🟢Capítulo 2/2

     Duas e sete da tarde, era o que marcava o relógio do refeitório, mas sabia que ele estava um minuto e catorze segundos atrasado, não que este detalhe mudasse o fato de que era muito tarde para almoçar. Raramente, eu tinha a sorte de estar livre no horário em que eram servidas as refeições, então contentava-me apenas com sanduíches e sucos naturais, como era o caso.

     Depois de comer, entrelacei os dedos e levei até a base da minha cervical, deixei cair sobre as mãos todo o peso da cabeça e encarei o teto do refeitório, até suspirar entregue a exaustão e fechar os olhos. Tão logo, o toque sutil em meu braço obrigou-me abri-los novamente.

     — Te acordei? — indagou a chefe das enfermeiras já sentando-se. — Posso me sentar aqui do seu lado?

     "Não me deu tempo nem de dormir, como poderia ter me acordado?" pensei, limitando-me a apenas negar com a cabeça.

     — Normalmente as pessoas pedem antes de se sentarem e não quando já o fizeram. — Seu semblante entregou que a segunda parte não havia ficado só no meu pensamento.

     Caroline Singer era o efeito colateral de um dos plantões infernais que tive no início do mês passado. Não que as muitas horas de privação de sono e a perda de um paciente, justificasse o fato de eu ter retribuído um beijo roubado pela enfermeira, cuja a confusão resultante do álcool naquele noite era até compreensível, entretanto, dentro do hospital Singer não bebia nada e mesmo assim parecia continuar confusa com relação a mim.

      — A ordem dos fatos não altera o resultado, doutor — respondeu bem-humorada, levando meu comentário na esportiva. — Seu amigo disse que você entende de fermentados, então pensei que, de repente, a gente podia tomar algumas taças de vinho na minha casa.

     Isaac e sua incapacidade de ficar com a boca fechada.

     — De fato eu entendo um pouco, só não os bebo.

     Fitei os lábios miúdos da loura se entreabrirem na alusão de dizer algo, porém o pager vibrou no bolso junto ao meu peito, obrigando a pega-lo e olhar o chamado no visor, tirando a oportunidade da mulher de acrescentar qualquer coisa.

     Não era uma emergência, tampouco uma urgência, era um lembre de algo que deveria fazer antes de ir para casa, mas não poderia ter vindo em melhor hora. Era a desculpa perfeita para desvencilhar-me da conversa com a mulher.

• • •

      Quando as portas do elevador abriram-se no primeiro andar, o cheiro de carne carbonizada imediatamente tomou conta do meu olfato. Passeei brevemente com o olhar pela recepção do pronto socorro, deparando-me com caos e agonia, depois foquei no noticiário no televisor que estava suspensa no alto de um coluna de concreto próxima da recepção, onde lia-se em letras garrafais: incêndio em sala de cinema, mata quatro pessoas e deixa muitos feridos.

     Fechei os olhos e suspirei profundamente, pedindo à Deus força para continuar, o que significava ignora tudo aquilo, para ir até a baia três na área das cortinas, onde uma cefaleia esperava por uma avaliação de alguém da neurologia.

     As novas diretrizes do hospital, ou melhor, do diretor Marshall, era explícitas quanto ao fato de que, triagens e primeiros atendimentos na Emergência não eram tarefas para cirurgiões.

     Desliguei a tela do iPod após uma rápida comparação entre o resultado do hemograma mais recente de Erick Dylan, datado de quatro dias atrás quando deu entrada pela última vez, com os que solicitei pela manhã, depois levei a mão livre até um dos lados da cortina e a afastei para à esquerda, expondo o rapaz franzino de cabelos louros, que apesar de seus dezoito anos já era um velho conhecido de quase todos por aqui.

     O garoto ia e vinha com certa frequência nos últimos meses, sempre desacompanhado e queixando-se de fortes dores em diferentes partes do corpo. A dor nunca estava no mesmo lugar, ela mudava a cada nova internação. Os plantonistas sempre aplicavam-lhe um analgésico e o mandavam para casa, mas desta vez uma simples aspirina não funcionou e foi a mim quem chamaram, pois era a cabeça de Dylan que doía.

    Apresentei-me enquanto andava até ele e cumprimentei-o formalmente com um aperto de mão. Dylan tentou sentar-se na maca, mas minha mão junto ao seu tórax o impediu, então ele apenas sorriu fraco enquanto acomodava-se novamente sob os lençóis.

    — Há quando tempo os olhos dele então assim? — indaguei à interna, que checava a etiqueta na bolsa de soro pendurada no suporte metálico. — Este é o tipo de detalhe que deveria ter sido informado.

    — Castanhos? — questionou ela. — Desculpa, eu não sabia que era importante informar a cor dos olhos do paciente — retrucou a morena com deboche.

     Busquei no bolso de cima do meu jaleco pela lanterna de exames, direcionei a luz contra um dos olhos do rapaz, que esquivou-se rapidamente.

     — Os olhos dele são azuis! Isso que está vendo são suas pupilas extremamente dilatadas.

     A moça encarou-me como se eu estivesse fazendo algum tipo de brincadeira. Permaneci impassível, então ela olhou para Dylan, tão logo seu sorriso se apagou e os olhos arregalaram-se.

     — Isso é muito ruim, doutor? — questionou o garoto.

     Comecei pedindo a ele que não se precipitasse, depois expliquei como funcionaria sua transferência para o quinto andar e que alguém da minha equipe o examinaria mais detalhadamente e o submeteríamos a alguns exames, por fim, garanti que o veria pessoalmente assim que os resultados chegassem as minhas mãos. Quando terminei ele perguntou-me se eu tinha alguma suspeita, eu tinha, mas neguei com a cabeça, não queria assusta-lo, pelo menos não sem ter certeza.

     O meu caso corriqueiro de cefaléia acabara de se tornar algo bem mais complexo.

     Deixei a sala, tomando o mesmo corredor que me levaria á área de trauma, onde antes eu poderia ser útil até minha próxima cirurgia, mas limitei-me a entrar novamente naquele elevador.

     No vestiário do quinto andar, substitui rapidamente o conjunto padrão na cor bordô por um outro conjunto, agora social e grafite, que casou perfeitamente com a única camisa limpa dentro do meu armário, uma branca. Peguei o elevador e desci até o estacionamento no subsolo já praguejando por ter estacionado tão longe. Aquela parte do estacionamento era dominada pelas enormes SUVs, exceto pelo conversível alaranjado de Isaac e minha BMW branca.

    O trajeto que eu comumente levava catorze minutos para fazer, hoje, com o mal tempo, acabou ganhando outros nove estressantes minutos.

     No meu prédio, atravessei o saguão limitando minha atenção apenas ao e-mail no visor do celular, mas antes de adentrar o elevador de serviço desviei brevemente o olhar para o posto do porteiro, e não surpreendi-me por Charles não estar lá, pois ele raramente estava. O rapaz passava mais tempo supervisionando o treino das mulheres na academia do condomínio do que regulando as entradas no prédio, talvez por confiar cegamente no avançado sistema de segurança do prédio — um emaranhado de equipamentos tecnológicos conectados a um software de ponta que nos custou uma fortuna.

    Diferente do elevador panorâmico, o de serviço não tinha paredes de vidro com visão privilegiada de cidade de Goldenriver vista do décimo oitava andar, nem era preciso atravessar metade do apartamento para deixar dois jalecos sujos, que trouxera pendurados no antebraço, na máquina de lavar.
    
      Passei pela sala de jantar, deixando sobre a mesa de madeira maciça minha bolsa, regulei o termostato na parede na entrada para o corredor, antes de finalmente entrar na segunda porta do lado direito. A suíte estava como da última vez que fora usada na semana passada, perfeitamente arrumada, como em um catálogo de enxovais.

    O banho quente e demorado relaxou meus músculos rígidos, não o bastante para diminuir minha dor, mas o suficiente para me ajudar a pegar no sono, já que as duas xícaras de chá de camomila fizeram a maior parte do trabalho. Meu cérebro precisava de trégua, mesmo que tenha durado tão pouco tempo, já que o pager vibrou sob o travesseiro exatamente duas hora e quarenta e sete minutos depois. Era uma urgência, o que me dava tempo de trocar o moletom por algo mais formal e comer alguma coisa antes de retornar ao hospital.

    Atravessei os cômodos distraído e de cabeça baixa enquanto abotoava o colete, então quando ergui os olhos fui pego de surpresa pela figura esguia e de postura ereta sentada junta à mesa, fazendo-me parar bruscamente na entrada da cozinha.

    — Vizinho — articulou a morena —, você deixou a porta aberta de novo.

     — Vai chegar um dia em que meu coração não vai aguentar mais isto, Lis — adverti.

     Respirei fundo enquanto avançava na direção de Elisabeth, depois inclinei-me para baixo e beijei-lhe rapidamente do lado direito rosto.

     — É uma raridade você dormir, então achei que seria cruel te acordar. — Apertei de leve seu nariz, ela fez uma careta engraçada antes de sorrir e empurrar minha mão para longe, dizendo: — Lá vem você com essa mão de cadáver.

     Semicerrei os olhos em censura.

     — Já alimentei sua gata hoje de manhã — informou ela de repente, fazendo-me esquecer de tudo e percorrer o olhar ligeiramente pelo lugar, procurando pela bola de pelos negro, tão logo avistei a pontinha de um rabo volumoso serpenteando sobre uma das cadeiras. — Essa coisa ficou meio agitada, acho que sentiu sua falta.

     — Não chame ela assim — pedi enquanto desembrulhava o prato de lasanha congelada para ir ao micro-ondas. — Você sentiu minha falta também, ou só se deu ao trabalho de atravessar o corredor para assaltar minha geladeira? — Fitei a louça suja na pia, o molho em um dos pratos parecia fresco.

     — Vim pela comida, mas se você me der uma carona até o hospital vai ser prefeito.

     Ela estendeu os dedos esqueléticos diante do rosto e analisou as unhas cor-de-rosa, fazendo pouco caso do que disse.

      — Chama um táxi de aplicativo — retruquei secamente.

    Seus olhos castanhos se estreitaram.

     — Nossa, eu só estava brincando — defendeu-se.

     Elisabeth levantou-se e andou despretensiosa até mim e abraçou-me sem um aviso prévio.

      — É claro que senti falta do meu vizinho predileto — disse ela, sorrindo e me apertando com mais força.

     — Acredito que não há muita concorrência por aqui, já que somos os únicos neste andar, Lis. — Tirei sutilmente seus braços que estavam ao redor da minha cintura.

     — Eu sempre vou escolher você, sem me importar com quais são as opções. — A mulher fez uma pausa enquanto analisava o próprio reflexo no espelho da cristaleira, por algum motivo decidiu que o coque francês não estava bom, então puxou o clipe metálico no topo da cabeça, libertando seus longos fios castanhos, que rapidamente cobriram suas costas estreitas até a terceira vértebra da lombar. Depois avisou, virando-se novamente para mim: — O micro-ondas já desligou faz tempo.

      Era difícil comer tranquilamente com ela por perto, mas esforcei-me ao máximo para reprimir a vontade de enxota-la para fora do meu apartamento. No geral, eu não conseguia mesmo acompanhar metade do que ela dizia, mas esforçava-me o quanto podia para não ser grosseiro e ignorá-la de vez.

      No carro ela continuou falando, sozinha a maior parte do tempo, porém a mulher sempre encontrava uma forma de me fazer prestar atenção nela, mesmo que isto significasse tirar meus olhos da direção. Desta vez ela tocou gentilmente meu braço quando parai no semáforo, eu a fitei impaciente.

     — Quanto tempo você acha que vai levar para se livras daquela esquila?

     A pergunta fora abrupta, o termo pejorativo referia a nova residente do meu departamento, que segundo uma explicação anterior de Elisabeth, a moça era pequena na estatura, porém seu quadril era demasiadamente saliente com relação ao restante do corpo, como um esquilo.

     — Não posso me livrar da Thompson.

     — Por que o Marshall a escolheu? — questionou ela.

      — Não, ele só admitiu, porque teoricamente foi eu quem a escolheu.

  Para spoilers e muito mais

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