já li sobre isso em algum lugar. Não mesmo, Miller!
— É Müller! — a correção saiu instantaneamente, mesmo tendo ciência de que ele errara de propósito. — E não fiz uma sugestão, foi apenas umas explicação do que vou fazer.
Fiz um ligeiro cálculo mental, afim de extrair uma quantidade exata do líquido transparente da maior ampola que estava na bandeja, depois injetei diretamente na mangueira do soro.
— Descanse um pouco, Dr. Walsh.
Se o sedativo não o tivesse deixado entorpecido quase instantaneamente e feito com que sua boca já não obedecesse mais os comendo de seu cérebro, o médico teria atacado-me com um dicionário de palavrões.
• • •
Na ronda da noite, decidi que era mais prudente tirar o quarto 510 da lista de visitas, o efeito da anestesia-geral do gastroenterologista já havia passado, e não me parecera conveniente ser xingado na presença dos meus residentes e internos.
Ao longe no corredor, avistei Smith e Sullivan, conversando despreocupadamente em meio ao vai-e-vem caótico que a enfermeira se encontrava. A neurocirurgiã não poupava sorrisos ao residente, mostrando estar gostando do que ele dizia, pelos menos até que uma residente júnior juntou-se a eles de repente, fazendo a expressão de Smith mudar drasticamente com a simples presença de Neville. Desconcertado com a situação, Sullivan interrompeu o que dizia, como se já tivesse mesmo terminado, aproximou-se de Smith e beijou ternamente a pele negra e delicada da bochecha dela, em despedida, depois tomou o corredor na minha direção, seguido por Neville, que sorrira soberbamente para a neurocirurgiã antes de começar a se afastar.
Pouco mais de um metro e meio à minha frente, os dois internos, que há cinco dias haviam sido designados para algumas semanas de observatório no departamento de neurologia, analisavam algo no iPod que um deles segurava. Harris, o narcisista da dupla, desviou o olhar para a loura que caminhava ao lado de Sullivan, rapidamente mordiscando o canto do lábio com certa volúpia. Chen, o interno taoista, também lançou seu olhar sobre Neville, por reflexo apenas, já que o residente sênior ao lado dela certamente tinha características que agradavam bem mais ao chinês. Como já o fraguei algumas vezes, falando de Sullivan de forma suspirosa em sua língua materna, provavelmente, pensando que a complexidade do mandarim guardaria seu segredo.
Meu relógio vibrou, era hora de começar a ronda. Instintivamente, desviei o olhar mais uma vez para ver ao longo no corredor, para o fim dele desta vez, além de onde Smith e Sullivan conversavam outrora, mais especificamente onde as portas metálicas do elevador se faziam cerradas e o marcador sobre ela trazia em vermelho o número 3, como eu jurava ter visto de relance quando cheguei àquele andar pela escadaria.
O primeiro paciente era um homem na casa dos trinta anos, uma internação recente, feita por Sullivan na minha breve ausência. Apresentei-me ao Sr. Cooper, depois olhei para o residente sobre o ombro e aconselhei:
— Comece com os resultados da anamnese que você fez.
Seus olhos correram rapidamente pelo questionário, depois veio a alusão de começar a lê-lo, mas algo o fizera olhar para trás, Neville e os internos fizeram o mesmo, enquanto eu continuei voltado na direção do paciente, pois minha precisa memória olfativa já havia associado o aroma de chocolate a uma pessoa, pessoa esta que estava seis minutos e vinte nove segundos atrasa para a primeira ronda.
— Problemas com o fuso horário, Thompson? — ironizei, embora tendo a impressão de que o tom da minha voz fora mais mordaz do que realmente pretendia fosse.
A observei de soslaio, esperando por uma resposta tão petulante quanto a que me dera mais cedo, mas ela pareceu estagnada, acuada.
Sullivan aproveitou a deixa e apresentou o caso aos colegas, lendo os dados da anamnese, depois perguntou a Neville sobre o possível diagnóstico, ela embromou um pouco, mas chegou a uma conclusão satisfatória, então o residente passou a palavra a Harris, que, para variar, não soube qual o tratamento adequado para hérnia de disco cervical. Chen mostrou discernimento no assunto e, além de responder no lugar do outro interno, começou a fornecer um prognóstico ótimo demais.
Os anos de experiência do residente sênior exprimiram-se num único olhar, olhar que fez Chen se calar. Em seguida, mesmo olhos fitaram a mim, porém agora o olhar era de interrogação. Arfei ao mesmo tempo que rolei os olhos, não havia nada que eu pudesse fazer, pelo menos não na frente do paciente, então fiz sinal com a mão para que ele continuasse, explicando sobre como seria a cirurgia.
Nem dei-me ao trabalho de entrar no sétimo quarto, o último da lista, visto que tinha uma cirurgia eletiva, ou seja, previamente programa, e ainda precisava vestir o uniforme antes que meu pager começasse a vibrar. Antes de partir, instruí o que cada um deveria fazer nas próximas horas, por fim corrigi Chen pela precipitação e as promessas feitas ao Sr. Cooper.
Levei quase a noite toda na dissecção de um astrocitoma, depois passei boa parte da madrugada em um Traumatismo Raquimedular (TRM) causado por tiro de arma de fogo, todo tempo era pouco, principalmente quando qualquer movimento errado poderia paralisar permanente minha paciente, uma policial militar de vinte e quatro anos.
Quando deixei a sala de operatório (SO) a penumbra lá fora já havia dado lugar ao rodado da aurora, o que tirou-me do estado de alerta, suspirei aliviado, a adrenalina diminuiria em seguida, livrando-me daquele incomodo frio na barriga.
— Parece que a neve vai dar uma trégua hoje — comentou Sullivan, após admirar o céu desanuviado pelas vidraças do corredor. — O frio bem que podia fazer o mesmo.
— Dificilmente isso acontecerá antes de março.
Sua face esboçou pesar ao fitar novamente o céu antes de entrar no elevador.
— Sabia que este mesmo elevador sofreu uma pane ontem e ficou um tempão parado, com pessoa dentro — informou despretensiosamente, ou tentando me convencer disto. — Que não aconteça conosco como aconteceu com a Mel, quero dizer, Dra. Thompson.
— Terceiro andar? — perguntei, lembrando-me do número três congelado no marcador. Ele assentiu.
Estava determinado a ignorar a estranha disposição matinal com que ele apresentara o hospital a ela, as risadas de ambos na galeria no meio da madrugada enquanto observavam meu procedimento, também, o sutil comentário que justificava o atraso da jovem na ronda, mas chamá-la pelo apelido, eu não tinha como ignorar.
— Conexão instantânea, ou já se conheciam de fora do hospital?
— Então... é até um pouco engraçado dizer isso, mas acho que o destino a colocou no meu caminho, literalmente bem no meio do caminho. — Ele sorriu, lembrando-se. — Meu pai salvou o pai dela, e eu quase a matei atropelada há dois dias...
— Em que circunstância exatamente seu pai fez isso? — questionei, interrompendo-o com uma incomum impulsividade da minha parte.
— Parece que foi em Baltimore há alguns anos, ele dissecou um tumor dado como inoperável no homem — explicou com irrelevância.
— Intrigante — conclui, aquilo realmente já me bastava, mas ele julgou necessário acrescentar:
— Bom, não foi com essas palavras, na verdade ela me confidenciou sem saber que sou filho de AJ Sullivan.
A conversa prendeu minha atenção, de tal modo, que foi necessário que a porta do elevador se abrisse diante de nós, para eu dar-me conta de que já havíamos chego ao segundo andar. Seguimos lado a lado até a cantina, desta vez ambos quietos. Sullivan preferiu sentir-se em uma das mesas para tomar seu café da manhã, enquanto eu optei por pedir tudo para a viagem e tomei novamente a direção do elevador, porém agora para ir até biblioteca no sexto andar, onde poderia comer enquanto estudava um novo caso.
Solicitei o elevador da direita, cujo marcado indicava estar subindo da emergência, levaria poucos segundos, então decidi antecipar um gole do meu chocolate quente. A porta se abriu, olhei mecanicamente sobre a borda do copo, atrás da fumaça, a residente era a única no interior do elevador.
Nossos olhares se cruzam por um breve instante, tão logo Thompson abaixou a cabeça, deu um passo para à direita, liberando a passagem para mim, como se antes o espaço não fosse o bastante para eu passar sem sequer tocá-la, logo ela com toda sua falta de porte.
Avancei, passando, propositalmente, mais perto dela do que precisava, depois recostei-me na parede gélida aos fundos do elevador, de onde tive uma boa visão da garota. Seus braços estavam cruzados e os dedos curtos batucando algo no cotovelo num ritmo e sequência específicos que ela parecia saber décor, pois era como se nem desse conta de que estava fazendo.
— E o Sr. Thompson como está? — perguntei, tão logo me arrependendo de ter feito, mas era tarde demais, pois seus dedos haviam parado e os olhos estavam fixos em mim, não diretamente, era o meu reflexo na parede espelhada que a moça estava encarando.
Sua boca se entreabriu, no entanto a resposta não saiu imediatamente, então deduzi que estivesse escolhendo as palavras primeiro, mas não desviei o olhar dela.
— Bem. — Simples e monossilábica, assim foi sua tão "bem" fórmula resposta.
Desviei rapidamente os olhos para o relógio no meu pulso, voltando a ela com a mesma rapidez.
— Como você...? seis anos... — Ela respirou fundo. — Me admira que não tenha esquecido.
— E admira a mim que alguém de vinte seis anos sofra de Alzheimer. — Os olhos da residente arregalaram-se. — O Dr. AJ Sullivan já havia se afastado do John Hopkins, quando o Cortez pediu um parecer descompromissado do neurocirurgião-pediátrico de plantão sobre o caso de Marcus Thompson...
O movimento sútil dos lábios dela capturou minha atenção, levando-me a parar bruscamente. Esperei que dissesse algo, mas ela não fez, sua intenção nunca foi de me interromper, então continuei:
— Você pode ter se esquecido quem operou seu pai, mas isso não muda o fato de que foi eu quem realmente fez isso.
A porta do elevador se abriu no sexto andar, esperei que ela saísse primeiro, mas não recebi nem uma alusão disso, a moça deu a entender que desistira de ficar no andar que ela mesma havia solicitado, então eu o fiz, sai antes que as duas metades da porta se fechassem novamente.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top