🔴Capítulo 11/1 - Thompson

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      A osteotomia da escápula que havíamos dado início depois do almoço estava transcorrendo como previsto, e teria me somado alguns pontos se não fosse um procedimento ortopédico.

    — Já pensou que a melhor forma de conseguir uma neurocirurgia relevante, é pedir para o neurocirurgião-chefe? — sugeriu Lisa, dando a volta na mesa para analisar de um ângulo melhor a excisão óssea, que me pediu para fazer. — Se ele pudesse te ver agora, cerrando uma escápula nem hesitaria.

   — Quem você acha que me oferece para a ortopedia e cardiotorácica a qual oportunidade?

   — Mostre para ele o que não está no seu currículo.

    — Não sou tão segura na neurocirurgia quanto nas outras áreas. — Descartei o fragmento de osso no recipiente metálico. — Talvez tenha sido mesmo idiotice me aventurar justo na especialidade que tenho menor experiência.

     — Corações e cérebros estão no mesmo patamar, então se você conseguia lidar com um, o outro não deve ser tão difícil. — A atenção da residente agora estava na prótese em sua mão. — Você está no final do terceiro ano e, apesar de ter solicitado o foco em neuro, não está presa a ela ainda. Poderia mudar até se estivesse no quinto ano.

    — Você é um anjo, Lisa — falei  sincera.

   — E quanto aos pontos para a competição: use a boca como sua rival. — Aspirei o sangue, para a Lisa ver com mais clareza onde instalar o protético. — Você só tem três dias para ganhar dela.

     — Acontece que eu não vou fazer sexo oral em nenhum cirurgião para conseguir procedimento, principalmente no seu irmão, que é casado.

    A médica gargalhou diante da minha indignada afirmação, assim como sua instrumentadora e os outros enfermeiros na sala.

    — Boba, ele é viúvo, se esse for o único empecilho. Brincadeiras a parte, estava me referindo as palavras, você é muito persuasiva, então convença meu irmão que você é capaz. Porque, diferente do Enzo, o Nathan não é do tipo que considera empatia ou aceita algo em troca. — Lisa apontou para um dos pinos de titânio exposto em uma bandeja próxima a mim. — Acha que ele pegou leve comigo quando eu passei pela neurocirurgia?

     — Tenho que concordar que ele é justo.

     Prometi a ela que reconsideraria o que disse depois, embora já tivesse certeza que não teria a coragem o necessário para tal feito.

    Ela me deixou fixar alguns parafusos e suturou quando terminei. Deixamos o centro cirúrgico juntas, caminhamos direto para o elevador e compramos cafés e rosquinhas na cantina do segundo andar.

    — Pena que você não quebrou todos os incisivos e caninos dela, no coquetel — lamentou maldosa, referindo-se a loira que vinha em nossa direção com um sorriso falso. — Ela não estaria tantos pontos a sua frente se tivesse ficado banguela.

    Rimos alto, sem nos importar que isso trouxesse a atenção de Brittany para nós, ou que ela entendesse que era o motivo.

     — Seu pai está na emergência com o Müller — informou Quon, passando por nós apressado e com uma bandeja com vários copos de isopor.

     — Como sabe que é o pai? — questionei ao interno.

    — Ele me perguntou de você antes de me pedir para chamar seu chefe.

     Agradeci antes que as portas do elevador se fechassem com ele dentro. Deixei Lisa e fui até o andar de baixo. Sai do elevador e poucos metros depois me deparei com rosto sisudo.

    — Meu pai está aqui ainda? — Müller negou com a cabeça. — Ele queria algo em especial? — Repetiu o gesto e continuou andando.— Deve ter feito voto de silêncio.

    — Deu para falar sozinha agora? — Mesmo sem olhar na direção do balcão da enfermagem, de onde a voz vinha, meu sangue ferveu. — Conheci seu pai. Não sabia que era adotada.

    Tentei ignorar aquilo também, mas falhei.

     — Nunca ouviu falar em casamento interracial, Luiz?

      — O chamei pelo nome, quando a vontade era usar um termo nada agradável. — Insinuar que não posso ter uma pai caucasiano soou bem racista.

     — Mas eu também sou negro.

      — Racismo não é algo reservado aos brancos.
Frustrei sua tentativa de continuar ao lhe dar as costas e sair andando.

* * *

     Viúvo, o adjetivo ecoou na solidão da galeria. Em seguida, me peguei dedilhando suavemente os lábios enquanto exercitava minha memória com uma lembrança molhada de quase três semanas atrás, enquanto assistia ao procedimento realizado por Enzo e Brittany, através do vidro.

    Afastei a imagem nefasta do pensamento e refleti sobre a outra parte da minha conversa com Lisa, o que me fez deixar o centro cirúrgico decidida. Sabia exatamente onde encontrar quem me daria um procedimento valioso de verdade, mas teria que fazer antes de auxiliar Camille em outra cirurgia inútil para a competição.

    Atravessei o vestiário e parei na porta do banheiro masculino, um dos chuveiro estava ligado.

     — Olá? — gritei interrogativa e entrei com a ausência de uma resposta, ele não tinha companhia.

     Adentrei o lugar cautelosa, apenas uma das três baias estava com a porta fechada. Havia uma toalha pendurada do lado de fora e o roupas sociais dobras com perfeição sobre a bancada da pia, ao lado de onde me sentei para esperar.

     — Droga, Thompson! — exclamou, se cobrindo num rápido reflexo, antes que eu pudesse olhar além dos ombros largos. — Aqui é o banheiro masculino.

      — Seria estranho se você tivesse no outro.

     — Mas é perfeitamente normal você está aqui — revidou irônico.

     — Precisava falar com você antes que fosse embora, e que eu entrasse na cirurgia. — Segui uma gotícula em sua dança sútil por entre os pelos do peito dele, seguindo pela barriga e depois morrendo na toalha ao redor da cintura. Desviei o olhar, engolindo em seco quando senti meu ventre pulsar. — Será que dá para você pôr uma roupa? Eu viro de costas, fecho os olhos... Não estou conseguindo concentrar no que vim falar.

     — Não, não dá. Você não sente vergonha quando tira a roupa na minha frente sem aviso prévio.

    — Porque sei que você não olha.

     — E você tem problemas para controlar seus olhos?

     Müller deu mais um passo na minha direção, o aroma do sabonete adentrou minhas narinas. Perto demais, gritei repetidas vezes em pensamento, e como se pudesse ouvir, ele pegou algumas das peças sobre o mármore e se afastou.

    — Me deixa operar — pedi de súbito —, sob sua supervisão, claro. Mas me deixa te mostrar que consigo.

    O homem ponderou por algum tempo, então respondeu:

    — Certo, Thompson, consiga um caso, e a cirurgia é sua. — Escorreguei da pia sorridente, porém sua mão elevada mostrou que ele não tinha terminado. — Mas se não conseguir, vai pedir para o Cortez te transferir para a cardiotorácica.

* * *

     De volta ao hospital, em seu plantão seguinte, como se aquela proposta nunca tivesse acontecido, Müller sentou-se diante de mim e deslizou um tablet sobre a mesa da sala de descanso, me obrigando a desviar a atenção do livro que encaravam enquanto contava as horas para ir embora.

     — Segundo o histórico da Julie Pope, você receitou um antibiótico para ela da última vez que teve internada.

   Sem levantar a cabeça, respondi:

      — Solicitei cultura e antibiograma, para saber qual era a bactéria e a quê era sensível, caso esteja insinuando algo, doutor.

    — Ela voltou, e agora a bactéria está resistente a quase tudo que temos.

     — Pedi novos exames antes dela ter alta. — Desta vez o encarei indignada.

     — Então não foi você quem deu a alta?

      — Foi o Enzo. Ele olhou os resultados, e como mandou ela embora, deduzi que não tivesse mais infecção.

     — E você não se certificou?

     O cirurgião levantou, foi até o armário e voltou com o pires de uma xícara, um pêssego e uma faca, depositou todos sobre a mesa e começou a manusear a lâmina sem desgrudar os olhos da minha boca.

     — O Perry também é meu superior, sabia? Se ele deu alta, quem sou eu para questionar? — Fechei o livro. — Mas por o interesse repentino? Pensei que não pegasse mais casos pediátricos.

    — Como neurocirurgião não, porém não tenho a mesma autonomia quando presto serviços à infectologista.

      Não me surpreendi por ele também ter uma especialização clínica. Fiz pouco caso de sua explicação, descendo os olhos para a fruta em suas mãos, cortada em duas partes iguais, ele depositou as metades no patinho de louça e esperou o caroço com a faca. Seus lábios circundaram a semente, chupando-a com a intensidade que produziu um estalo no final. Incomoda, desviei a atenção momentaneamente para a tevê, para onde ele olhava há certo tempo. Concentrado no noticiário, arremessou o caroço do pêssego em uma lixeira do outro lado da sala. Exibido, acrescentei quando a praga que lhe joguei em pensamento não funcionou.

    Comecei a estralar as articulações das falanges, dedo a dedo, enquanto observa o quanto ele conseguia ser obsceno com aquela fruta. Aparentemente sem pretensão alguma, ele deslizou a língua de baixo para cima dentro da cratera que se formou onde ficava a semente do pêssego, em seguida abocanhou a extremidade superior da fruta, sugou todo o néctar conduzido até ali e finalmente mordeu com vontade. Sai do transe quando ele travou a faca na outra metade e estendeu na minha direção, oferendo.

    — Não, obrigado — recusei.

     — Esqueci, você que não consome nada que não ataque seu fígado.

     — Falou o cara que bombardeia o pâncreas.

    Ele sorriu, se dando por vencido e não acrescentou nada, pelo contrato, mudou subitamente a expressão, parecendo preocupado e passou para a cadeira ao meu lado. Sem avisar, sua mão veio em direção ao meu resto, seus dedos elevaram um pouco meu queixo e os olhos se grudaram aos meus, examinadores.

    — Está sentindo algo estranho? 

    — Medo, da forma como está me olhando.

     — Suas pupilas estão dilatadas — Recolheu a mão. — Usou algo ilícito?

     — Vai usar essa com o Cortez, falar que sou uma dragada, quando eu arrasar no procedimento, e você não puder se livrar de mim?

     — Só estava descartando as possibilidades, você tem histórico de... — preferiu não completar.

     — De tumor cerebral? — Continuou em silêncio. — Tem vários outros fatores que causam isso.

     E de todos os fatores, eu tinha certeza quanto a um que não seria em hipótese alguma: atração física. Minhas pupilas não estavam agindo como medidor de um desejo sexual que não existia. Estresse, a solução me ocorreu, só podia ser isso, principalmente depois da acusação a respeito da Julie.

    — Vou visitar a Julie antes de ir para casa.

    — Então vamos, também preciso vê-la.

     Maldição. Dei de ombros e deixamos a sala juntos. Fizemos uma pausa no caminho, no vestiário, de onde ele saiu com um embrulho lilás. E quando chegamos à enfermeira pediátrica, Müller ditou o caminho até o quarto onde a garoto havia sido internada desta vez.

    A televisão exibia um episódio do Scooby-Doo, o que deveria ser o motivo dos risadas da menina, já que estava sozinha. Os olhinhos castanhos brilharam ao ver o médico e covinhas de formaram nas bochechas quando avistou o pacote que ele trouxera.

    — Roxo é minha cor mais preferida de todas. — O entusiasmo podia ser notado mesmo com a notória dificuldade de falar.

     O sorriso o homem se abriu, um diferente de todos os outros que já vi, um sorriso terno e doce, que fez seus olhos se estreitarem.

     — A Lígia mandou para você — ele mentiu, e a garota rasgou o papel de presente com mais presa.

    — Algodão doce! Ah, meu Deus, tio, ela também me mandou o Sr. Bigles — disse abraçando o cachorro de pelúcia.

      — Lembra que te disse que ela viajou para junto do filho dela? — Julie assentiu. — O Sr. Bigles não pôde ir junto, e ela me pediu para deixar ele com alguém que fosse cuide muito bem dele. Me promete que vai fazer isso?

     — Sim, sim, sim! — A garota agarrou o braço do médico em agradecimento. — Agora não vou mais dormir sozinha quando minha mãe não vir.

     Müller retribuiu o abraço, depois afastou a menina com delicadeza, afagou seus cabelos e a cobriu. Notei que seus olhos estavam marejados quando levantou à procura do prontuário, e precisou limpa-los para ler as informações.

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