Capítulo I - Parte I -Esquadros

O tempo passou rápido na verdade.

O tempo para mim era a parede: a parede me lembrava do tempo que passava e que eu perdia olhando para ela e pensando em qual a próxima cor que viria até chegar o meu tempo de deixá-la.

O tempo era bege, então ficou branco, azul claro, verde piscina e agora voltara ao bege. Mas, ao contrário de quando vivi nessa casa, as paredes beges não se fazem belas e arrumadas por si só. Muitos pregos estão nelas agora e, na loucura de tantas decorações, a minha prisão.

Bastava subir as escadas para se deparar com uma paisagem ufana de onde, no último plano, eu-retrato, retrato entre os neurônios que me restam a batida das portas, o tremer das paredes, as falas dos moradores, os problemas serem exaltados e as simples soluções serem esquecidas.

Observar de fora era um castigo para mim que o viver era tão querido, pois, talvez esse tenha sido meu erro, querer viver demais sem ser contido. Com todas as vidas que já vi, sinto que a minha perdeu gosto e que essa atividade infinita seja o suficiente, o merecido.

Estou em um ponto em que já não imagino mais: subjetivo. É nessa perspectiva que as minhas loucuras se seguem e se cruzam e me perseguem. Todas a exemplo de:

'E eu, que aqui faço? Eu decoro as paredes. Mas não me concretizo, sou fluido e adstringente...'

E por aí vai.

Fiz-me e refiz-me mais de duzentas vezes nesses mais de duzentos anos preso.

De tudo fiz para não enlouquecer, adiantara?

Receio que não, embora uma confirmação eu só pudesse ter ao viver novamente.

Viverei novamente?

É melhor não ter expectativas, viver só de esperanças, pensava eu, que fosse o adequado. Nem otimista, nem pessimista, nem realista. Subjetivista. Nada é concreto no meu hoje e, até que fosse, eu não me permitiria arquitetar ideias e ideais. Meu objetivo era único: suportar só mais um dia e de novo e de novo.

(...)

Observando atentamente, meu eu-retrato é melancólico e quente, do tipo que antigamente a crítica inflamaria o ego do sujeito que pintasse de forma parecida. Uma pena que tal obra-prima ficasse perdida numa república de meninos que não entendiam arte e não se importaram com a exigência do antigo proprietário de conservarem meu cárcere.

É, isso é o que minha casa da época colonial e retocada com o bom gosto mais severo de minha época se tornou.

E era uma exigência da Magia, – claro – que eu permanecesse trancado naquela casa; nem mesmo podiam me mudar de lugar. A Magia não me matou, mas por uma série de anos esse fora meu desejo mais ardente: dormir infinitamente. Ela conservou a minha alma para torturá-la com o tédio, só podia. Duvidei de tudo em outra época: tinha a certeza de que ela tinha me enganado e também que trancara-me lá por puro prazer – por capricho.

Nenhum de meus antigos donos entendia aquela necessidade de me manter intacto, importante a ponto de nunca poder ser tocado, modificado de lugar. Eles, na verdade, eram instruídos, cada ação, a nunca me notar. Uma bela obra da Magia: a chave de minha cela era o toque.

Apenas um toque e eu estaria salvo. E quem conseguiria tal proeza? Apenas a minha dama predestinada, aquela que eu desposaria, a única que eu – com todo o prazer do mundo – cortejaria até o fim de nossas vidas.

Até que esse distante dia chegasse – em vista da probabilidade igual a zero de um desses meninos trazer uma garota decente para o primeiro andar – eu continuaria me permitindo, de vez em quando, sonhar com o toque veludo e quente de seus dedos.

(...)

Era noite fria e nebulosa, as janelas– vidro colorido em mosaico– abertas deixavam pequenas gotículas entrarem; como sempre, eu estava a salvo– eu era constante, fluidez imparável. Inconstante, apenas, era o horário de chegada dos moradores. Uns ficavam até tarde na biblioteca, outros iam para bares– ou coisas parecidas– e certos meninos simplesmente gostavam de ficar no andar principal. No primeiro, segundo e terceiro andar temos três quartos, e no subsolo havia agora mais três, resultantes da reforma do que antes era minha área particular de pintura e adoração das palavras - nada aparentemente restara dela de acordo com o que esse mero quadro pôde ouvir.

Era um alívio saber que o mundo evoluiria – cedo ou tarde– e então minha igual mostraria sua face onírica e eu poderia desfrutar e desvendar com ela as mil faces das artes.

O simples relato do onírico traz um mar nostálgico a agraciar-me com seu odor quente de maresia a ir e vir contra as pedras, fazendo-me gostar do passado ainda mais, um tempo bom em que meu mar nunca se acalmava e era um paraíso para quem gostava de se aventurar.

Eu era mar revolto e tentador.
Não mais.

Eu fora tempo bom e símbolo de prosperidade.
Nunca mais.

A dor do tédio só se amparava na literatura que sempre fora minha saída dessa distopia; felizmente, à proporção da angústia que tomava meu coração, a arte da escrita, da mesma forma, enchia minha mente.

As palavras me enchem a mente e em meu barquinho de papel navego desde a margem até a parte mais profunda onde ele se dissolve e eu derivo. Não me importo quando as ondas se tornam revoltas e perigosas ou quando elas se acalmam e reluzem sua espuma. Em certo momento me deixo para o mar, até ele e eu sermos uma só força, iludindo e desiludindo a mim mesmo, criando e revogando minhas próprias teorias, sendo ser e sendo nada. Basicamente, lembrando em lampejos do que fui e colidindo, pouco após, contra a parede em que me encontro.

E, então, ouço passos.

Segundos passados e ouço novamente os passos. Posso deduzir onde: lá no começo da escada de madeira. Formavam-se relutantes e sem graça os sons, o andar era de um bêbado desesperado – daqueles que raramente põe goela abaixo litros de álcool. Os degraus espiralizados eram covardemente abatidos pelo peso do homem a cada poucos passos.

Embora a dificuldade, ele subira e agora dava as caras, apontando na metade da escada sinuosa, configurava-se um menino homem de cabelos carvão encaracolados e despenteados que nunca tinha passado por ali. Talvez fosse convidado, um estranho que desgarrado de seus semelhantes subiu as escadas a procura de alguém.

O rapaz não só estava longe da sobriedade, mas também tinha mal cheiro forte e olhos cansados; caindo, tombando, prestes a vomitar, suando.

Ele subiu o resto dos degraus, encostou-se áspero e incomodado na parede bege, –bem ao meu lado–  deslizando vagarosamente até desequilibrar e sentar com o peso de uma tonelada no tapete marrom, tirando-o do lugar, consequentemente deixando à vista a madeira gasta.

Aos meus pés, o moreno fechou as pálpebras quase como num desmaio e tombou o corpo, posicionando-se de forma fetal horizontalmente. O seu cabelo acompanhou o movimento, caindo por cima de seu rosto. Os fios eram encaracolados nas pontas e nessa brincadeira iam até os ombros. Reparando-se no corpo, via-se relaxado devido ao álcool, ainda que machucado. Não eram muitos, mas havia arranhões em seus braços e partes um pouco rasgadas em sua calça.

Problemas e problemas da vida acadêmica–nada mais, nada menos.

E nada demorou para que ele começasse a grunhir quaisquer coisas. Branda a voz grossa saía, não menos bela que os lábios que desenhavam sua forma.

Aparentemente cantava.

Dor profunda a cada nota; dor que eu conhecia desde meus primórdios: amor. Só tal lástima tomar conta de um ser que desventuras iam ao encalço. Lágrimas se desprendiam vorazes para saciar o coração. Ele estava hiperventilando e tentando e tentando parar.

Sem sucesso.

O desespero sensível ao toque em seus olhos.

Eu também o conhecia.

A vontade de não sentir mais, de quebrar as leves memórias em mil pedaços, já senti e podia, agora, afirmar que era um comportamento ruim e autodestrutivo e necessário, mas passar por esses momentos sem a carícia voluntária tornava a dor ainda mais profunda. O coração apertando sem cessar e o sangue se acumulando na cabeça, deixando-o escarlate enquanto, por osmose, tudo acendia – eu me acendia. Eu me acendia!

Fogo – literalmente– crepitava dos seus olhos verde, uma vez que ascendeu seu olhar e o desvendou para mim.

Intenso, como uma tragédia premeditada, ele se escorou esgotado e levantou-se tal como se seus membros inferiores esquecessem como se punha de pé.

O cabelo desgrenhado foi remexido por sua mão que tomou um caminho perigoso e nunca antes tomado.
E o toque. Tocou-me. Ele.

Um toque pode me libertar e o mesmo toque iria me aprisionar ao coração da pessoa que o tivesse feito.

Não conseguia compreender.

Os fatos estavam ali, tudo acontecera e eu observara estupefato.

Como era possível?! Ele!? Ele?!

Eu gritava no meu silêncio. E ele em resposta me encarava ferozmente, mas não a ferocidade derivada da raiva. O fogo em seus olhos anuía com meu âmago e desejava que eu fosse às cinzas, que eu fosse as suas cinzas. Aquele fogo era uma prisão; preso fiquei sem nem mesmo dar consentimento.

Não há palavrões suficientes nas línguas que sei para externar a fúria que senti. E, com essa raiva sem precedentes, caí da parede, sem motivo aparente, e me espatifei no chão.

Quebrei.

Eu estava quebrado. Literalmente.

O moreno olhava para a cena, mas não olhava para mim. Para o que olhava? Tentou pegar-me no chão, porém não era a mim quem via quando abriu os lábios e apertando a moldura contra seu peito deixou algumas palavras saírem de sua boca. Infelizmente, não eram simples sons, ele recitou como para um amante: Não vá! Não vá, não vá...

E aquelas duas sílabas ressoantes levaram-me ao pó. Simples assim.
O quadro, que era eu, queimou até o fim e a última lembrança- sua voz, seu calor, seu toque, seu abraço- queimou além da racionalidade.

No segundo seguinte, eu já não estava mais lá.

(...)

Alívio como o de quem acorda de um pesadelo e se toca de que nada daquilo aconteceu perpassa minha pele quando acordo e vejo o sol acariciar-me.

Então olho para o lado: Ele!

E volto a dormir, como te tudo não passasse de um sonho.

(...)

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