🟢Capitulo 13/1 - Müller

 

❄️

      Um ruído ensurdecedor obrigou-me a despertar dezesseis minutos antes, ofegante e com os batimentos descompassados. “Ensurdecedor” era um termo um tanto equivocado para se usar quando já se é surdo. Era óbvio que não passara de um sonho, um daqueles que se assemelham a realidade, que por alguns milésimos de segundos te fazem acreditar que é real, não apenas uma obra do seu subconsciente problemático.

      A sensação daquele som perfurante adentrando os meus tímpanos, com toda certeza, fora psicológico, mesmo que tenha parecido tão real. Todavia, também pudesse ser uma lembrança, entretanto, o tempo já não me permitia recordar com tanta clareza da primeira década da minha existência. Além do mais, não dava para esquecer que havia uma linha tênue entre o que realmente aconteceu na minha infância e o que meu subconsciente escolhera se lembrar dela.

     A vibração parecia fisicamente real, mas uma resposta sonora era fisiologicamente impossível para mim. Se a audição dependesse única e exclusivamente dos ouvidos, como a maioria acredita, eu conseguiria ouvir, no entanto, parecia ser uma ironia que quem realmente converte as vibrações em som é o cérebro.  Era um pouco irônico que eu fosse surdo por conta de um comprometimento neurológico que nem o melhor dos neurocirurgião poderia corrigir.

     Como cirurgião, eu  era um homem da fisiologia, que tratava a parte do corpo, o físico, aquilo que se podia tocar. Porém, nunca fui hipócrita a ponto de sequer cogitar que a psicologia ou a psiquiatria fossem antagonistas da minha especialidade, por tratarem a mente. Não posso negar que nunca tenha havido conflitos por dominância entre as áreas em uma ou outra esporádica situação, mas todavia sempre fui do pensamento de que as duas quase sempre são uma. Muitas vezes, um fator psicológico desencadeia um fisiológico e vice-versa. E também há aquelas ocasiões em que tratando apenas um destes fatores se alcança à homeostase do outro, ou seja, um equilíbrio, ou até a cura total.

     Contudo, no caso do meu sonho, sem soma de dúvida, podia garantir que a fisiologia não explicaria o que aconteceu, logo ficando a cargo do psicológico, e este que  não conseguiria explicar porque acordei com uma real e insuportável cefaleia. E esta era uma resposta física, como se minha cabeça estivesse doendo por ter sido realmente exposta a um som de alta frequência, estridente e irritantemente agudo.
Desistindo de uma explicação lógica para o que aconteceu, deixei a parte de baixo da beliche, vestindo a camiseta e caminhei até o banheiro.

      Ao sair do quarto dos plantonistas, quase tive as retinas carbonizadas pela claridade do sol que ultrapassava as vidraças do corredor de acesso à enfermaria. Mas não praguejei por isso, pois era bom finalmente retornar a um estado cujo clima acompanhava a estação. Diferente do Alasca, na Virgínia não tinha neve em plena primavera. É claro que também não era exatamente a estação das cores como em boa parte dos Estados Unidos, porém seria questão de tempo até as flores tingirem toda a cidade.

       Massageei os olhos turvos, limpando-os a tempo de flagrar um rápido olhar de soslaio, que tão logo desapareceu ao fechar das portas duplas do centro cirúrgico. Provavelmente a residente tinha adentrado a sala dois, da cardiologia, a qual havia se habituado na minha ausência.

* * *

     Dezesseis braçadas foi o que precisei para cruzar a piscina de quinze metros. Ofegante, debrucei na borda gélida para ganhar fôlego antes de refazer o exercício.

      Estava sozinho na sala de hidroterapia e imóvel há tempo suficiente para que a agitação na água diminuísse, logo quando uma pequena onda vinda da direita passou pelo meu corpo, virei-me na direção da qual ela se originou.

      — Seu tempo já foi melhor — garantiu aquele par de lábios fartos.

      — Fico feliz que usou o relógio para algo.

Semicerrou os olhos coloridos pouco antes de seus pés jogarem propositalmente água em mim. Afastei para o lado o cabelo que caiu na testa e deslizei a mão pelo rosto, na tentativa falha de secá-lo.
Desisti da natação e também sentei na borda da piscina, como a residente. Sacudi a cabeça de modo exagerado, arremessando alguns respingos na moça, que rapidamente protegeu o rosto.

      — Meu uniforme azul não — lamentou sorridente, depois de analisar a roupa com alguns pontos molhados. — Ele fica tão bem em mim.

      — Eu gostava do vermelho. — Thompson desfez o sorriso diante da minha afirmação. — Cores quentes realçam os olhos e destacam sua pele.

        Suas bochechas ganharam um tom rubro, os lábios foram apertados um contra o outro, e o olhar fugiu do meu.

      — O Cortez quer discutir o caso do Erick na biblioteca, em uns minutos.

     Antes que tivesse tempo de agradecer o aviso, ela levantou-se do chão, pegou os tênis e saiu descalça e com as barras da calça ainda hasteadas.

      Substitui rapidamente a bermuda e roupa íntima por peças secas e menos expositivas, depois caminhei o mais rápido que pude até o elevador.

      Não sei se propositalmente ou não, os departamentos estavam separados na biblioteca. Na mesa mais próxima da janela estavam os integrantes da reunião trajados de vermelho, enquanto que os representantes de azul encontravam-se no centro da sala, e Cortez quando chegasse, com seu imponente uniforme cirúrgico negro, ficaria andando de um lado para o outro, se apoiando ora em uma mesa, ora noutra.

      A pauta da breve reunião fora uma surpresa para mim, pois implicava em uma forma de diagnóstico arriscada e incerta, que se não matasse o paciente durante o exame, levaria a uma cirurgia complexa na qual ele também correria o risco de não sobreviver. E mais importante, se tratava de uma teoria que além de mim, apenas uma pessoa tinha conhecimento.

     Meus olhos acompanharam toda a discussão, mas minha boca não ousou expressar nada. Como não conseguiram chegar a um consenso sobre os pós e contras do procedimento, Cortez decidiu deixar a decisão para os pais do paciente.
Meia hora mais tarde, a atualização automática da minha agenda mostrou qual havia sido a resposta dos pais do jovem paciente. Deixei escapar uma longa baforada de frustração, então dirigi-me para a sala de procedimento escolhida para o exame.

      O paciente já estava sobre a mesa de cirurgia quanto cruzei a porta do lavatório, desacordado e sendo monitorado por uma série de equipamentos. Minha entrada servira de largada para que se iniciasse o procedimento. A divisão entre os departamentos parecia ter ganhado um ar menos amistoso, passara de uma casualidade direto para a mais extrema rivalidade. As posturas e olhares indicavam que se o paciente não tivesse entre eles, já teriam partido para um combate físico entre azuis e vermelhos. Alheio a eles, posiciono-me entre Sullivan e Smith, ganhando imediatamente suas atenções.

      Thompson era a única entre o time azul que usava uma máscara de plástico, rígida e transparente, o que indicava que estava aberta a comunicação comigo.

      A cardiologia dominava o espetáculo, começaram resfriando o sangue até que o coração do Dylan parasse, em seguida começaram a drenar todo o fluído. Então o sinal foi dado, teoricamente era vez de contribuir para o ridículo espetáculo que haviam transformado aquilo. Nossos olhos estavam grudados nos monitores quando o sangue aquecido por máquinas fez o coração voltar ao funcionamento, assim, devolvendo o fluído viscoso para cada parte do corpo, sobre tudo para o cérebro.

      Suspirei com pesar, ao mesmo tempo que minhas pálpebras se fecharam por um maior tempo, quando a máquina não mostrou nenhuma anomalia na microrregião que poderia explicar tudo, e finalmente fechar o diagnóstico. Abri os olhos crente de que encontraria olhares tão decepcionados quanto os meus, mas para minha surpresa Smith encarava-me com um misto de entusiasmo e curiosidade. Percebendo a minha confusão, Sullivan interviu:

      — Você viu a mesma coisa que a Mel?

     Voltei um olhar interrogativo para a residente do outro lado da mesa, que, em meio aos olhares de descrédito, repetiu o que eu perdi com meu momento de lamento:

     — Eu vi alguma coisa ali.

      — Ajudaria se você fosse um pouquinho mais específica. — Ela deu a volta, mudando de lado e se aproximou de um dos monitores, onde apontou com o dedo para uma área, que se fosse verdade, não solucionaria totalmente o caso, porém explicava noventa e dois vírgula sete porcento dele. — Você tem certeza, Thompson? Pois você está numa posição decisiva agora. Se você realmente viu algo, saberíamos onde está o problema que precisa ser resolvido, mas se você se enganou, eu vou abrir desnecessariamente a cabeça de uma pessoa que já está muito debilitada devido ao método diagnóstico. Ou seja, vai levar certo tempo para ele se recuperar, para que possamos repetir tudo novamente, um tempo que nós sabemos que ele não tem.

      — Eu tenho certeza do que vi — retrucou convicta.

      As máscaras de tecido do outro departamento me impediam de saber se dissessem algo, porém, naquele momento enfatizaram seus olhares, e estes diziam muito mais que suas bocas. Ninguém acreditava nela.

      — Reserve a cirurgia para o primeiro horário de amanhã. — Minha resposta finalmente trouxera união entre os departamentos, era unânime o choque. — Com Neville como minha primeira auxiliar.

      Tendo como última visão da sala, a linha reta que os lábios da Thompson se tornou, saí para que os demais pudessem exteriorizar o que certamente estava consumindo suas mentes, e eram barrados pela minha intimidadora presença.

      Deixei brevemente o centro cirúrgico para pegar combustível açucarado em uma das máquinas de comida do corredor. A barra de chocolate já passava da metade quando cheguei à vazia sala seis. Acendi a luz e fui em direção ao equipamento de cirurgia robótica esquecido em um canto. Meu celular vibrou no bolso do jaleco antes que tivesse tempo de me sentar para ligar o computador. O motivo fora uma mensagem de texto, de uma destinatária que fizera questão de enfatizar seu sentimento e urgência ao deixar a frase em caixa alta.

    "ONDE VOCÊ TÁ?"

     Pela demora, a residente deveria ter mudado de ideia sobre me perturbar aquela noite. E foi na solidão da sala de operatório, que pela primeira vez em dias, peguei-me recordando com sobras de detalhes algo que nunca deveria ter acontecido. Tentei permanecer com o cérebro apenas nas configurações que a máquina diante de mim precisava, todavia era impossível não divagar para tão longe, e pior, para variadas possibilidades diferentes que aquele beijo poderia ter levado.

     De soslaio, observei a figura curvilínea que perturbava minha mente passar pela porta. Um pensamento sórdido e deveras pecaminoso percorreu minha mente, então admirar o formato arredondado na parte traseira de seu uniforme foi igualmente errado, porém incontrolável. Contudo, antes que ela pudesse se virar e começar andar até a cadeira diante de mim, voltei minha atenção para as mórbidas e retas partes do robô.

    Mesmo com o semblante de inquietude, ela optou pelo silêncio, até que aquela troca de olhares se tornou incomoda demais:

      — Se queria só ficar me olhando, podia ter pedido para te enviar uma foto.

    Me tom levemente ácido e provocativo desencadeou uma resposta corrosivamente agressiva:

      — Não acredito que me deixou fora da cirurgia por causa de um simples beijinho.

      — Não está fora da cirurgia, apenas não vai ser minha auxiliar, já não está mais na neurocirurgia — devolvi calmamente. — Se você tivesse olhado a atualização do seu cronograma, teria visto que é a representa da cirurgiã-cardiotorácica que solicitei.  Uma posição mais importante do que aquela pelo qual veio brigar.

     — Me deu um cargo mais importante do que mereço, por que tivemos uns minutos de intimidade?

     — A cirurgia é sua porque ela só vai acontecer por sua causa — perdi o controle da minha mansidão. — Pelo visto eu estava enganado sobre sua evolução. Você não passa de uma garotinha mimada e imatura, que grita e faz cara feia para que os outros não vejam o quão insegura é. — Levantei-me de súbito, enfatizando nossa diferença de altura, o que a fez elevar o queixo para continuar me encarando. — Você é mais preparada do que qualquer um daquele departamento de egocêntricos, mas se quer continuar escondendo seu potencial na cardio por qualquer que seja o motivo, só para de fazer com que a culpa pareça ser minha. — Avancei a passos lentos enquanto falava, levando-a a recuar até se ver encurralada entre meu corpo e a superfície gélida da mesa de operatório no centro da sala. — Não tem nenhum conflito de interesse na minha decisão, para mim aquilo significou tanto quanto para você, nada, pelo que você deixou bem claro.

     Sua respiração tocou minha face, quente e descontrolada, por alguns segundos não consegui ler sua expressão e acabei baixando a guarda, então lhe dei as costas, antes que meus braços circundassem seu corpo e a colocasse sentada sobre a plataforma metálica, deixando sua boca na altura da minha, assim como suas coxas com uma abertura perfeita para receber meu corpo entre ela.

     “Não perca o controle”, recitei mentalmente repetidas vezes, enquanto sentia o resultado daquele pensamento aquecer-me de dentro para fora. Com dificuldade, pedi para ficar sozinho, Thompson hesitou por um instante, mas depois saiu pisando duramente.

"Olá, amadinhas(os), como estão? Espero que bem, para podermos acompanhar juntos a maratona com 3 capítulos seguidos que preparei como encarecido pedido de desculpas. Sim, terá mais um ainda hoje, e o terceiro amanhã.
Sei que sumi a tempo o suficiente para desistirem de mim, mas agradeço profundamente a quem permaneceu com nosso casal nas bibliotecas. A maternidade combinada aos últimos semestres da faculdade andam consumindo muito do meu tempo. Mas vou tentar aparecer com mais frequência, até porque está história vai começar a ficar quente demais para guardar só pra mim.

Um mega abraço da Tata d vocês 🤗"

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