Capítulo 6

      Giovanna acordou com um raio de sol atingindo e aquecendo seu rosto. Espreguiçou-se ao levantar o corpo, notando que apenas Nicolas estava no quarto, sentado na cama de baixo de uma das três beliches.

      — Bom dia — cumprimentou-o sorrindo.

      — Bom dia — o rapaz manteve os braços largados de qualquer jeito nos joelhos.

      Os dois sustentaram o olhar um do outro. Não conseguiam entender como tudo havia acontecido na noite anterior. As trocas de carícias. Os beijos. O sexo. Havia sido bom.

      Porém, não conseguiam esquecer o medo que se apossou deles ao verem os quatro homens andando pela praia com lanternas, procurando por eles.

      A verdade é que sentiam medo, por que o negar? Um brasileiro havia desaparecido. A atmosfera da cidade era ameaçadora e dos rostos dos nativos emanavam hostilidade e desprezo.

      — Conseguiu dormir? — a estudante de medicina perguntou.

      — Sim, mas muito pouco — o rapaz pôs as mãos na nuca.

      Giovanna pensou um pouco.

      — Não quero mais ficar aqui — confessou. — Brookville é perigosa.

      — Laura e Roberto riram de mim. Acham que é paranoia minha.

      — A Pamela também acha que é coisa da minha cabeça. Ela quer ficar aqui mais um pouco, para depois irmos à Forks.

      Nicolas suspirou alto.

      — Nós sabemos o que vimos. Não é invenção nossa — ele se levantou. — Eram quatro. Quatro brutamontes.

      — Nicolas. Uma coisa passou pela minha cabeça agora. E se eles são seguranças?

      O rapaz encarou com seriedade a moça  negra, franzindo o cenho.

      — É só um palpite — ela continuou. — Vai ver eles fazem rondas pela praia, pela cidade, e a gente deu azar de ir mergulhar na hora que eles estavam fazendo seu trabalho.

      — Pode ser.

      Mas Nicolas não estava convencido de que o palpite de Giovanna era válido. Era menos opressivo do que conceber a existência de bandidos que podiam ser ladrões, assassinos ou até estupradores.

      — De qualquer forma, melhor não irmos mais à noite na praia — Giovanna aprovou a decisão do rapaz com um meneio de cabeça.

      — E vamos andar juntos pela cidade — ela sugeriu. — Os seis, de preferência.

      — Sim.

      Dando um sorriso, Giovanna ergueu o punho fechado para que Nicolas desse nele um soquinho. O choque produziu um estalo como o de duas pedrinhas se chocando.

      A tensão deu lugar à um clima de cumplicidade entre os dois, que se olhavam com afeto, carinho. Sorrisos pendiam-lhes das bocas, produzindo dentro de si sentimentos confusos.

      Giovanna quebrou o impasse indo até a porta.

      — Vamos tomar o café da manhã? — sugeriu.

      — Só se fôr agora.

      Nicolas seguiu a moça pelo corredor de paredes de madeira. A construção fazia o rapaz se lembrar de uma cabana numa floresta usada para veraneio por caçadores de alce e ursos, e também uma daquelas casas de filmes de terror slasher em que um serial killer faz o sangue de suas vítimas esguichar por todos os lados.

      O medo maior dele era que uma vela caísse no chão e tudo se transformasse numa fogueira.

      Americanos, murmurou em pensamento.

      Uma grande placa parecida com um quadro branco chamou sua atenção e o fez parar. Giovanna voltou.

      — O que foi? — indagou.

      — Olha isso. 

      Frases e nomes escritos com caneta pilot eram visíveis. Frases escritas em diversas línguas. Uma delas em russo, no alfabeto cirílico.

      Я люблю Саша
                     (Павел)

      Curiosa, Giovanna acessou o tradutor Deepl, que usa inteligência artificial, e escaneou a frase para traduzir a mensagem.

      — “Eu amo Sacha”. (Pavel) — a garota ficou animada. — Que legal! Eles se hospedaram aqui.

      — Quem sabe estão no refeitório?

      — São muito legais. Gostei demais deles, principalmente da Sacha. Ela parece uma modelo de tão linda.

      Nicolas continuou lendo as frases. 

      Espero voltar um dia.

      Melhor ar do mundo pra se respirar.

      Povo um pouco desconfiado, mas bem prestativo.

      Essa última frase fez Giovanna quase ter um ataque de risos.

      — Prestativos?

      Quase no fim do quadro, os dois encontraram uma lembrança que os deixou intrigados.

      Tenho a impressão de que todo mundo aqui me olha por onde passo. Não tiro deles a razão. Um brasileiro gostoso, sexy e lindo. Quem não quer? 

      Debaixo da frase, estava escrito: Jonathan Rossini.

      Se não fôsse pelo desaparecimento do rapaz, Giovanna e Nicolas achariam a frase como presunçosa e convencida, e revirariam os olhos. Porém, os dois captaram nela a sensação de que o rapaz tinha de estar sendo espreitado. Seguido. Vigiado.

      Por ser narcisista, Jonathan imaginou que os nativos de Brookville estavam só admirados com seu estilo, seu despojamento brasileiro. 

      Não percebeu o perigo que corria.

      Giovanna e Nicolas se entreolharam com palidez. Se mantiveram quietos por alguns segundos que lembravam o silêncio de um funeral, até que o rapaz pôs a mão no ombro da estudante.

      — Não quer dizer nada — tentou dissipar a inquietação dela.

      — Não? — Giovanna o desafiou.

      — Vamos comer alguma coisa? Estou sentindo cheiro de cural de milho — ele desencavou um sorriso não sabia de onde.

      Os quatro colegas de quarto riam e conversavam enquanto se serviam de café, leite, pães e bolos de todos os sabores na grande mesa retangular. Havia manteiga, geleia, frutas e também a iguaria que havia atraído Nicolas.

      — Bom dia — Pamela sorriu ao ver a amiga. A loura acabara de pôr geleia de pêssego numa torrada e agora a levava à boca.

      — Bom dia — Nicolas e Giovanna responderam em perfeita sincronia.

      Tommy teclava seu celular ao mesmo tempo que uma xícara fumegante de chocolate era sorvida por ele de quando em vez.

      — Dormiu bem, amiga? — a loura de olhos azuis perguntou assim que a moça de pele bombom sentou ao seu lado.

      — Sim, apesar do susto de ontem.

      — Ah, de novo isso? — Pamela olhou para o teto. — Giovanna, esquece. Não aconteceu nada, e isso é o que importa.

      — Eu também acho que não é pra tanto — Laura interveio.

      — Mesmo assim — Nicolas bateu a xícara na mesa com mais força do que queria —, é bom abrir o olho. Esta cidade parece uma Crystal Lake. E sabemos o que acontece lá.

      Todo mundo se olhou com gravidade, em seguida para o rapaz, esperando que ele explicasse.

      — Gente, é a cidade do Jason Vohres¹ — Nicolas agitou as mãos no ar sem paciência e olhou para o lado. — O cara da máscara de hóquei. Sexta feira 13. Facão afiado. Capisce?

      — Ah! — Pamela faz. — Tá… Odeio filme de terror. Parece que os caras que fazem esses filmes não gostam de moças louras e bonitas, porque são sempre elas que morrem da forma mais cruel possível.

      Os hóspedes riram do comentário da loura, inclusive Tommy, que a olhou fugazmente enquanto digitava em seu smartphone. Roberto não tirava sua vista do americano em momento algum. Pamela percebia claramente na expressão corporal de seu conterrâneo uma predisposição a arrumar um pretexto para brigarem, e entediada, expeliu o ar pela boca.

      Homens e sua testosterona, pensou.

      Giovanna riu das histórias contadas por Laura e Nicolas. Até se esqueceu do susto passado na noite anterior, até que algo a deixou intrigada.

      Uma mesa tão grande e apenas seis hóspedes em volta dele. Fazia quase trinta minutos que estavam ali, e ninguém saiu dos outros quartos.

      Quando a hospedeira entrou para substituir a fôrma vazia por uma cheia de bolo, a estudante de medicina não resistiu à curiosidade.

      — Onde estão Sacha e Pavel? — perguntou.

      A velha mexeu a mandíbula como se tivesse tomado um tapa que desnorteia, mas seus olhos puxados não piscaram.

      — Foram embora e nunca mais voltarão — a mulher usou um tom neutro para responder.

      Giovanna franziu o cenho e intercalou um olhar espantado com seus colegas antes de fitar a hospedeira novamente.

      — Por que diz isso? — replicou. 

      A interpelada deu de ombros.

      — Brookville não é o tipo de cidade que cativa turistas. Uma vez que vão embora, não voltam de novo.

      Fazia sentido, de certa forma. Giovanna não pretendia voltar para aquela cidade quando juntasse dinheiro para viajar novamente. Quem sabe Orlando, Chicago, São Francisco ou Los Angeles, mas não Brookville.

      — Lemos as frases escritas escritas no quadro branco — a responsável pelo hostel não ligou para a informação dada por Nicolas.

      — Sim, os hóspedes deixam suas impressões sobre a cidade, o hostel, ou frases apenas, gravadas.

      — A senhora sabe falar português?

      Assim dizendo, o rapaz e a estudante de medicina trocaram um olhar breve.

      — Não.

      — Então não sabe o que os brasileiros que passaram por seu estabelecimento escreveram?

      — Não.

      Giovanna começou a entender o que o rapaz sul matogrossense planejava. Achou divertido.

      — A senhora pode me emprestar uma caneta pilot? — ele pediu.

      — Sim — a nativa girou nos calcanhares para levar a fôrma. — Tem duas na prateleira com livros e DVDs na sala.

      — Obrigado — um sorriso malicioso se formou na boca de Nicolas.

                             …

      O café é aguado e a água do chuveiro é fria. A dona do hostel é indiferente e parece não gostar do que faz. Péssima experiência. Nota 4.

      Os quatro brasileiros riram após Nicolas assinar seu nome abaixo da frase escarninha que ele escreveu em letra cursiva com a caneta pilot.

      — Será que alguém vai saber o que está escrito? — Pamela perguntou.

      — Brasileiros, pelo menos, vão — Nicolas pôs a tampa na caneta dando de ombros.

      A seguir, o grupo saiu animadamente do hostel. 

      O céu estava surpreendentemente azul, com pouquíssimas nuvens, e isso os encheu de profunda alegria. Pamela foi a primeira a tirar a roupa, e Tommy ficou maravilhado ao vê-la só de fio dental. A bela garota loura correu para o mar, puxando Roberto pela mão, fazendo Giovanna pensar como sua amiga conseguia ter esse dom, de brincar de amores.

      As outras duas moças também tiraram suas roupas. Seus biquínis eram mais discretos que o de Pamela, mas não passaram despercebidos aos olhos de Tommy e Nicolas.

      — Vamos lá, my friend? — o brasileiro perguntou ao americano após tirar a camiseta, abaixar o short e ficar de sunga.

      — Of course — Tommy respondeu animadamente.

      Os dois rapazes correram para a água a toda carga, dando um mergulho espaventoso como todo homem que não faz nenhum esforço de não aparecer.

      A água estava fria, mas quem disse que eles se importavam com isso? Estavam alegres demais para se incomodar com a temperatura baixa.

      Eles brincavam, atiravam água um no outro. Roberto segurou Pamela por trás pela bunda e os dois trocaram um beijo. A seguir ela apoiou as mãos nos ombros dele, o fez afundar e ao se virar para a direita, encontrou os olhos de Tommy.

      Sem saber porque, a garota se sentia atraída pelo americano. Mas Roberto tomara a iniciativa antes, e ela apreciava homens com mais atitude, objetivos. O sexo com o brasileiro fôra uma experiência incrível, que ela não se importava se viesse a se repetir.

      O americano sorriu para a loura e ela retribuiu na mesma medida. Roberto emergiu, e desta vez ele a fez afundar.

      Nicolas e Giovanna atiravam água um no outro. Riam, gritavam. Subitamente, ficaram como que presos nos olhos um do outro. Aproximaram os rostos até que a distância entre ambos passou a inexistir. Se prenderam em um abraço. Juntaram os lábios.

      No hostel, a hospedeira tomava sossegadamente uma xícara de chocolate quente, até que o som de um carro estacionando em frente à casa tirou-a de sua inabalável calma.

      Ela se levantou sobressaltada, andou até a porta. Quando esta se abriu, um homem alto e de meia idade, cabelos grisalhos, barba por fazer e ares de importante figura entrou.

      — Herr Fischer! — a mulher tinha os olhos arregalados. — Não esperava que viesse hoje.

      — Apenas Fischer está bom, Emma — ele andou até por trás do balcão, sentou-se diante do computador antiquado de internet discada, começou a mexer no mouse e a clicar.

      — E as nossas crianças? — ele perguntou.

      — Saíram já faz algum tempo. Foram à praia assim que tomaram o desjejum.

      — Compreensível. Numa cidade em que chove mais do que em todas as cidades americanas juntas, um céu azul é um evento raro e tem que ser aproveitado.

      A velha assentiu.

      — Por que está aqui? — questionou.

      — Preferi colocá-la a par da situação. Temos uma encomenda maior. Podemos aproveitar todos eles. Não é ótimo? Mas a coisa tem que ser feita ainda hoje. Entendeu, Emma? Ainda hoje.

      A índia assentiu novamente.

      — O que devo fazer?

      — Eles não podem ficar aqui. Têm que ir embora. Você vai usar toda a sua habilidade para inventar mentiras e tirá-los do hostel, para que fique mais fácil.

      — Farei isso.

      — Ótimo!

      — Estes são os nomes deles? — Fischer apontou com o indicador para a tela do computador.

      — São, sim.

      — Brasileiros! — zombou. — Futebol. Funk. Ah! 

      Emma não moveu nenhum músculo do rosto.

      — Por favor, me prepare uma xícara de chocolate quente, está bem? — Fischer pediu gentilmente.

¹Nicolas está fazendo um trocadilho. Crystal Lake não é a cidade, mas o acampamento onde Jason matou pessoas.

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