🟢 Capítulo 16/2

     ❄️


   As nuvens envolveram a lua, fazendo da noite pura escuridão. A densa penumbra que consumia o quarto só seria explicada se eu tivesse dormido por mais de nove horas seguidas, opção cuja probabilidade beirava a três porcento.

A taquicardia no meu tórax disparou o sensor no relógio preso ao pulso, ele vibrou próximo a mão que estava trêmula demais para tatear a cama a procura do celular, ou buscar pela interruptor do abajur.

A pressão contra meu peito impedia-me de hiperventilar, já que era difícil até expandir lentamente.

— Fica calmo —  pediu a moça depois de acender a lanterna do próprio celular.
— Você não está sozinho.

Thompson estava debruçada em cima de mim, a cabeça repousando sobre meu esterno, os braços ao redor das costelas. Senti os batimentos normalizarem sob o rosto dela e respirei sem dificuldade pela primeira vez desde que acordei, mesmo com ela estando sobre meu tórax.

— Nove horas e doze minutos de sono interrupto? — indaguei depois de trazer o relógio à altura dos olhos. — É o recorde de uma vida toda.

— Acho que sou a cura para sua insônia — Thompson sentou-se na cama, com um sorriso perspicaz nos lábios. — Mereço um prêmio.

— Te dou até nove.

— Um por cada hora dormida, acho justo. — Inclinada na direção da mesinha de cabeceira, ela acendeu o abajur e desligou a lanterna. —  É muito bom negociar com você.

Ela conseguia ser linda até à meia luz, o dourado sutil envolvia seu rosto, enaltecendo a perfeição de seus traços, ao mesmo tempo que delineava os miúdos e rijos mamilos marrom-claros, a área totalmente depilada abaixo do umbigo.

Coloquei-me sentado na cama, puxei o edredom para cobrir minha nudez e continuei admirando-a, agora de uma distância menor. O fio metálico que lhe envolvia os dentes brilhou quando sorriu, encarando o pequeno monitor cardíaco do meu relógio.

— Seu coração confia em mim — afirmou, tocando o lado direito meu tórax. — Ele deve saber que sou a melhor da cárdio.

Meu corpo desacatava os comandos do cérebro quando ela estava por perto, ele vinha nutrindo uma obediência cega por Melanie Thompson, que fugia ao meu controle.

— E a mais modesta também.

Sua resposta ao meu sarcasmo veio em forma de um empurrão, que me jogou contra o travesseiro. Deixei que um gemido abafado escapasse quando minhas costas tocaram a cama, uma resposta automática à uma dor que não veio.

Um sorriso quando minha mente retrocedeu ao instante que ela apoiou a mão no meu peito para me atirar contra a parede de azulejos, usando o próprio corpo para manter-me preso enquanto me beijava.   

— Como aconteceu? — indagou ela, trazendo minha atenção para o presente. — Nas suas costas.

— Uma colisão de frente com um caminhão de refrigerante. As habilidades manuais do meu irmão caçula se reduzem ao gatilho. — Seu cenho foi franzido em visível confusão. — Coisa de fuzileiro.

— Pelas datas das radiografias, sua fratura foi há pouco mais de dois anos...

— Você estudou bem aqueles exames, não foi?

—  Por curiosidade científica. — Seu sorriso foi malicioso. — Você veio para cá depois que a Amber...

Ela parecia não ter coragem de exteriorizar os eufemismos formulados minuciosamente, então fiz minhas próprias deduções e respondi:

— Sim, na mesma semana.
— O que significa que o acidente foi aqui — concluiu sem encarar-me. — Você perdoou ele?

— O Gage é só um cavalo no tabuleiro de bizarrice que é minha família.

Levei a mão até a cervical e apertei um dos pontos de tensão quando visualizei as outras peças do xadrez metafórico, então ponderei se algum dia teria coragem de contar para ela sobre algumas jogadas.

O semblante dela mudou abruptamente, seu olhar havia seguido meu movimento, tão logo esbarrou com o modesto fio de prata que circundava meu pescoço e desceu até o pingente de cruz no centro dele.

— Você perdeu — afirmou referindo-se a aliança que deveria estar ali também.

— Na verdade, eu mesmo a tirei. — Esforcei-me para usar um tom mais zombeteiro ao emendar: — E já faz um certo tempo, o que torna bem assustador o fato de você não notado antes. Para onde ficou olhando todas as vez que tirei a...

— Quanto tempo exatamente? Müller, você é a pessoa mais irritantemente específica que conheço, então não ouse mudar agora.

— Irritantemente? — Semicerrei os olhos, fazendo-a pôr língua numa expressão atrevida e provocativa. Discretamente, pressionei os dentes na parte interna do lábio inferior quando recordei de como a mesma língua escorregava junto à minha sobre a água do chuveiro. — Desde o lago congelado, a autora boreal e  o que aconteceu em frente a lareira.

Melanie selou minha boca da forma mais singela possível, um gesto que se demorou até ela afastar-se subitamente rápido, como se tivesse cometido um erro.

— Se você gostar de camarão e nem for alérgica, tem uma receita da minha mãe que é rápida e deliciosa.
Minha proposta pareceu dissipar o clima desconcertante entre nós.

— Eu morava à beira-mar, até a brisa teria me feito ter um choque anafilático. — Divertiu-se com o próprio comentário.

— Não tenho rum, mas a adega de vinho inexplorada está a sua disposição.

— Você vai se arrepender de ter dito isso.

A moça envolve-se em um das toalhas que havia pego no criado mudo e desapareceu ao cruzar a porta do quarto. Deduzindo que havia ido até a lavanderia buscar sua roupas na secadora, então escorreguei da cama e andei até o closet.

De um dos compartimentos tirei um moletom negro e virei-me para pega outra camiseta idêntica e, da terceira gaveta, tirei uma cueca boxer. Minha tentativa de deixar o cubículo foi frustrada pelo corpo de baixa estatura, que não foi de encontro ao chão pela rapidez instintiva que o segurei pela cintura.

— Santo Deus, Mel —  exclamei diante do susto. — É a primeira vez que não sinto você chegar.

— Está dizendo que são meus passos que me entregam?

— Também, mas não só eles.

Seus lábios fizeram alusão de responder, mas os olhos encontraram algo no mesmo cabide de um camisa de botões, algo que eu tinha nutrido certo apreso.

Ela passou por mim, liberando a passagem, mas ao invés de avançar me virei para observá-la.

— Acho que isso me pertence — garantiu, rodando no indicador a lingerie de renda pelo laço de latim que formava as laterais. — A menos que você queira usá-la. Se bem que nem em estado de repou...

O rubor na minha face ficou mais intenso quando a mulher mapeou meu corpo de cima a baixo.

— Hilário, Thompson.
O tom irônico que minha voz devia ter se assumido, juntamente com o rosto inexpressivo foi o motivo de sua gargalhada.

— Sua timidez anda bem seletiva.

Ela certamente estava referindo-se ao que fizemos no bar do Ian, na estufa da varanda, porém com certa ênfase na forma como inverti nossa posição quando ela jogou-me na parede mais cedo, como a possuí, profunda e vigorosamente, fazendo-a deslizar contra o azulejo; em como continuei mesmo depois dela chegar ao clímax; também quando a peguei no colo novamente para levá-la até a cama quando suas pernas falharam.

* * *

O

perfume dos camarões na manteiga preencheu o ambiente, misturando-se ao sútil frescor dos temperos e ervas picados do outro lado da ilha.

Um esboço de sorriso perpassou meus lábios ligeiramente, a vibração sobre meus pés descalços não me deixava duvida de que uma móvel leve havia sido movido de lugar, uma banqueta deduzi considerando a última informação de Melanie antes de sair do meu campo de visão. Thompson ainda se encontrava suspensa no estreito móvel, quando me virei na direção da adega.

— Não sei porque ainda perco meu tempo me questionando o porquê das coisas mais inusitadas acontecerem na sua presença.

— Está dizendo que provoco o caos?

Dei de ombros antes de apoiar o quadril na bancada da ilha.

— Não, mas você procura. Parece não ter medo algum dele.

— Monotonia não é a minha praia. — Inclinada para frente e com uma mão apoiada em uma das divisórias de madeira, tirou uma garrafa e analisou o rótulo, devolveu a sua repartição e fez o mesmo com as três seguintes. — Para quem nunca havia bebido até algumas semanas atrás, você tem muito álcool em casa.

— Esporadicamente, tenho companhias que apreciam os fermentados. — Uma parte de mim, que se importava com o que ela pensaria, achou necessário emendar: — Avó, tio, irmã, Isaac... As duas últimas não tão esporádica quanto eu gostaria.

Recordei dos quatro dias consecutivos em que meu amigo partira consideravelmente mais frustrado do que chegara, que gastara seus discursos motivacionais em vão. Apesar de que se tratando de Louis, certamente preferia uma cerveja. 

— E qual é a dessas garrafas com etiquetas nomeadas e datadas?

Hesitei pelo tempo que o nó na minha garganta levou para de desfazer, cinco vezes mais lenta que a forma instantânea com que se formou.

— São os pacientes que perdi na mesa de cirurgia durante a residência.

— Merda, por que eu tinha que abrir minha boca? — Após se auto repreender pelo palavrão, ela  devolveu a garrafa para o nicho vazio.

— Minha mentora adorava beber, e sempre usava o sucesso das cirurgias para apreciar uma generosa taça de vinho com a equipe. — Expliquei calmamente. — Essas foram as vezes que não tivemos motivos para comemorar.

— Estava mesmo cogitando tomar suco natural. É de laranja aquele, né? — Referiu-se ao que viu dentro da geladeira. — Adoro coisas cítricas.

Aproximei-me da parte da cozinha em que o armário não era cinza ou preto como os mármores, a adega de cedro se apresentava na sua forma mais natural, e tirei a quinta garrafa de uma prateleira que ficava à altura do ombro da moça se a mesma tivesse no chão.

— Joel sempre disse que essa foi uma boa safra.

— Vamos ter que decidir pelo sabor, o Cortez nem sempre acerta nas escolhas.

Um misto de incômodo e culpa se abateu sobre mim, optei pelo silêncio e virei-me para pegar o saca-rolha na gaveta. Servi duas taças, mesmo que antes de abri o vinho já tivesse mudado de opinião a respeito de beber.

Melanie estava sentada na banqueta quando voltei-me novamente para ela. Encontrava-me tão perto quando escolhi a bebida, contudo, a moça havia escorregado do acento para pôr-se de pé, seus pés pousaram sobre os meus.

— Pelo menos seus pés não são gelados. — Tirou um gole da taça e criticou com maior expressão de deboche: — Mesmo que ainda grandes e delicados.

— Talvez os seus que sejam pequenos demais para tamanha indelicadeza.

— Ainda estamos falando de pés?

Respondi com um meio sorriso. Beberiquei o líquido marsala, já Melanie levou três-quarto da bebida em um único gole, desvencilhou-se de mim, pegou a garrafa e foi em direção da mesa de oito lugares, cuja última refeição que fora servida sobre ela eu era incapaz de lembrar.

— Pode deixar aquilo comigo — anunciou virando a cabeça para me olhar sobre os ombros. Suas mãos começaram a fechar e empilhar as pastas estrategicamente abertas na mesma página há oito dias. — Um caso confidencial?

Era notório que minha incapacidade de mentir, tinha algo na minha voz que me entregava, e a surdez não me permitia corrigir, porém dizer a verdade não era uma opção, um juramento de confidencialidade também impedia-me de falar que o pai dela tinha um novo tumor, mas desta vez eu não fazia a menor ideia de como proceder.

Thompson não havia fechado a pasta rápido o bastante, claro que não teria perpassado tão  ligeiramente aquela imagem convidativa, se tivesse ciência da grande marca de carimbo vermelho,  que a impediria de abrir novamente para analisar melhor.

— Não há nada que se possa fazer nesse caso, mesmo sendo você por trás da lupa — comentou, cobrindo aquela pasta com outras duas. — Morte é o resultado de qualquer equação envolvendo esse glioma, e você sabe disso Dr. Matemática.


*Olá, amadinhas(o), espero que todes estejam bem. Estou de férias a certo tempo já, queria muito ter já postado uns 6 capítulos completos, mas como alguns aqui sabem, meu esposo sofreu um acidente de trabalho e a vida imitou a arte da forma mais negativa possível, ele teve um TCE e está com algumas sequelas, então meu tempo de revisar e juntar os rascunhos está limitado. Porém, ainda hoje ou amanhã trarei mais uma parte do capítulo, e ainda essa semana a continuação dele, encerrando a sequência de narrações do Müller. Agradeço a paciente e a perseverança de todes*

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