fatídico

Estava em um sono pesado quando um som peculiar o acordou, e a princípio não entendeu do que se tratava – na verdade não teve qualquer intenção de entender desde que seu corpo dormente o empurrava de volta ao mundo dos sonhos, puxando sua mente preguiçosa para longe do que quer que estivesse acontecendo ali.

E tal som contribuía ainda mais para tal feito, relaxando-o, muito semelhante ao barulho de uma chuva leve caindo sobre as telhas num final de tarde, aconchegante, porém ia e vinha, cessante como se a chuva parasse e voltasse num intervalo de segundos – e isso foi o suficiente para chamar sua atenção.

Abriu os olhos inchados e remexeu os dedos das mãos que se cruzavam sobre o peito, as juntas doloridas fechadas em volta de fios úmidos que logo identificou como caules cortados de um buquê de flores; o cheiro doce enjoativo exalando tão próximo do seu rosto que seu nariz coçou com as partículas de pólen inaladas.

O breu era total e quando tentou se levantar logo caiu deitado mais uma vez, a testa agora latejando de dor por ter batido na superfície sólida que por algum motivo o cobria.

Seu corpo suava por baixo da roupa pesada cujo tecido áspero pinicava sua pele, e com dificuldade jogou as flores longe e afastou a gola firme da camisa que se apertava em volta de seu pescoço, o sufocando quase como se fosse proposital; então tentou abrir os braços e dobrar os joelhos, sendo mais uma vez impedido por paredes duras forradas por cetim.

O som acima de si finalmente cessou quando a última pá de terra foi jogada ao mesmo tempo em que sua mente recebeu um choque que irradiou por sua espinha e atingiu cada músculo e nervo como um balde de água gelada, gradativamente acelerando as batidas de seu coração enquanto o medo e o pânico se alastravam por cada poro seu ao entender a situação na qual se encontrava.

Suas mãos espalmadas bateram repetidamente contra a tampa do caixão na esperança de que qualquer um na superfície pudesse ouvir, os lábios secos deixando escapar murmúrios vacilantes e roucos, avisos de que ainda estava ali, que estava vivo.

E não sabia se era pelo desespero ou pelo confinamento a sete palmos sob a terra, mas o ar se tornava cada vez mais pesado, difícil de inalar pelas narinas dilatadas, o peito subindo e descendo rapidamente conforme seus pulmões buscavam continuamente por oxigênio, inchando e murchando muito mais rápido do que deveriam ao falhar em encontrar o necessário para se manterem funcionando.

As dores nas juntas logo desapareceram quando a sensação de formigamento começou nas pontas de seus dedos e subiu para os antebraços, as palmas baixas esperançosas na madeira sendo substituídas por socos que imploravam por atenção como os murmúrios roucos que já não mais existiam, apenas os gritos que, embora rasgassem sua garganta, não ultrapassavam as barreiras até a superfície.

Fincou as unhas no tecido macio da tampa, o puxando com insistência até que se desfizesse e rasgassem em pedaços e fiapos de linha desfiada que caíram sobre seu rosto suado e se prenderam por entre seus dedos trêmulos.

Arranhou a madeira crua, o som agudo e estridente contínuo lhe perfurando os ouvidos enquanto a mesma era marcada insistentemente, as farpas que se soltavam como consequência do gesto perfurando sua pele como milhares de agulhas finas; e então um urro gutural depois de minutos infinitos entre pedidos de socorro – urro este que gradativamente se calou ao ser transformado em choro, soluços altos e descontrolados responsáveis por contrair dolorosamente seu diafragma já fragilizado.

Suas pálpebras se fecharam, inundadas por lágrimas quentes e salgadas que lhe ardiam tanto os olhos quanto as bochechas por onde escapavam, transbordando como o suor que lhe encharcava por inteiro.

Apesar do calor quis se enrolar, deitar em posição fetal até pegar no sono para que quando acordasse novamente percebesse que tudo não passara de um sonho de muito mal-gosto, mas nem isso lhe era permitido pelo espaço estreito, apertado e claustrofóbico do qual contribuía fielmente para a sensação de que não existia qualquer escapatória.

Um refluxo ácido subiu pela sua garganta e foi engolido de volta com dificuldade, as mucosas agora queimando pelo contato com o líquido e a língua seca tomada pelo gosto amargo que não se desfez; os minutos arrastados de agonia em seu estado mais puro pareceram horas que por sua vez pareceram dias – um infinito limitado a alternações entre o choro, a teimosia de fincar as unhas já quebradas e marcadas por manchas quentes de sangue na tampa que se mantinha praticamente intacta e sussurros, a negação de que aquela situação era real e que logo deu lugar a súplicas para um Deus cujo agora implorava para que fosse real, proferindo promessas impossíveis a troco de um milagre, qualquer coisa mínima que fosse capaz de salvá-lo de um destino que parecia ter sido marcado a ferro quente em sua pele – “Você vai morrer aqui” era o que informavam as queimaduras, em um tom apático e carregado de uma certeza quase soberba.

Era incerto quanto tempo tinha se passado até que o ar se tornasse fino, rarefeito, o fazendo inspirar cada vez mais fundo por um oxigênio que não mais existia – e sentiu a Morte se aconchegar no pouco espaço que restava, sentando sobre seu peito e comprimindo suas costelas contra os pulmões debilitados, dificultando ainda mais suas tentativas de respirar para se manter vivo como se quisesse agilizar o processo, talvez por misericórdia, ou apenas por impaciência, era difícil dizer.

Mas tinha certeza de que a viu sorrir, enrolando os dedos esqueléticos em seu pescoço enquanto o imobilizava para que não existissem quaisquer chances de uma luta mesmo que esta já não fosse justa de qualquer forma, afinal ele estava fraco, trêmulo e delirando com seus piores pesadelos que se desenrolavam bem a sua frente como um filme de terror.

E quando os créditos subiram e a tela se apagou, seus movimentos cessaram por completo e as mãos que o sufocavam o tomaram em um abraço, da mesma forma com a qual uma mãe superprotetora nina o filho para dormir, o levando finalmente para um sono eterno no berço lacrado em que um breve momento de esperança se transformou em sua maior ruína, e onde os vermes que agora se alimentariam de sua carne seriam as únicas testemunhas de suas verdadeiras últimas palavras.

Era, de maneira literal e fria, o fim.

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-> Conto escrito exclusivamente para o concurso "Terror Particular" promovido pelo perfil oficial do @WattpadTerrorLP

-> Número de palavras usadas: 1080

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