Capítulo 2

      Giovanna olhava com aborrecimento para a chuva que caía, as mãos apoiadas no peitoril da janela. Mesmo o mar, tão perto dali, diante de seus olhos, parecia inalcançável por causa do clima adverso e das ondas que batiam com ímpeto na areia. Um vento cortante soprava, balançando as copas das árvores, dando a impressão que as arrancaria.

      No meio do negrume das nuvens, porém, a garota distinguiu uma cor azul. Se fosse verdade que o clima de Brookville era caprichoso e que de horrível passava para belíssimo em instantes, então ela podia passar a ter esperança de que o sol aparecesse para descer a praia e  bronzear a linda pele negra que herdara dos pais.

      Enquanto Pamela conversava com os outros três mochileiros, Giovanna postou fotos da viagem que havia feito até ali. Selfies tiradas na Times Square, diante da Estátua da Liberdade, no Memorial do World Trade Center. As que foram tiradas por Pamela ficaram melhores, a loura atlética tinha mais sensibilidade para captar os melhores ângulos e seus flashs tinham um quê de artístico que faziam Giovanna se remoer de inveja.

      A viagem estava no fim, junto com o dinheiro que as duas amigas economizaram durante anos para fazer um tour longo. Elas conheceram algumas das capitais americanas e também cidades pequenas em que os xerifes tem mais poder que os prefeitos, assistiram shows de rock, aperfeiçoaram seu inglês conversando com nativos, se decepcionaram com o aguado e caro café americano de cinco dólares. Incorporaram um pouco do American Spirit.

      Tudo para que? Para compreenderem que não havia um país igual ao delas. Giovanna quis um dia fazer MBA numa universidade americana e trabalhar em Nova York, mas isso na adolescência, quando ela nem sonhava estudar Medicina e tinha inclinação para Economia. A visita a um hospital que cuidava de crianças com câncer a fez ter a iluminação vocacional que mudou sua vida, e ela decidiu que sua missão estava no Brasil.

      O envolvimento com o médico chefe a fez sentir raiva de si mesma por não ter sido fiel ao homem que namorou desde os dezessete anos. Tinha vergonha de se ver no espelho. De lembrar de ter sido pega nua, ajoelhada no chão da sala do médico chefe sendo penetrada por trás e do escândalo que isso causou.

      Somente ela saiu ferida dessa história. A esposa do médico, habituada às infidelidades conjugais do doutor e determinada a manter as aparências e proteger os filhos, o perdoou. Giovanna ficou conhecida como a vagabunda.

      Dali a alguns dias voltaria para o Brasil, para o curso de medicina, e a vida seguiria normalmente. Pamela continuaría arrancando suspiros dos homens, escolhendo à vontade entre os mais bonitos, sempre com aquele sorriso adolescente que a maioridade não tirou. Elas tirariam alguns dias livres para saírem e pôr as fofocas em dia. E o tempo passaria.

      Giovanna se virou para o lado ao ver Nicolas se debruçar no peitoril da janela. O odor do perfume amadeirado que o corpo do moço exalava causou-lhe uma sensação agradável, e o moço deu-lhe um meio sorriso.

      — Parece nostálgica — ele observou.

      — Só estou um pouco aborrecida. Desde que chegamos tudo o que vejo é esse cinza escuro por toda parte, chuva e vento.

      — Me faz lembrar Belém, capital do Pará. Lá faz calor o dia todo e à tarde chove.

      — Já esteve em Belém?

      — Estive sim. Fui pra um mochilão solitário. É uma capital linda, como todas as brasileiras.

      Giovanna sorriu.

      — Você conhece muitas cidades?

      — Viajei por muitas. Porto Alegre, São José dos Ausentes, São Joaquim, Urupema… cidades do Sudeste, Salvador, Natal, Manaus.

      — Uau, que viajado.

      — Também passei duas semanas num kibutz em Israel. Detalhe: não sou judeu — Nicolas riu. — viajei para Moscou, Bratislava, Helsinki, Londres, Luxemburgo, e agora estou aqui.

      — Como você acha dinheiro para viajar tanto? — a estudante franziu o cenho.

      — Ah! Dou meus pulos. Meus pais tinham uma boa situação financeira e me deixaram várias casas de aluguel, além de dois apartamentos em Cuiabá. Além disso, trabalho numa firma que desenvolve softwares. Não gosto de dizer quanto ganho, porém é suficiente para eu viver bem e viajar nas férias.

      — Que legal.

      — E você, o que faz? 

      — Sou estudante de Medicina em São Paulo.

      — Mas estudantes são todos duros.

      Giovanna anuiu com a cabeça, mostrando o lindo sorriso.

      — É um estereótipo — ela respondeu a modo de correção. — Eu trabalho durante o dia e faço faculdade à noite. Economizei durante anos pra fazer esse mochilão, eu queria fazer mais pra frente, mas tive de antecipá-lo.

      Nicolas arqueou uma das sobrancelhas. Sua boca formou uma linha reta, perfeita.

      — E o que aconteceu? — perguntou.

      — Trai meu namorado com o médico chefe do hospital — Giovanna jogou de uma vez —, ele e eu fomos flagrados, fui rotulada de vagabunda e resolvi respirar os ares do verão americano para aliviar a mente.

      O rapaz avaliou atentamente o rosto da bela moça negra, se encantando com seu olhar cheio de sensualidade e um pequeno toque de convencimento e arrogância que a faziam parecer mais interessante.

      Desde a parada no restaurante ele quis puxar assunto com ela, porém o curto tempo para almoçarem não permitiu.

      — E… você se arrepende por ter posto um par de chifres na cabeça do seu namorado?

      Giovanna pôs uma mecha de cabelo cacheado atrás da orelha, deu de ombros. 

      — Era meu namorado. Estávamos juntos desde o Ensino médio, tínhamos uma história. Claro que estou chateada, mas vou sobreviver.

      Nicolas assentiu.

      Giovanna reparou na amiga conversando sorridentemente com Nicolas e Laura, mordeu o lábio inferior, andou em direção ao trio.

      — Pamela, você vai dormir na cama de cima ou de baixo?

      — Na de cima.

      — Ok — Giovanna pôs as mãos nos bolsos da jaqueta, voltou-se para o grupo. — Pessoal, só pra avisar: a Pamela solta pum enquanto dorme.

      A loura perdeu a cor, arregalando os olhos e escancarando a boca em espanto. Os outros três mochileiros se entreolharam abismados.

      — Não conte os meus segredos — Pamela atirou travesseiro, gorro, bolinhas de meia e tudo o que achou à mão na amiga brincalhona, que ria em voz alta se divertindo do constrangimento criado. 

      A garota loura se deixou contagiar, rindo também e todos brincaram com a situação.

      Subitamente a porta foi aberta, um rapaz entrou com uma mochila cargueira preta nas costas. Água respingava de seu cabelo louro escuro e seus olhos claros emitiam um encanto tímido logo percebido por Pamela.

      Ele era alto, tinha barba rala e acenou discretamente para os cinco, limitando-se a um meio sorriso.

      — Good afternoon — saudou.

      Os cinco brasileiros responderam, a gerente do hostel apareceu sob o batente da porta. Giovanna não simpatizou com ela desde que confirmou sua reserva ao entrar. A mulher índia tinha ar de dissimulada e respondia secamente às perguntas que lhe eram feitas.

      — Tommy, a única cama livre é sua — a hospedeira informou. — Caso queiram pedir comida por aplicativo, no balcão da recepção há folhetos de restaurantes e pizzarias. Tenham uma boa estadia.

      Sem mover os lábios, a estranha mulher disse algo num dialeto indígena local, fechou a porta ao sair.

      Tommy olhou para cada um de seus colegas de quarto. Sua expressão agora era simpática, ele virou a cabeça em todas as direções buscando a cama livre. A única que permanecia arrumada era a de cima de Laura.

      Calmamente abriu sua cargueira, tirou um rolo de cobertor, mudas de roupas e chinelos, conectando em seguida o celular a uma tomada.

      — E aí, Tommy? — Pamela sorriu dobrando as pernas e puxando-as para si.

      — Oi — o recém chegado retribuiu.

      — De onde você vem? — Laura perguntou.

      — De Seattle. 

      — Fica perto daqui, né? — Laura não sabia se olhava para o quieto Tommy ou para a tela de seu smartphone.

      — Sim, perto. 

      — Fique à vontade, Tommy —      Pamela sorriu encantadoramente.

      O americano respondeu as perguntas que lhe foram feitas esforçando-se para ser atencioso e gentil com todos, mas as interpretações surgiam de todos os lados, deixando-o confuso.

      Os cinco primeiros ocupantes do quarto se apresentaram para o americano, dando início a uma conversa descontraída. Como não havia possibilidade de sair por causa da chuva, Laura propôs um jogo de cartas comum no Brasil. Tommy logo pegou o jeito. Era um rapaz atento, que se soltou aos poucos.

      Eles se cansaram depois de algumas rodadas, e se dividiram em pequenos grupos para conversarem em separado sobre assuntos triviais, apenas para passar o tempo.

      Giovanna saiu de perto e andou até a janela, seus olhos brilharam ao ver o clima lá fora. Tinha parado de chover e um sol fraco aparecia por entre as nuvens.

      — Pessoal, vamos sair um pouco? — ela propôs.

      — Sair? — Roberto estranhou. — Mas está chovendo.

      — Não está, não — a estudante de Medicina apontou com o braço para fora. — Olha! Tem até sol.

      Laura acorreu para a janela e comprovou com manifesta satisfação as palavras de Giovanna.

      — Que bom — deu um pulinho —, dá para ir a uma lanchonete e passear na praia.

      — Quem vem?

      Vinte minutos depois (tempo que os mochileiros levaram para se trocar ou ficar no mínimo apresentáveis), estavam andando pelo centro da cidade.

      Laura pedia ocasionalmente para que fizessem pose para selfies ou fotos de recordação. Os transeuntes reparavam nos modos dos brasileiros, alegres e barulhentos. Um senhor de meia idade torceu o nariz ao passar por Pamela e Giovanna se beijando diante de uma fonte enquanto Nicolas as fotografava.

      — Turistas! — o nativo resmungou.

      Os carros circulavam com farol baixo ligado, devido a cerração. O sol que Giovanna vira pela janela no céu havia sumido, e tons sombrios foram dados àquele começo de tarde. Luzes começaram a ser acesas, as pessoas andavam apressadamente pelas calçadas para chegar logo às suas casas, água pingava das copas das árvores.

      — Essa cidade é úmida igual a Forks — Giovanna observou tediosamente. — É um ótimo lugar para vampiros morarem.

      — Conhece Forks? — Tommy perguntou.

      — Só pelos filmes.

      — Eu visitei quando era garoto. Sabiam que a Stephanie Meyer visitou a cidade bem depois de ter escrito o livro?

      — Fez uma excelente pesquisa — Nicolas ressaltou.

      — Giovanna — Pamela segurou a mão da amiga —, se der tempo a gente vai pra lá, né? Sempre quis conhecer a cidade onde a Bella e o Edward vivem.

      A moça negra revirou os olhos meneando a cabeça.

      — Por mim a gente voltava daqui para o Brasil, mas se você quer, então tudo bem.

      O grupo entrou numa pequena lanchonete típica das cidades do interior dos Estados Unidos, com mesas com poltronas, um balcão com cadeiras altas para clientes que queriam assistir a liga nacional de basquete, baseball ou football e cardápios plastificados.

      — Só tem lugares para quatro pessoas — Laura lamentou.

      — Tudo bem, o Tommy e eu sentamos na outra ao lado — Pamela resolveu o impasse puxando o americano pela mão. Roberto franziu o cenho, nitidamente enciumado.

      Os clientes olhavam de relance para os recém chegados, com desconfiança e altivez. Giovanna achou que os nativos não eram lá muito receptivos, começando a se aborrecer com a frieza deles.

      — O que vão querer? — a garçonete dirigiu-se a Pamela e Tommy com um caderninho e uma caneta nas mãos.

      A loura leu os nomes dos lanches deslizando o indicador por eles.

      — Hambúrguer artesanal, por favor. E uma garrafa de Pepsi.

      — No Pepsi, girl.

      — No Pepsi, que chato… Coca cola, então.

      — Vou querer o mesmo que ela — Tommy replicou.

      Os pedidos do outro grupo chegaram antes que os de Pamela e Tommy. Uma conexão surgiu entre a loura e o americano, com trocas de olhares e sorrisos. Às vezes ela olhava para a outra mesa, se divertindo com a cara nada agradável de Roberto.

      — Ele é algum pretendente seu? — Tommy perguntou.

      — Não.

      — Pois ele te olha como se você fosse sua propriedade.

      — Eu o conheci num restaurante lá atrás, nós quase nem nos falamos. Não sei porque ele está com aquela cara.

      — Vai ver está com ciúmes.

      — Por que estaria com ciúmes?

      — Porque você é muito linda e ele está interessado.

      — Mas eu não estou interessado nele. Não mais.

      — Não? O que te fez mudar de ideia?

      Sorrindo com malícia, Pamela segurou a mão de Tommy e fixou nele seus lindos olhos azuis, vikings.

      — Os homens americanos são mais interessantes e tem um charme único.

      A garçonete de semblante neutro voltou com os lanches e as bebidas dos dois, que agradeceram, e assim que a garota deu a primeira mordida, as portas duplas da entrada se abriram, dando passagem a um policial fardado.

      Como se um frio glacial invadisse o ambiente, com o exceção dos cinco brasileiros e do americano que fazia companhia a bela Pamela, todos os clientes ficaram tensos. O policial andou até o balcão, pediu para conversar com o gerente e seguiu um dos atendentes até uma sala.

      — Que clima pesado — Giovanna comentou.

      — É por causa do desaparecimento — retrucou a garçonete.

      Os quatro ocupantes da mesa se olharam intrigados.

      — Desaparecimento? — Nicolas franziu o cenho.

      — Sim — a garçonete retrucou. — Do turista brasileiro, Jonathan Rossini. Ele desapareceu há uma semana, e aqui foi o último lugar onde foi visto.

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