🔴Capítulo 1/2
* * *
Era a milionésima vezes que meu pai me abraçava. Despedidas, sem dúvidas, sempre foram o fraco de Marcus Thompson. Ele sabia que se não entrasse naquela caminhonete e voltasse o mais rápido possível para Miami, acabaria se desmanchando em lágrimas ali mesmo, na calçada.
— Mel... — Ele me segurou pelos ombros e me afastou o suficiente para me olhar nos olhos. — Você promete para mim que vai se cuidar?
— Sim, pai. Eu prometo que vou tentar comer comida de verdade com mais frequência; vou dormir no mínimo seis horas ao invés de virar a noite estudando; não vou tomar café para ficar acordada, e nem álcool para dormir; e nunca, em hipótese alguma, usarei água sanitária nas roupas coloridas.
A forma como aqueles olhos azuis me fuzilaram deixou claro o desagradado do meu pai quanto ao zombeteiro comentário. Talvez, tenha sido de muito mal gosto da minha parte, repetir com tanto deboche aquilo que ele havia frisado com tanta seriedade e preocupação ao longo do caminho.
— Desculpa — disse com serenidade —, mas não precisa se preocupar comigo, paizinho.
Com um singelo sorriso nos lábios, ele afagou meu cabelo, depois deslizou os dedos por toda a extensão de um cacho que havia caído no meu rosto, afastou-o e acariciou minha face com sua mão áspera.
— Eu sei, minha querida, mas não é fácil para mim deixá-la aqui sozinha.
— Miami fica à algumas horas de carro daqui, pode vir me ver todo final de semana. E quanto ao fato de me deixar só, não se preocupe, porque vou passar a maior parte do tempo no hospital, e lá nunca estarei sozinha.
Aquilo pareceu ter sido o suficiente para convencê-lo de que eu ficaria bem no meu novo apartamento alugado, a quilômetros de casa. Pois o mesmo me deixou e caminhou em direção ao carro. Entretanto, antes de entrar na caminhonete ele se virou mais uma vez à procura dos meus olhos e fez menção de dizer algo, mas logo reprimiu a ideia e apenas sorriu desconcertado.
— Sim, eu vou te ligar todos os dias — assegurei, pensando ter previsto o que ele tinha em mente.
— Na verdade, eu queria saber porque tenho que mentir para o Jack quando ele voltar. Por que seu namorado não pode saber onde você está, Mel?
— Não precisa mentir, o senhor vai ter tempo para pensar em algo, a pós do Jack prenderá ele no Canadá por mais uns três meses.
Estava ciente de que fazer aquilo não era obrigação do meu pai, mas se eu tivesse que ficar cara a cara com Jackson, se esvairia minha coragem de por um fim naquele namoro, que já havia se estendido por tempo demais.
— Como queira, filha — concordou, procurando no porta-luvas por um isqueiro, para acender o cigarro que já se encontrava em sua boca. — Vale mesmo a pena? Você nem terá seu ídolo como mentor.
Me aproximei da porta, que já estava fechada, estendi o braço na direção do meu pai e tirei calmamente o cigarro aceso de sua boca e trouxe até meus lábios, tirando dele um único trago, enquanto papai assistia incrédulo àquela cena. Logo devolvi o cigarro a ele, que hesitou em pegar, encarando por certo tempo as marcas de batom vermelho que mancharam o filtro.
— Ele não é meu ídolo — protestei calmamente, soltando a fumaça pela boca.
— Você tem todos os livros que ele publicou e uma coleção de artigos do cara coladas na porta do seu guarda-roupa. E também te o fato de que só aceitou fazer sua residência nesse tal de Metropolitan porque a Dra. Lee deixou escapar que isto aumentaria suas chances de trabalhar com ele algum dia em Baltimore.
— Que mal tem admirar o trabalho do médico que salvou a vida do meu amado pai?
— Então é por isso? — questionou ele, semicerrando os olhos com desconfiança — Pensei que fosse pelo charme dele.
Àquela altura o cigarro entre os dedos de papai já estava pela metade, e ele não havia tirado sequer uma tragada. Entretanto, como se pudesse ouvir meus pensamentos, ele levou o filtro sujo de batom até a boca e puxou a fumaça para seus pulmões e logo soltou pelo nariz.
— Ele é velho! — retruquei brevemente.
Papai gargalhou, jogando-se no encosto do banco, como quem acabara de ouvir uma boa piada.
— Passou tanto tempo tentando convencer o Jack de que isso é verdade, que até você mesma já está começando a acreditar que é, querida. Mas não se esqueça de que diferente do seu namorado, eu o conheço pessoalmente.
Ele levou a mão até a chave que estava na ignição, girou-a, engatou a marcha, ajeitou desnecessariamente o espelho retrovisor, me jogou uma piscadela e saiu sem acrescentar uma só palavra, sem me dar ao menos um último tchau. Fiquei ali, parada no meio da rua seguindo com os olhos a antiga caminhonete enquanto pensava no que papai havia dito, até que o carro virou na terceira rua e desapareceu.
Depois de dois lances de escada eu estava no segundo andar, de frente a porta do apartamento marcado, na altura do olho mágico, em dourado como "6B". Girei a maçaneta e abri de uma vez a porta que havia deixado apenas encostada, expondo a bagunça e fazendo o cheiro dos três ou quatro cigarros, que meu pai tinha fumado enquanto trazia minhas caixas para cima, se sobressair ao cheiro de tinta, que senti a primeira vez que adentrei o lugar. Minha boca salivou com a ideia de fumar um cigarro inteiro sozinha enquanto tomava uma xícara grande de café, entretanto, me veio a mente a lembrança de que eu não fumava, pelo menos não fumava mais há meses, ou há minutos se aquele trago curto do cigarro do meu pai contava como fumar. Só um café então, pensei já indo à procura da minha bolsa.
Pensei em pegar a bicicleta, que papai havia colocado na lavanderia, porém me lembrei da fina camada de neve que cobria as ruas e calçada, e ela facilmente derraparia. Então, fui até o quarto e peguei, dentro de uma caixa que estava sobre a cama, um sobretudo negro e um cachecol azul de bolinhas brancas e deixei o apartamento. Porém, fui obrigada a voltar antes mesmo de chegar à portaria, eu estava com minhas nada discretas pantufas de cabeça de panda.
Retornei ao segundo andar bufando, destranquei rapidamente a porta, com a agilidade de quem estava acostumada a manusear aquele molho de chaves, mas na verdade foi sorte ter destrancado a porta na primeira tentativa. Meus olhos foram de encontro ao par de botas que deixei ao lado do sofá assim que consegui substituí-las por algo mais confortável, e as calcei novamente, saindo apressada e de cabeça baixa, mexendo no celular.
Na calçada, olhei para todos os lados e suspirei frustrada. Eu não conhecia nada, mas me veio a mente que papai tinha feito questão de me ensinar o caminho até o meu "possível" trabalho, então me lembrei que havia visto uma cafeteria a exatos cinco quarteirões, em frente ao prédio principal do Complexo Hospitalar Goldenriver.
Estava fazendo alguns graus a baixo de zero naquela tarde, e aquele não era, nem de longe, um dos invernos mais rigorosos que a Virgínia já teve. No entanto, para mim que desde a minha volta aos Estados Unidos há três anos, readotei a cidade mais quente da Flórida como meu lar após uma longa estádia no Brasil, onde o clima parecia mais uma amostra do inferno sobre a terra — as temperaturas de Goldenriver era de congelar o sangue dentro das veias.
No café, um sininho sobre a porta anunciou minha entrada, fazendo a moça que estava detrás do balcão desviar o foco do que estava fazendo e olhar para mim. Ignorei a forma como ela me analisou de cima a baixo e olhei para o lado, na direção das mesas. E talvez, pelo fato de estar de frente a um hospital, não estranhei a quantidade de jalecos brancos e uniformes coloridos por todos os lados.
Sentada em uma das banquetas junto ao balcão, esperei a garçonete terminar com o senhor que estava ao lado. Carly, como dizia o crachá junto ao uniforme da ruiva, se dirigiu até mim pronta para pegar meu pedido, e era o que ela estava fazendo quando uma confusão aos fundos do estabelecimento roubou sua atenção por alguns segundos. Ela sussurrou algo tão baixo que não consegui entender, mas tinha certeza que era algo impróprio para ser dito em alto e bom som.
— Um café duplo, com creme e sem açúcar e uma rosquinha de ricota com limão siciliano — ela leu em voz alta aquilo que tinha anotado. — Mais alguma coisa, senhorita?
Neguei com a cabeça e ela se afastou, indo em direção a uma porta, que deduzi ser da cozinha. Carly não demorou mais que alguns minutos, voltando com tudo em uma bandeja, ela deixou o pratinho e a xícara de louça branca diante de mim, pediu licença e se foi novamente, agora para atender uma das mesas. Misturei meia colher de açúcar ao meu café, enquanto segui com os olhos a frustrada garçonete até uma das mesas próximas da parede de vidro, onde estavam sentados três homens de uniformes verdes-claros e jaleco por cima. Um deles olhou diretamente para mim, eu havia sido notada, então voltei rapidamente minha atenção para o meu café.
O frio que fazia do lado de fora me fez querer voltar para dentro da cafeteria, mas o sol iria se pôr em breve, fazendo as temperaturas caírem ainda mais. Então, apenas coloquei os fones no ouvido, ajeitei a gola do casaco e o cachecol, e caminhei depressa pela calçada com os braços fortemente cruzados e a cabeça baixa, para me esgueirar um pouco do vento.
Deixei a calçada sem sequer olhar para os lados. E talvez, se a música não tivesse tão alta, eu teria escutado a bicicleta se aproximar e tido a chance de desviar. Mas ela me acertou em cheio, ainda bem que não em alta velocidade.
— Você se machucou? — indagou um homem.
Minha mente tentava reproduzir o que havia acontecido, quando sua pergunta roubou minha atenção. A voz dele era doce, embora o tom fosse de preocupação naquele momento.
— Não — respondi ainda com a cabeça baixa e as mãos tateando o chão em volta de mim à procura do celular, que havia caído do bolso do meu casaco.
Minha mão esquerda tocou algo de vidro e, um tanto mais quente que a neve. Ela o apanhou e o trouxe até a altura dos meus olhos, para que pudessem avaliar os danos, daquele que eu estava certa de que era meu celular. O aparelho era originalmente branco com detalhes em prata, mas naquele momento estava inteiro vermelho, tingido por sangue.
O corte de aproximadamente quatro centímetros na palma da minha mão havia ficado latente por conta da endorfina, que juntamente com a adrenalina percorriam minhas veias aliviando a dor. Mas o hormônio parecia ter perdido o efeito no exato momento em que me dei conta de que o ferimento estava ali, então começou a doer e não parou mais. A dor era suportável, indicando que o corte era superficial, e também não tinha dilacerado nenhuma articulação, cartilagem, nervo ou osso.
Larguei o celular e fechei o punho, para comprimir o sangramento e, quem sabe, também diminuir a dor, quando percebi que alguém havia se ajoelhado no chão diante de mim e, sem que eu esperasse, tomou minha mão para si.
— Você vai precisar levar uns pontos. — Era a mesma voz doce de antes.
Recolhi a mão.
— Ninguém vai me costurar! — exclamei, encarando pela primeira vez a face do ciclista. — Foi só um caco de vidro. — Achei necessário acrescentar, usando um tom menos defensivo.
Seus olhos cor de âmbar acenderam como um copo de uísque posto a luz, quando um raio de sol, casualmente iluminou o rosto e os cabelos castanhos acobreados do desconhecido.
Se isso fosse mais um roteiro de comédia romântica clichê, nós estaríamos nos olhando feito dois bobo apaixonados. Mas é vida real e, felizmente, não existe esse lance de amor à primeira vista, então peguei o celular com a mão direita e o devolvi ao bolso do sobretudo, assim mesmo, sem me preocupar com o sangue que sujara ele. Depois me levantei do chão, espalmei a parte de trás da minha calça, para tirar qualquer reptício de neve que tenha ficado ali e segui meu caminho ignorando o rapaz, que tentou me seguir, entretanto, o som irritante da buzina de um carro e os gritos furiosos de alguém pedindo para que ele tirasse a porcaria da bicicleta do meio da rua, certamente foi o que impediu-lhe de vir atrás de mim.
Em casa, na pia da cozinha, lavei o machucado com sabão de nitroglicerina em água corrente, peguei o pequeno vidro de solução salina em cima da mesa e derramei uma grande quantidade sobre uma bola de algodão, que estava dentro de um copo descartável. Com uma porção menor do algodão embebido de soro, eu limpei minuciosamente toda a extensão do corte, antes de usar as pequenas tiras de esparadrapo cortadas de forma simétrica, para fazer um ponto-falso. Se tivesse agulha e fio de sutura teria dado pontos de verdade. A quem eu estava tentando enganar? Eu não faria mesmo se tivesse. Por fim, usei uma gaze dobrada ao meio na horizontal e tiras maiores de esparadrapo para fazer um curativo.
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