VOCÊ SUPEROU O SEU MEDO
༒
A vida humana é inútil, e tentar dar sentido a ela de uma forma considerada convencional é desgastante. Talvez seja por esse motivo que a família McKamey escolheu se apegar a algo novo e meramente surreal. Algo que as pessoas da época abominavam, e, influenciados pela Igreja, faziam questão de demonstrar isso com manifestos extremistas. Pessoas morreram sem necessidade em grande quantidade naquela época, inclusive a família mais devota ao ocultismo, líder da Ordem, regentes do ofício da utilização de forças das trevas para seu benefício.
Canyon Valley era uma cidade histórica, desde sempre pequena, no entanto, portadora de grandes acontecimentos.
Ross odiava a forma como os humanos mortais se viam e viam o mundo. Sua perspectiva era limitada de mais, não havia abertura suficiente em seu intelecto para creditar informações tão valiosas, que pregavam a ideia de que o mundo sombrio era tão favorável quanto o da luz. As pessoas são hipócritas. Todos rejeitam o mal personificado mas o cultivam dentro de si mesmos. E era essa a função da mansão lar dos medos, trazer á tona o que representava a pior parte do ser humano, a sua fraqueza; fazer com que sentimentos surjam com isso e alimentem cada um dos demônios, tornar o maior traço de humanidade — o medo — algo palpável e visível.
Alguns podem superar e mudar completamente a sua perspectiva daquele algo, como Todd havia feito; já outros, poder sucumbir a esse medo, afundar mas águas do desespero e se deixar ser consumido pela sua fraqueza. E essa era, especialmente, a parte que o proprietário mais adorava.
O patriarca da família McKamey era um tanto idealista.
O pai de Ross era um homem que tinha planos altos com o mundo oculto, e estudava com frequência cada uma das páginas dos livros proibidos pela Igreja, que foram obtidos outrora clandestinamente. Ali estava todos os segredos para se alcançar o poder profundo, para se tornar uma nova criatura, e, bem... Para a encarnação direta.
Quando criança, Ross não não entendia muito bem como aquilo funcionava. Ele e o irmão apenas seguiam instruções a maior parte do tempo, e eram disciplinados de forma severa pelos pais. Desde o princípio, quando ainda nem sabiam andar, seus corpos foram oferecidos a serviço do mundo oculto. A anciã da Ordem tinha muito crédito dos cultistas, já que era a mais experiente, além de saber manusear a magia negra como ninguém. Ela testemunhou a consagração, e alegou ter prevido que os irmãos McKamey teriam muito potencial para a bruxaria quando fossem moços, o que contribuiu muito para os ensinamentos rígidos.
Os dois tinham uma boa relação, e no geral, cuidavam bem um do outro. Eram de orgulho dos pais, e suas vidas permaneciam normais da sua maneira.
Até que aquele dia chegou.
Homens vestidos com trajes do exército invadiram sua casa na companhia de um grupo de padres. Os celibatos iam na frente, estendendo crucifixos e rezando para purificar o ambiente de todo mal que ali residia, enquanto os homens portando espadas revistavam tudo na casa a procura de artigos que comprovassem o exercício de bruxaria.
Destruíram tudo. Quebraram os móveis, queimaram amuletos, inclusive a decoração tão amada de sua mãe. Seus pais foram os primeiros a morrer. Os meninos se esconderam nos quartos a pedido deles, e após serem enfraquecidos pelas rezas dos padres, ambos foram arrastados até o centro da cidade — que não era muito longe da mansão — , onde seriam queimados vivos na presença de todos os cidadãos.
Ross se lembrava perfeitamente daquele dia, o dia em que viu pela janela de seu quarto seus pais queimando na fogueira, vivos. Os outros membros da Ordem também foram, consequentemente, e ao final, os irmãos McKamey da mesma forma, morreram nas mãos dos religiosos.
O fogo queimou cada parte de seu corpo, transformou sua carne em cinzas, e enquanto isso acontecia, o cheiro era horrível. Gritou, mas não por muito tempo. Sua última visão foi a do céu estrelado, e seu último sentimento foi de raiva.
Isso o trouxe de volta? Ele não soube dizer por um tempo.
A McKamey Hills foi destruída pela mesma chama que matara a si e a sua família. Por muitos dias, autoridades da Igreja benzeram aquele terreno, dizendo ser amaldiçoado pelas práticas que ali eram exercidas. Preocupou os moradores dos arredores, que ao passar por aquela rua em frente ao destroços, ouviam e viam coisas que os chamavam para lá; alguns até mesmo enlouqueceram, apenas por respirar o ar lúgubre que emanava do que sobrou da casa.
Aos poucos, Canyon Valley foi se tornando uma cidade pacata, e foi só em 1960, cinco séculos mais tarde, que ela chegou perto de voltar a ser o que era antes.
Ross se lembrava da família Delory, mesmo a sua memória não sendo tão perfeita a esse ponto. Haviam algumas cenas fixas nela, e uma delas, era do dia em que o chefe da família de sangue nobre Delory, viu potencial no que restou de sua casa. Ele era um homem tão idealista quanto seu pai, e não se importava com as lendas que ouvia dos moradores mais antigos, pois com o tempo, toda aquela história havia sido banalizada, e as pessoas que chegavam para morar na cidade não perpetuavam nenhum dos dizeres.
O homem considerou aquele terreno auspicioso, e ousou aproveitar a fundação da McKamey Hills para construir a Mansão Delory.
O nome dele era Henry Delory, tinha uma esposa muito bonita e um filho com hábitos antissociais, em especial, o personagem favorito de Ross naquela história de terror.
A mansão ficou pronta em dois anos e alguns meses após a primeira visita do empreiteiro dos Delory, e chegou a ficar muito parecida com seu antigo lar. McKamey não soube que fim deram aos móveis e o resto das coisas de sua família, mas na época chegou a ouvir de um homem que todos os artigos haviam sido também queimados para a segurança de todos, então tudo indicava que nada além da estrutura lhe pertencia.
Foi próximo desses dias que Ross descobriu que não foram todos os artigos da família que foram perdidos, alguns ainda estavam na casa, e foram descobertos pelos novos moradores, no porão. O baú de madeira pertencia a seu pai, e lá ele guardava coisas consideradas importantes para família, apesar de, ao analisar o interior daquele objeto, ele não ter encontrado apenas coisas fúteis. Lá estava um retrato pequeno de sua mãe, um candelabro, uma caixinha de música, o medalhão egípcio de seu pai e outras peças de decoração que não conhecia.
Ele sentiu a essência de sua família naquelas peças, e aquilo foi o suficiente para que sua ambição crescesse e o desejo pelo poder sombrio e sublime aumentasse cada vez mais. Não havia nada de errado em querer restituir o seu lar, muito menos em querer mostrar as pessoas a verdadeira face do mal. Tudo havia mudado, e o garoto de quatorze anos que fora queimado vivo ao lado de seu irmão havia evoluído.
Hoje, ele é o representante das forças ocultas, e aquele que alimentará seus amigos pelos próximos séculos, mesmo que resultasse em mortes tão severas como as de Mônica, Clara, Donnie e Gaston. Sim, ele se lembrava! Todas aquelas pessoas estúpidas que haviam aceitado os termos, entrado em um trem, ônibus ou em um táxi qualquer — até em seu próprio carro — não eram um grupo qualquer de vítimas. Ambos foram escolhidos com um propósito, e ao final daquela estadia, Ross tinha em mente a possibilidade de quem sobreviveria ou morreria na primeira etapa.
Porém nem tudo estava sob seu controle.
E essa era a parte mais divertida.
Sabine não sabia ao certo há quanto tempo estava ali mergulhada no desespero sem tirar em momento algum os olhos de Collin, que ainda por algum motivo, permanecia a dizer coisas estranhas e a se debater justificando o fato de ela ter optado por se afastar dele o máximo possível. Sua cabeça turbinava em pensamentos incoerentes, onde em um deles, ela se imaginou saltando da janela quebrada do segundo andar, mesmo que no fim, ela perdesse a sua vida.
Como ela viveria afinal? Embora buscasse acreditar nas palavras de Todd, e acreditasse que poderia dar certo, nada daquilo fazia sentido o suficiente para que aqueles pensamentos sumissem de sua cabeça. Estavam em extrema agonia, e não aguentava mais ficar sob a própria pele, a mesma pele coberta por suor, sujeira e lágrimas quase secas. E não era a única. Ao fim de tudo todos eles — os que ainda respiravam — torciam para que acordassem e a tragédia de suas vidas, conhecida popularmente como McKamey Hills, fosse apenas um pesadelo que os deixariam traumatizados pro resto de suas vidas.
Sua respiração estava ofegante ao ponto de apenas aquele som se propagar naquele cômodo, fora os gemidos e murmúrios de Collin, por um longo tempo. O tempo corrido foi o suficiente para que ela movesse os olhos por cada canto do lugar até ver o que parecia ser a peça de decoração que deveria encontrar. Hesitou em soltar seus joelhos e se levantar para pegá-la, mas quando finalmente toma impulso para cima, Collin parece ter recobrado a consciência ao sentar no chão de supetão, com as íris arregaladas e tão ofegante quanto Sabine, ainda se recuperando daquela cena grotesca vivenciada por ele no inconsciente.
— Você está bem? — ela pergunta com voz e corpo trêmulos.
— E-Ele... — ponderou e então pisca freneticamente como se acabasse de lembrar de algo importante. — Precisamos falar com Todd, isso... Isso tudo está piorando! Precisamos sair dessa casa agora, ou todos vamos morrer!
Quando o companheiro levantou a voz exasperado, Sabine se encolheu sentindo uma densidade enorme lhe dar a sensação de que seu peito explodiria a qualquer momento.
Collin,por sua vez, estava um turbilhão de sentimentos confusos que remetiam ao medo, exatamente aquilo que McKamey queria dele. Sentia-se injustiçado por ter que sofrer com seu passado outra vez, e a dor era proporcional a isso, de forma que ele só passou a perceber suas origens quando se levantou do chão e avistou a poça de sangue perto de onde estava. Analisou seu corpo receoso e viu os cortes sangrentos em seus braços, ardendo como se queimassem, com lacerações na pele abertas e inchadas, nelas a gravidade vazia seu trabalho, levando o sangue que escorria a pingar no chão.
— Era real, mas como...?
Suas palavras saem fracas e quase inaudíveis.
Sabine encarou aquilo pressionando bem os lábios e engolindo em seco repetidas vezes evitando vomitar. Esperava conseguir alguma coisa depois que ele já tivesse se recomposto, mas nada lhe vem a mente e protesta em silêncio por isso.
A garota levanta do chão onde permaneceu sentada durante o surto assustador de Collin usando as prateleiras como apoio. Ao se colocar de pé ela tem uma visão melhorada do quarto dos quadros e ainda avista com facilidade o retrato de Janette, que mostrava uma bela mulher com cabelos ruivos e cacheados. Seus olhos eram azuis e seus lábios eram finos e rosados naturalmente; vestia preto e usava um colar com pingente de cruz invertida. Soava irônico a forma como uma moça tão exteriormente pura poderia ser simpatizante com o que Sabine conhecia como mal.
— Vou pegar o retrato, depois nós saímos para procurar Todd e Gaston — ela profere sem tirar os olhos do objeto atraindo um olhar cúmplice de Collin, que curioso olha na mesma direção.
Os passos no piso de madeira fazem-na ranger alto, o que faz Sabine apertar o passo até aquela prateleira. Quando estende a mão para tirar o pequeno quadro do lugar, um arrepio no corpo a faz recuar um pouco e na mesma hora, como se coincidissem, um barulho peculiar chama a atenção dos dois. Quando ela se virou para a porta fechada que delimitava o cômodo do corredor, percebe que Collin já fazia o mesmo, tendo percebido que havia algo diferente na casa na mesma hora que ela.
— Sentiu isso? — ele pergunta já sabendo que sim.
"Não há como não sentir." — pensou ela, criando ainda mais convicção para pegar o quadro.
Sabine volta seus olhos para o retrato, e acaba tendo uma surpresa desagradável. Onde deveria haver Janete em sua beleza medonha, havia sangue tampando a imagem inteira como se tivesse escorrido da própria margem.
— Collin — chamou com um nó na garganta.
O garoto olha para ela desviando da distração que o fazia pensar no que acontecia lá fora, e ao se deparar com o objeto que jorrava mais sangue que os cortes em seu braço ele sente um arrepio maior, que faz suas mãos suarem com espasmo. Ambos olharam ao redor. Todos os quadros do cômodo estavam cobertos de sangue, de forma que a imagem retratada não podia ser vista.
Sabine tomou coragem para pegar a peça de decoração pedida por McKamey. Com a manga da blusa, ela tenta limpar o sangue que havia ali, manchando suas mãos além da conta.
No meio daquele caos hemático ela obteve sucesso em limpar o excesso do rosto de Janette, o suficiente para perceber que a foto havia sido alterada repentinamente. O rosto da mulher estava sem pele, como se tivessem sido arrancadas cada camada, exibindo a carne viva de toda a sua face; no lugar de lábios simples e retilíneos havia um sorriso mostrando os dentes pontiagudos que não pareciam ser reais; e os olhos azuis foram convertidos em pupilas ovais com pontas na parte inferior e superior, como de felinos.
Com o susto, Sabine perde a firmeza das mãos, deixando o quadro cair no chão, e consequentemente a moldura se parte junto com a película de vidro que protegia a imagem.
Seu coração bombeava com mais rapidez deixando-a quase sem fôlego para se recompor, de forma que a garota tonteia e sente suas mãos sangrentas formigarem.
Logo mais um som é ouvido, e desta vez, vem do corredor do outro lado da porta. De início pareceu ser passos apressados comuns, e os dois adolescentes assustados na sala de quadros poderiam chutar que seria Todd ou Gaston. Porém a perspectiva muda quando ouvem passos a mais, que penetram seus ouvidos com altivez, dilacerando qualquer evidência de boa esperança que poderia ter surgido de um segundo para o outro, junto com a frase que se replicava no ambiente, dita em alta voz por cada retrato coberto de sangue.
"Sabine... Collin... Vocês dois vão morrer hoje." — seguido de uma risada feminina abafada.
Todd se aproximou dos vãos ao redor da portinhola da passagem secreta sendo audacioso ao verificar se o homem zumbi estava por perto. Se manteve atento a cada movimento que fazia, evitando ao máximo que algum som excedesse o volume de um suspiro baixo, e teve a esperança de que toda cena vista anteriormente fosse apenas uma miragem criada por Ross McKamey para que o medo despertasse dentro dele mais uma vez. Todas aquelas perguntas feitas no site fizeram sentido de repente, quando pensou em como lhe assustava ver pessoas sendo mortas de forma tão bruta. Teria Gaston dito o nome dele?
Antes que tivesse a chance de mover-se novamente o som da porta principal sendo destrancada chama a sua atenção totalmente, de forma que Todd recua no duto usando as mãos como auxílio. O espaço era pequeno de mais para que ele ficasse de pé, porém, era fácil se locomover por ele abaixado. No momento ele se encontrava sentado agarrado ao diário velho que continuava preso entre o cós da calça e a área inferior de sua coluna.
— Ele chegou — diz em voz alta, mas não o suficiente para que ele temesse que alguém o encontrasse.
A porta mecanizada da entrada da McKamey Hills havia sido aberta, e mesmo que o fato sugerisse que possivelmente eles estivessem liberados para sair dali, Todd sabia o que significava, e sabia que não era nada bom.
Os passos lentos e pesados faziam um som perturbador no assoalho, e como se por ele, as paredes pareciam tremer ou se agitar, assemelhando-se a quando um carro com auto-falantes ligados no último volume passava perto de sua casa fazendo se agitarem as janelas. "Só pode ser ele" — o garoto pensou, e logo lhe veio a mente que ele precisava avisar Sabine e Collin sobre sua nova descoberta em relação às etapas. Agora que sabia o que não deveria fazer precisava optar pelo plano C, que os levaria a confiar na escrita do diário, usando o maior medo de Ross contra ele.
— Lar doce lar... — a voz masculina soou no ambiente dando mais uma vez a sensação de que tudo na casa respondia a ele.
De sobressalto, Todd rasteja pelo duto de forma silenciosa. Sobe os pequenos degraus internos e se achega ao segundo andar da mansão, vendo ao fim do túnel a portinhola que o levou até um quarto pequeno, que portava um berço e outros móveis raquíticos. Precisava encontrar aqueles dois, mas não sabia ao certo qual das portas ele deveria abrir, e ao mesmo tempo que decidia, temia encontrar algum monstro ou demônio típico.
Teve a impressão de ouvir murmúrios na porta que ficava de frente para a do cômodo que saíra e se aproximou, levando um grande susto assim que ela se abre quase que imediatamente, revelando Collin com a chave de fenda apontada para seu pescoço.
— Droga Todd! — suspirou nervoso puxando o garoto para dentro.
Sabine ainda estava no canto do aposento encarando o quadro partido no chão com os olhos arregalados quando Todd entrou no quarto ofegante. Com expectativas, ela se aproxima dele o analisando com o mesmo olhar. Quando seus olhos não encontram o elemento que faltava, um ponto de interrogação é transmitido pela sua expressão ao franzir a testa.
— Onde está Gaston?
A criança engoliu em seco quando a imagem de seu companheiro tendo as entranhas devoradas voltou com tudo na sua memória.
— Ele morreu — Collin e Sabine se entreolharam com a resposta dele. — O garoto loiro do porão matou ele... — sentiu o choro entalado na garganta, mas engole voltando a olhar para frente.
— O... O quê? — Collin se posiciona ao lado da figura feminina do grupo ficando de frente para o mais novo.
Sabine estava em choque.
Todd tentou ponderar em como replicaria a situação vivida por ele minutos atrás em palavras, mas não lhe ocorreu nenhuma sugestão de como explicar que havia visto um morto-vivo pessoalmente.
— O cara que vimos morto no porão... Ele tava vivo, como um zumbi, e ainda tentou me matar, mas Gaston me protegeu e acabou morrendo. — Resume o máximo que consegue sem perder o foco com a sensação de que acabaria em prantos em qualquer momento do discurso.
— Não... — com a voz chorosa, Sabine leva a mão a boca em preocupação. — O que vamos fazer agora? Se eles voltam a vida... As nossas chances são limitadas.
Seu coração ainda estava apertado em seu peito e ela ainda não sabia se sairia viva dali. Ambos estavam a um passo curto da morte, e algo dizia que essa distância mínima logo deixaria de existir sem que eles pudesse impedir.
— Acho que está na hora de você contar pra gente o que descobriu — Collin foca em Todd fazendo o mesmo ter uma breve recordação de seu verdadeiro objetivo ao voltar para o segundo andar pelos dutos.
— O maior medo dele. É disso que precisamos.
Sabine franze novamente, mas desta vez, não de preocupação e sim de clareza. O episódio da sua entrada na casa foi repensado e depois de analisar alguns pedaços daquela história ela deduziu que ambos já sabiam qual seria o suposto maior medo do proprietário.
Se a história contada por Albert Delory no diário era mesmo verdadeira não poderia restar mais dúvidas, haviam encontrado uma saída, ou um atalho para a morte definitiva.
— Fogo — firma a palavra como se quisesse deixá-la suspensa no ar, quase palpável.
Todd se permite sorrir fraco.
Havia subestimado eles.
— Imaginei que perceberiam alguma hora. A família de "vocês sabem quem" morreu queimada, e a casa foi incendiada duas vezes, mas não totalmente.
— Fogo! — Collin replicou com exaltação, captando a palavra do ar com um estalar de dedos. — Devemos incendiar a mansão outra vez?
— Se fizermos isso podemos morrer aqui dentro — a garota responde cerrando os punhos. — Deveríamos encontrar uma saída antes.
Um silêncio se instaurou novamente no local e mais um dos estrondosos passos que antes ouviram corta-o trazendo a mesma sensação de pavor que vinha com ele. Mais do que os outros dois, Todd temia o que os esperava lá fora, considerando que ele já sabia de quem se tratava e havia esquecido de contar a eles .
— Tem uma outra coisa... — sua boca seca e ele faz uma pausa necessária para umedecer os lábios e limpar a garganta. — Ele está aqui.
— Ele? — os outros dois perguntam em uníssono.
Collin força a sua mente a responder aquela pergunta retórica, mas ela foi respondida antes, e não por palavras. Um som estranho foi emitido por algo alcançando toda a casa, sendo ele como um burburinho grave que enrijece os pelos do corpo e o aquece, tornando o suor aparente.
O trio espantado encararam entre si e decidiram abrir a porta para ver o que acontecia lá fora, e ainda que suas atitudes fossem estúpidas para pessoas que prezavam pela própria sobrevivência, concordavam que não havia melhor escolha para aquele momento.
O corredor aparentemente vazio ainda estava mal iluminado com as velas acesas e fixadas pela cera derretida nos suportes na parede de ambos os lados. Com passos lentos evitando o menor ruído, ambos avançaram para o meio dele, e estando na frente e se sentindo responsável pela segurança dos outros, Collin agarra a chave de fenda com mais força fazendo doer os cortes em seu braço. Quando seus olhos focam no início do corredor próximo ao início da escadaria havia uma criatura que tira seu fôlego por alguns instantes, e os efeitos são sentidos quando ele sente sua cabeça girar.
— Mas que merda... É aquilo? — Sabine diz pausadamente deixando óbvio o que demonstrava sentir com a reação.
O monstro era humano, ao menos, da cintura para cima, sendo nela, uma garota; seu corpo da metade para baixo era composto por patas peludas de aranha gigantes, e no lugar dos braços haviam afiadas pernas com um formato semelhante a uma agulha dobrada e curvada. A garota tinha um cabelo loiro comprido em cascatas onduladas que cobriam seus seios expostos. Sua pele estava pálida e demasiadamente acinzentada, coberta de veias visíveis que transportavam um líquido preto em vez de sangue — tal que lembrou Todd do qual ingerira horas atrás. Seus olhos eram enormes e totalmente pretos num formato de folha, e sua boca revelava quelíceras que movimentavam-se como patas de cachorro ao escavarem um terreno. Tudo indicava que estavam sim prontas para escavar o que precisasse, seja terra ou carne humana.
Sabine arrasta os dois para dentro do quarto novamente trancando a porta. Para surpresa de todos, o monstro não ataca, como se esperasse o momento certo, ou alguma ordem. De qualquer forma eles sabiam que Ross estava na casa e que o ataque letal poderia acontecer a qualquer momento.
— Você disse que viu um zumbi — Collin se dirige ao garoto sem tirar os olhos da porta. — Algo me diz que ele está reutilizando as almas condenadas ao medo dessas pessoas.
Sabine hesita ao conseguir dar uma risada de escárnio.
— Agora você acredita?
Ele nega com a cabeça.
— Acredito porque é real.
Todd encara um e outro nervoso com a situação em que se encontram, e então seus olhos se voltam para a entrada do duto.
— O Gaston disse que entrou pelos fundos... — Collin torna a falar chamando a atenção da garota. — Deve haver um alçapão ou uma dispensa que dê lá fora. Pela arquitetura da casa, essa é minha dedução.
Sabine pende a cabeça confusa.
— Está falando de uma possível saída? — a criança enfatiza a última palavra com excitação.
O autor da ideia agradece a seu hábito de leitura de livros de todos os tipos e a sua memória implacável com temas que o interessem. A verdade era que casas antigas do tipo continham dispensas subterrâneas para conservar alimentos produzidos. Nenhum deles havia pensado nisso antes, talvez com a falta de uma possibilidade de sobrevivência não tivessem notado.
— A cozinha — continua mesmo com as dúvidas. — Nós estivemos num porão escuro que parecia um laboratório macabro, mas na verdade era uma parte estendida da dispensa.
— Devemos voltar lá se quisermos sair sem morrer no incêndio. — Todd fala rapidamente.
Na mesma hora uma batida na porta impressiona ambas as vítimas causando um salto involuntário entre o trio. Todos se entreolharam em desespero ao ver as guarnições da porta racharem com o impacto, derrubando uma quantidade considerável de poeira e farpas no chão.
— Vocês irão morrer hoje — uma voz feminina mesclada com uma mais grave e demoníaca cantarola do lado de fora, fazendo em seguida o mesmo som de antes. — McKamey Hills quer a cabeça de vocês.
Num impulso de seu cérebro Collin se vira para os dois se xingando mentalmente ao hesitar em suas palavras. Ele mais do que ninguém sabia que talvez nem todos conseguissem sair dali, mas pretendia contribuir para que houvesse alguma vida após aquilo tudo. Entrar naquela casa havia sido um erro que todos escolheram cometer, e se quisessem sair dali não havia muito o que fazer, mas o pouco era difícil, muito difícil.
— Todd, você precisa ir pelos dutos, abra o caminho, assim eu e Collin te encontramos no porão — Sabine se manifesta.
Collin ficou surpreso com a iniciativa dela, e estava aflito com a ideia de nenhum dos dois ser pequeno o suficiente para ir com ele. Apesar de tudo, Todd ainda é uma criança, talvez seja o momento de ter consideração por isso.
— Tem velas por toda parte, coloque fogo no que conseguir, mas só faça isso após abrir o alçapão da cozinha — continuou dando instruções, e ao receber um olhar interrogativo, Collin concorda com a cabeça.
— Eu tenho um plano — diz para ela, visto que os dois ficariam para enfrentar aquela criatura.
O estrondo se repete freneticamente e a ponta velha começa a ceder com facilidade.
— Agora, vai! — gritou ela para a criança que parecia mais assustada que o normal.
Assim que Todd desaparece ao entrar no passagem secreta a porta cai no chão a frente deles, revelando o monstro de médio porte sedento por sangue. De imediato ao ter a primeira visão de perto daquilo, Collin lançou um olhar de cumplicidade para a garota assustada ao seu lado, a mesma o retribuiu rapidamente entendendo nas entrelinhas o que deveria fazer a seguir. Com a chave de fenda segura com firmeza nas mãos, o rapaz ignora mais uma vez a dor dos cortes profundos em seus braços, e ataca a criatura rasgando a parte superior do busto com facilidade. Estava caindo aos pedaços por estar morta. Pensou, ouvindo um grito de dor vir de sua vítima, e outro de irritação assim que Sabine passa por entre as suas oito pernas saindo de suas vistas. A distração fora o suficiente para que ele se afastasse para o centro do quarto, caçando com os olhos por algo que fosse mais letal que uma ferramenta.
Sabine aproveitou da distração do que parecia ser o único perigo para ela momento para ir até o quarto onde se escondeu do fantasma vingativo de Mack no início de sua estadia. Lembrava-se se como o cano de madeira corroído pelos cupins se soltava dentro do móvel bolorento onde esteve escondida até que Gaston a encontrasse. Pobre Gaston. A cada minuto seu coração oscilava só de se imaginar na lista de pessoas que morreram na mansão, doía ao pensar neles, lamentava que tivessem que passar por mortes horríveis estando ali com o mesmo objetivo que ela.
Encontrado o quarto, o mesmo aconteceu com o cano de madeira onde eram pendurados os casacos. Na tentativa de removê-lo ela xinga alguma vezes impaciente pela dificuldade, e quase que cambaleia quando o material cede fazendo-a ter em mãos algo nocivo para aquele monstro.
Quando retornou ao lugar onde Collin estava, percebeu a ausência tanto da criatura como do garoto e isso a faz hesitar em dar mais passos. Seu cérebro a repreende quando insiste em caminhar, mas mesmo assim, Sabine aumenta a rapidez dos pés confiante na ideia de não deixar mais ninguém morrer ali.
Entrando no quarto, ela encontra as patas de aranha debruçadas sobre Collin, que arfava agonizando com aquelas mãos pálidas lhe apertando o pescoço. Ele a enxerga ali, mesmo naquele momento torturante, e lança outro daqueles olhares, como se aprovasse sua aproximação. Num ímpeto de bravura, a garota ergue a estaca castigada que lhe machucava as mãos com as farpas soltas acima da cabeça, pega impulso, e crava o objeto no monstro, atravessando-lhe as costas, revelando a ponta entre os seios expostos. O sangue era escuro e denso, de forma que sua demora ao pingar na barriga de Collin o faz deduzir que talvez a distinção entre eles e os demônios não o permitisse que fossem mortos da forma convencional. Mas suas suspeitas são negadas assim que a mulher mutante desacorda caindo sobre seu corpo.
— Meu Deus! — exclamou Sabine olhando para as mãos machucadas, desacreditada do que acabara de fazer. Desvia os olhos delas e salta em direção ao garoto no chão, o ajudando a tirar aquilo de cima dele. — Você está bem?
Collin pende a cabeça e libera um grunhido ao se levantar com a ajuda dela. Não quis ressaltar como esteve apavorado acreditando que seus últimos suspiros seriam há segundos atrás, muito menos sobre a dor que sentia por estar ferido e cansado.
— Sobrevivi desta vez, obrigado — ao agradecer seus olhos pousam nos dela. — Onde encontro uma dessa? — pergunta vendo a garota usar o pé para empurrar o corpo morto ao puxar o cano de madeira.
Mas Sabine refletia sobre outra coisa que a preocupou.
— Ela não desapareceu, como os outros medos.
— Talvez agora seja diferente. — Collin acompanha o raciocínio com rapidez.
O minutos de paz não duram mais que segundos. Logo outro barulho de passos é escutado, desta vez lentos e humanos. Os dois se comunicam pelo olhar mais uma vez decidindo partir para o corredor. Um vento que entrava pela janela quebrada, exatamente daquela onde Collin vira Mônica ser jogada, apaga as velas que restavam, deixando o corredor sob o brilho do luar e dos olhos daquela próxima criatura.
— Do-Donnie? — foi a única coisa que Sabine conseguiu dizer, antes de ter seu corpo arremessado contra a parede.
Ao vasculhar as gavetas que alcançava da cozinha, Todd não encontrou nada além de um ninho de ratos e parafina. Os armários também não guardavam nada, salvos alguns sacos tecidos manualmente, próprios para alimentos com maior tempo de conservação. Um palavrão escapa de sua boca.
Na teoria, ele deveria arrumar um jeito de incendiar a casa, mas antes, precisava arrumar um jeito de quebrar o cadeado posto no alçapão da cozinha. Estaria louco se continuasse tentando com o canivete. Era óbvio que o proprietário não facilitaria as coisas agora, não era de seu feitio — e Todd se sentiu um idiota apenas por poder imaginar isso, afinal, quem em sã consciência estabelece uma relação com um lunático? Era incrível a forma como ele se sentia próximo daquele mundo, e culpava especialmente o Demônio Branco por sua presença indevida e seus sussurros influenciadores. Ao pensar nisso seu estômago embrulha, e a criança chega a duvidar se tinha botado todo aquele líquido preto pra fora de seu organismo ao vomitar. Outra parte de si reprovava a ideia e mantinha a incredulidade na teoria de virar um monstro gigante sem boca.
"O martelo!" — Um rápido e sorrateiro flash de memória lhe dá uma clareza repentina.
Levantou do chão e verificou ao redor. Com passos amistosos ele se sente tentado a retornar ao hall de entrada, na intenção de encontrar o corpo de Gaston deteriorado, e talvez, próximo dele, o martelo estranho que carregava consigo.
Na ponta dos pés para evitar um ruído excessivo, ele caminha até lá encontrando justamente o que esperava: um corpo com o tórax aberto e moscas sobrevoando seu interior. O cheiro de carne crua chegou ás suas narinas com mais impacto do que quando esteve no porão. Todd as bloqueou com o ante braço e esticou o pescoço por perto tentando encontrar a ferramenta. Achou-a perto dos pés do homem e com a mão livre a capturou sem hesitar, retornando no mesmo ritmo para a cozinha.
O cadeado amassou demasiado antes de finalmente ceder. As mãos de Todd estavam suadas pela temperatura que o atrito constante de suas mãos com o cabo causava. Secou-as na calça e puxou a portinhola dando de cara com a escada familiar de antes, que levava ao porão. O cheiro de sangue ainda perpetuava lá em baixo, e junto com o breu, trazia uma grande sensação de desconforto.
— Task um, já foi.
Era mais fácil lidar com aquela situação imaginando que estaria dentro de um de seus jogos de terror, seja de computador ou de videogame. O universo em animações 3D, com a capacidade de ter várias vidas eram reconfortantes, e replicavam a ideia de que a imaginação de uma criança poderia ser efetiva. Segundo o jogo mental de Todd, sua próxima missão era botar fogo no que conseguisse antes de descer aquelas escadas e esperar por Collin e Sabine.
O menino retorna a atravessar os corredores até o hall de entrada novamente, desta vez, com movido pela ansiedade, em passos rápidos. Achou um candelabro solitário apagado na mesa de jantar e raptou-o com o foco mantido em acender usando as velas acesas da sala. Para a sua decepção, ao chegar no cômodo, todas as velas se apagaram com um sopro vindo do além, tal que enrije os pelos do corpo do menino e acelera suas pulsações. A luz da lua entrava de forma precária no ambiente pelas frestas das tábuas de madeira que a bloqueavam por fora, junto com o vento suspeito de apagar as velas. Todd estava sozinho, e se sentiu mais vulnerável que nunca naquele lugar. Apareceria mais uma criatura? Um demônio sem boca? Um zumbi de Gaston com as vísceras penduradas para fora?
"Não!" — Repreende a si mesmo e com um gesto da cabeça espanta imagens que sua mente criativa lhe mostrara.
— Pense, Todd! Não é possível que agora todo fogo que tinha já era! — sussurra raivoso para si mesmo, e então sua atenção se volta para manchas de sangue que aparecem nas paredes. — Puta... Merda.
Milhares de cruzes desenhadas com sangue, de todos os tamanhos e rascunhos possíveis, ambas de cabeça para baixo rodeavam o garoto nas três paredes que formavam a sala de estar. Não pode ver muita coisa com a falta de luz, mas o escarlate era nítido e parecia brilhar para ele a medida que se aproximava.
"Você vai morrer hoje, Todd..." — uma voz em sua cabeça diz, e ele se assusta com um salto.
Em desespero ele rotaciona a procura de uma solução para seu problema. Seus olhos avistam a pequena lareira já apagada, rapidamente ele anda até ela e se ajoelha, se torcendo um tanto para poder checar se havia alguma umidade.
Todd era familiarizado com vídeos de sobrevivência, mas ainda não havia lhe ocorrido alguma ideia proveniente deles para ajudar em algo em sua situação atual. Os jogos também chegavam a ser realistas, então ele só precisaria seguir seu instinto, e fazer aquilo pegar fogo nem que tenha que morrer.
— "Regras para fogueira primitiva: pra que haja fogo é preciso três coisas..." — diz em voz alta, tentando controlar os tremores de seu corpo. — Combustível. — Seus olhos encontram algumas folhas secas que devem ter entrado de fora, logo ele junta as mais secas que encontra nas mãos e leva até o resto de lenha chamuscada que estava na lareira. Em seguida ele cava com as próprias unhas o resto de cera das velas dispostas nos suportes locais. — Oxigênio, e faísca. — Respira fundo, e então encara o machado de mão de Gaston. — Pode não dar certo, mas vamos lá.
Todd tira do bolso de trás dos jeans seu canivete e exibe a lâmina afiada a frente de seus olhos, posiciona a do machado — que ainda cria ser uma espécie de martelo gigante — e fricciona um aço contra o outro tentando fazer uma faísca. As primeiras tentativas foram frustradas, afinal, ele não tinha tanta força nas mãos como pensava.
— Vamos lá! — eleva com um grunhido, e choca metal com força, fazendo uma pequena faísca e cai nas folhas secas, formando uma chama pequena que logo se alastrou pela lareira, iluminando o local novamente. — Isso!
Na mesma hora, escuta um barulho alto vindo do andar de cima. De supetão, o garoto faz o deveria fazer, acendendo o candelabro e botando fogo em móveis que pareciam secos o suficiente para queimar. Saiu da sala de estar quando o oxigênio começou a lhe faltar, partindo para os próximos cômodos.
— Sabine! — Collin grita ao ver a versão horrenda do garoto loiro do porão, antes descrita por Todd, erguer a garota pelo pescoço contra a parede.
— Você vai morrer, você vai morrer! — dizia entre risos abertos que exibiam os dentes afiados, desumanos.
O homem estava revestido de agulhas enfiadas em toda a sua carne e assim como visto por eles antes, até mesmo nos olhos e ouvidos. Donnie sofrera um castigo cruel, e agora havia se tornado a personificação de seu próprio medo o qual o consumira por completo.
Collin estava ileso assistindo aquilo, acreditando que tanto ele como a garota loira metade aranha eram a tentativa de Ross para matá-los de vez. Clara era para ele, e Donnie, seria o assassino particular de Sabine. Tudo agora fazia sentido.
Talvez o proprietário só não esperava que eles estivessem unidos contra ele.
— Collin... — Sabine acertou o rapaz empalado com o cano de madeira em suas mãos se livrando do sufocamento. Simultaneamente, avistou a criatura inseto de antes ressuscitada, saindo do quarto onde havia sido morta com olhos insanos vidrados em Collin. — Atrás de você!
Após o aviso, o mesmo é atingido por seiva estranha que é lançada da boca do monstro, que pinga em sua perna direita queimando três camadas de sua pele. A dor é tão intensa que ele desnorteia e cai sentado no chão aos gritos, enquanto um fumaça pequena saía da área atingida. Os gritos dele se misturaram com o cheiro de carne queimada e as risadas da agressora, que passa a se aproximar em passos lentos.
Sabine corre para socorrê-lo mas é atingida em cheio no mesmo ombro onde havia sido mordida pelo espírito de vingança, sente a dor lancinante consumir suas forças levando-a ao chão como seu companheiro. Seus olhos verificaram a área que ardia imóvel, e ela pôde ver que uma das agulhas grandes e grossas de Donnie atravessaram-lhe.
Ross sorriu.
Pela primeira vez em sua história, McKamey Hills estava repleta de gritos de sofrimento e agonia como nunca antes. Todos eles estavam sendo consumidos por ela, capturados pelas paredes assim como os últimos gritos de Clara, Donnie e Gaston. E Mônica? Bem... A morte dela não havia sido intencional, apenas um erro técnico de um demônio inexperiente em tortura física. A verdade era que Betty sempre foi muito apegada a ela, aprontava algumas, mas tinha aquela afeição de demônio para humano. Com Todd não era diferente... Onde ele estaria afinal? Era angustiante não vê-los sofrer juntos.
— Ok, já chega.
Um estalar de dedos soou no meio do corredor, e com ele, todos os medos evoluídos desapareceram. Exatamente! Medos evoluídos. Fora o nome mais criativo que poderia ter dado a eles, considerando que seus nomes reais não poderiam ser ditos ou escritos, não se uma catástrofe devesse ser evitada.
Sabine e Collin ainda sentiam a dor aguda que tornava tudo ao seu redor uma constelação de estrelas, mas perceberam a diferença do ambiente quando Ross estalou os dedos. Ficaram confusos, olharam ao redor a procura das criaturas e se espantaram de fato ao ver o proprietário no fim do corredor. Paralisaram de medo, exatamente como ele queria. Aquilo o fortalecia de uma maneira que humano nenhum entenderia, então para que explicar? Ross não estava ali pra isso.
— Mesmo diante de mim ainda se recusam a dizer o meu nome — pressupõe com um sorriso ladeado. — Estou... Estupefato.
Suas palavras tinham peso e ênfase, e logo foi como se toda a casa houvesse se calado para escutá-lo.
— Sabine e Collin, meus favoritos — anuncia juntando as mãos a frente do corpo. Estava orgulhoso por ter acertado na hora de decidir vestir seu tradicional sobretudo na cor vinho. — E... — uma fagulha de luz bate em seus olhos formando um reflexo vermelho que assusta as duas vítimas. — Onde está meu Todd?
Havia algo errado. Todd deveria estar ali.
Collin abre a boca querendo aproveitar a sua estadia entre a vida e a mais provável morte para ofender Ross de todas as maneiras possíveis. Mas desiste assim que o cheiro de queimado é identificado em seu olfato.
— Parece que houve algum erro em minhas previsões. Não poderei seguir daqui — a voz dele engrossa com a raiva emitida. Os dois feridos não entendem a última parte — O que estão esperando? Vão atrás dele!
Uma sequência de murmúrios demoníacos sobreveio, e ambos tiveram a certeza de ter visto sombras escuras saindo das paredes em direção ao andar de baixo.
Um suspiro.
— Podem ter estragado meus planos, mas uma coisa é certa — dá passos decisivos na direção deles, revelando sua face corrompida pelo mal que o habitava. Uma face que poderia representar qualquer coisa de ruim que poderia existir. Essa era a missão dele, e como vítimas que seriam mortas pelas suas mãos eles poderiam saber. Ross era exatamente quem mais temiam em sua existência, mas não havia engano, as pessoas não temem a mesma coisa. — Vocês irão morrer hoje.
Desta vez o olhar cúmplice de Collin era definitivamente aquilo que Sabine deduziu de primeira. Estavam a beira de um precipício e dali não teria escapatória. Seu medo tornava aquela visão mais e mais real, irradiava seus males, criava visões e pesadelos frenéticos que os enlouqueciam. Em meio a aproximação de Ross, Collin viu centenas de versões de seu rosto, em algumas era Betty, noutras a sua mãe, uma criatura branca sem boca e de olhos pretos, e um homem misterioso com um saco de palha cobrindo seu rosto. Ele era todos eles. Unidos num só todos os medos incorporados em um só homem. Um homem compactuando com as trevas, um homem ressurgido, um homem que era mortal, por incrível que possa parecer.
O auge da incorporação não havia chegado, Ross sabia disso. Não tinha muito tempo. Tic-tac. Não parava. Então ele aproveitou o tempo antes de retornar ao seu lar, afinal, não é sempre que se pode retornar dos mortos.
Desceu as escadas, degrau por degrau, desviando das chamas, segurando as cabeças de suas últimas vítimas, uma em cada mão, pelos cabelos. Claro, não havia tirado suas vidas sem mais nem menos. Ele precisava que gritassem mais, que sofressem apenas mais um pouco para que pudesse ficar em paz. E bem, ele não passaria dessa noite, então a paz seria definitiva.
Nas profundezas do abismo.
Ao longe, uma aeronave Cessna 140 com um casal de turistas de meia idade se aproximava. O piloto viu a fumaça espessa de longe, e ligou para a torre mais próxima denunciando um incêndio na floresta.
McKamey Hills estava caindo aos pedaços, sendo consumida pelo fogo mais uma vez, consumindo também os corpos de Collin e Sabine que descansavam feridos, degolados. O corpo de Ross estava queimando aos poucos no centro do hall da entrada, desde o momento em que descera as escadas e fora esmagado pela estrutura fraca do chão do segundo andar. Não demorou muito para que tudo estivesse em chamas, tudo, menos o porão.
Todd escavou com as próprias mãos até suas pontas dos dedos sangrarem. Achou a passagem ligada a dispensa, e conseguiu sair após atingir a portinhola com o machado algumas vezes.
Estava ofegante, e ainda assustado com a ideia de ser o único sobrevivente mesmo tendo corrido risco de morrer tantas vezes. Não se sentiu tão mal como imaginava. Continuou ali por um tempo esperando o resgate enquanto via o local queimar. Estava sujo, suado, sangrando e se recuperando de uma onda de adrenalina e desespero.
Todos estavam mortos.
— Eu disse a ele para antes fazermos uma reforma.
O menino quase não notou uma presença estranha ao seu lado. Ainda sentado no chão barrento ele vidra seus olhos no homem e sente uma palpitação ao ver um rosto e roupas idênticos aos de Ross, e ainda assim não parecia ser de fato dele.
— Oh! Você deve ser o último sobrevivente, parabéns, e por favor, perdoe meus modos — sorriu simpático se colocando a frente do garoto que o encarava em êxtase e confusão. — Prazer, eu sou Derek McKamey, deve ter conhecido meu irmão gêmeo. — Sorriu e seu olhar relampejou fazendo um brilho de púrpura atingir os olhos da criança.
A criança ponderou, e concluiu que talvez seria menos loucura ele ter morrido no incêndio, do que perceber como aquele jogo iria terminar...
Começando.
DEAD END
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top